Edição

“Precisamos aproximar a justiça do povo”

5 de maio de 0200

Compartilhe:

(Discurso de posse do Ministro Paulo Costa Leite na presidência do STJ)

Assumo a Presidência deste Superior Tribunal de Justiça em momento de grandes transformações e questionamentos na vida política e institucional de nosso País.

Temas de vital importância, como a Reforma do Poder Judiciário, que, durante tantos anos, estiveram restritos a círculos especializados, ganham espaço e ressonância na mídia e chegam ao conhecimento do cidadão comum.

Vivemos um tempo em que a instantaneidade das comunicações já não permite a existência de torres de marfim. Não há espaço para instituições fechadas, impermeáveis à opinião pública, sobretudo no âmbito do Estado.

A Justiça, entre nós, tem sido instada a rever antigos condicionamentos e abrir-se, participando mais efetivamente do debate político-institucional. Essa é uma mudança que ocorre de fora para dentro. É a sociedade civil brasileira que, mais madura e participativa, sente-se no direito de influir no processo decisório e de questionar as instituições.

Considero este um dado positivo. É importante que o cidadão-contribuinte, que sustenta as instituições do Estado com seus impostos, conheça não apenas as decisões que terão repercussão em sua vida, mas o que as motivou e a que interesses atendem.

Dentro desse novo ambiente psicossocial, o Poder Judiciário tem sido um dos mais questionados. Tivemos recentemente, no âmbito do Senado Federal, uma CPI voltada ao exame de denúncias envolvendo magistrados. Na Câmara dos Deputados, tramita proposta de reforma do Poder Judiciário, cujos principais pontos têm sido objeto de aceso debate nacional. A iminência de uma inédita greve da magistratura no plano federal causou grande comoção.

Tudo isso serviu para nos colocar na berlinda, expondo-nos a críticas nem sempre legítimas, nem sempre procedentes. Acabamos sendo injustamente ridicularizados e execrados, além de submetidos ao papel de bode expiatório das instituições da República.

Foi assim, por exemplo, com relação à discussão do teto salarial para o serviço público. Passou-se à sociedade a idéia de que por trás existia uma reivindicação salarial da Magistratura, que iria onerar o Tesouro Nacional.

Não se tratava nem de uma coisa nem de outra.

A verdade é que a fixação do teto implica redução de salários dos grandes privilegiados do serviço público e contraria interesses inconfessáveis enraizados dentro da máquina administrativa. Trará economia para os cofres públicos. Corrigirá as graves distorções salariais hoje existentes e colocará um ponto final em uma desgastante discussão que se arrasta já há alguns anos.

Nada disso ficou claro – e não ficou porque faltou determinação para enfrentar o assunto com clareza e objetividade. Reflexos residuais da síndrome da torre de marfim.

É preciso deixar claro que o que a magistratura pretende é tão-só remuneração condizente com suas altas responsabilidades. Trata-se de atividade que exige dedicação exclusiva. O juiz pode no máximo acumular um cargo de professor, cuja remuneração é em regra mais modesta do que a sua.

Um juiz adequadamente remunerado é, antes de tudo, fundamento de segurança para a sociedade. Não se trata, pois, de privilégio, como levianamente se tentou passar à opinião pública.

A propósito, convém que se alerte a Nação sobre o problema cada dia mais grave do recrutamento de juízes. Projetadas as dificuldades hoje existentes, que têm forte relação com a questão salarial, corremos o sério risco de num futuro não muito distante entregar a jurisdição nas mãos de pessoas sem a necessária qualificação profissional e moral. O povo brasileiro quer isso? Certamente, não. É chegada a hora pois de tratar da questão salarial da magistratura racionalmente, sem paixão e hipocrisia.

Em minha gestão, estou determinado a buscar cada vez mais a visibilidade. Queremos um Tribunal em que as pessoas confiem e se sintam efetivamente atendidas nas suas demandas. O Superior Tribunal de Justiça precisa se aproximar ainda mais da sociedade, para que ela saiba o que faz, como faz e por que faz.

A comunicação é algo essencial. A idéia de que o juiz só deve falar nos autos precisa ser revista e entendida em sua real dimensão. É princípio que se aplica aos casos concretos a ele submetidos, não porém a questões institucionais.

Quanto a estas, os juízes não só podem como devem falar, principalmente os dirigentes dos Tribunais. O Judiciário é também um Poder Político, que precisa fazer-se ouvir, com autoridade e firmeza, sem esquecer é claro os postulados da democracia, que indicam o caminho do diálogo. Intolerância e intransigência não se coadunam com a prática democrática.

Corretíssima, a meu sentir, observação feita pelo meu amigo e eminente jurista Renê Ariel Dotti, em carta que recentemente me enviou, no sentido de que “ o juiz moderno e participante dos anseios de um Estado Democrático de Direito não pode se confinar nas folhas dos processos ou se isolar nos gabinetes ou sala de sessões”. Tal como acrescentou, “essa postura antiga e distante da realidade social e humana equivale a uma deserção civil”.

Os dois princípios basilares da Justiça, no cumprimento de seus deveres institucionais elementares, para tornar efetiva a proteção dos direitos individuais e coletivos, são sua universalidade – isto é , sua capacidade de atender a todos – e sua presteza.

Como é sabido, o Judiciário lida com dificuldades diversas. A morosidade é freqüentemente apontada como principal causa da sua crise de credibilidade. Não se nega que há muito por fazer internamente. Mas há fatores externos que não podem ser esquecidos.

É bom lembrar, em primeiro lugar, que a revitalização da ordem jurídica brasileira, com o advento da Constituição de 1988, fez com que as pessoas procurassem mais o Judiciário. A excessiva litigiosidade da administração pública em todos os seus níveis e as seqüelas de planos econômicos fracassados, por sua vez, abarrotaram de processos os juízos e tribunais. Some-se a isso a ridícula relação juiz por número de habitantes em nosso país, além do quadro de instabilidade jurídica resultante de um processo legislativo anômalo e ainda não regulamentado, que é o das medidas provisórias.

Por fim, é de rigor que se intensifiquem os trabalhos de reforma das leis processuais. O anacronismo processual vem retardando a solução dos conflitos, impedindo que a Justiça seja mais rápida no atendimento das demandas da sociedade.

A Reforma do Judiciário que se desenha à nossa vista está contemplando prioritariamente aspectos estruturais. Não é dado ignorar, entretanto, os graves problemas de natureza operacional do Judiciário. Além de buscar a modernização do processo, temos de encontrar soluções capazes de levar a Justiça cada vez mais para perto da sociedade. Isso nem sempre requer medidas de grande complexidade, de elevados custos. Precisamos ser mais ativos e criativos, dentro da meta de aproximar a Justiça do povo.

Nesse sentido, os Juizados Especiais são experiência altamente vitoriosa. A sua implantação no âmbito da Justiça Federal está em via de ocorrer. Serão de grande valia, sobretudo em relação às causas previdenciárias, que exigem pronta solução. A Justiça itinerante, já funcionando em algumas unidades da federação, é algo notável. Em tema de acesso ao Judiciário, porém, é fundamental que se organize a Defensoria Pública. No plano federal, ela não existe, não obstante tratar-se de instrumento básico para a parcela menos favorecida poder exercer a cidadania em sua plenitude.

Tornando à Reforma do Judiciário, é pesaroso constatar que no patamar da jurisdição, em termos operacionais, nada há de destacar de positivo a respeito do Superior Tribunal de Justiça.

Ainda não se vive aqui, é bem verdade, situação que se possa dizer caótica. Veja-se que, dos 621.783 processos que chegaram desde a instalação, foram julgados 568.944. A parte remanescente corresponde ao trabalho de um semestre, pois o Tribunal tem julgado cerca de cento e vinte mil processos por ano. Isso revela operosidade e admirável consciência profissional, mas indica claramente que, no futuro, o Tribunal poderá se inviabilizar, se nada for feito.

É preciso valorizar mais as decisões das instâncias ordinárias. É injustificável mobilizar o grau extraordinário de jurisdição para causas que se esgotam no plano do conflito intersubjetivo, sem nenhuma relevância para a Federação.

Se não forem adotados os mecanismos de contenção de recursos previstos para o Supremo Tribunal Federal, especialmente o relativo à repercussão geral da questão, que seja permitido, então, que a lei ordinária discipline casos de inadmissibilidade do recurso especial. A meu ver, trata-se de uma boa alternativa.

Com a Reforma, o Superior Tribunal de Justiça deverá receber nova e relevante incumbência. Refiro-me à Escola Nacional da Magistratura, cuja institucionalização representará decisivo passo no processo de modernização do Poder Judiciário brasileiro.

Vejo-a como órgão central de um sistema integrado pelas escolas de magistratura estaduais e federais, atuando no plano normativo e como formuladora de políticas, em relação à formação e ao aperfeiçoamento dos nossos juízes. Cumpre acentuar um outro papel importantíssimo que  terá, qual seja, o de proceder a estudos e pesquisas com vistas ao aprimoramento institucional e à melhoria da prestação jurisdicional.

Ponto dos mais controvertidos da Reforma é o concernente ao controle externo que intentam implantar. Tenho posição firme a respeito disso. Tendo em mira a defesa da imensa maioria, da quase totalidade dos nossos juízes, convenci-me da conveniência de um mecanismo correcional fora do âmbito dos tribunais, na compreensão de que o modelo atual é falho. As poucas “maçãs podres” não podem comprometer toda uma instituição, como lamentavelmente tem acontecido. O Judiciário quer rapidamente livrar-se delas.

Todavia, o controle externo que se propõe é retrocesso e representa grave ameaça à instituição. Não vejo como conciliar a composição cogitada na proposta de Reforma com os grandes avanços e conquistas da Constituição de 1988, em termos de autonomia e independência do Poder Judiciário.

Nessa ordem de idéias, preconizo que o Conselho Nacional de Justiça seja integrado exclusivamente por membros do Poder Judiciário, com o Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e o Procurador-Geral da República funcionando perante ele como órgãos de provocação.

Neste momento em que assumo a honrosa missão de presidir esta alta Corte de Justiça, que integro desde a sua criação, sei que arco com responsabilidades elevadas, que hão de me exigir coragem e obstinação.

Rogo a Deus que jamais me faltem esses predicados e peço a meus pares o apoio indispensável ao cumprimento desta missão. Terei a meu lado o eminente Ministro Nilson Naves. Talentoso, portador de sólida cultura jurídica e vasta experiência, que demonstrou sempre competência e zelo inexcedíveis nas tarefas empreendidas ao longo de sua trajetória profissional, será um prestimoso parceiro na condução da administração da Casa.

Com o entusiasmo do mineiro que, como diz João Neves da Fontoura, se parece com os rios da serra, que brotam gota a gota, sem rumor e sem pressa, das vertentes profundas do sentimento íntimo, Sua Excelência, certamente, será ainda um grande contraponto para a violenta arrancada que, segundo aquele excepcional orador, caracteriza o impulso dos gaúchos.

É hora de render homenagens ao meu antecessor e amigo, Ministro Antônio de Pádua Ribeiro. Tive o privilégio e a honra, há dois anos, de saudá-lo neste mesmo plenário, em nome da Corte, quando da sua posse na presidência do Tribunal. Com o grande descortino, o perfeito conhecimento dos problemas do Judiciário e a invejável visão institucional, atributos que eu salientara naquela ocasião, Sua Excelência, com atuação balizada pelo interesse público, deixou indelevelmente marcada a sua passagem pela presidência deste Tribunal. A volta à bancada de julgamento se dará com a reconfortante certeza do dever cumprido.

Sei que ao longo de minha árdua missão poderei sempre contar com sua experiência e ajuda, que, seguramente, me serão de inestimável valia.

Quero por fim agradecer as manifestações de apoio dos meus colegas, com os quais pretendo compartilhar minha missão, consultando-os sistematicamente. Estou certo, ainda, de que terei todo apoio do excepcional corpo de funcionários desta Casa, que jamais mediu esforços ou poupou sacrifícios para fazer dela uma instituição exemplar.

O Brasil precisa de um Judiciário eficiente e acessível a todos. Sem Justiça efetiva não há Estado Democrático de Direito, nem civilização digna desse nome. Nosso desafio é, cada vez mais, lutar pela melhoria dos serviços jurisdicionais neste país. Fazendo isso estaremos contribuindo de maneira significativa para a redução das desigualdades sociais, o fortalecimento das instituições e o triunfo do bem comum.”