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Preocupação com a lisura das eleições municipais

5 de maio de 2004

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Dois projetos de lei em tramitação no Senado Federal podem por em risco a lisura das eleições municipais deste ano e a dos pleitos seguintes. São eles os Projetos de Lei nº 284 e  285.

O primeiro condiciona a eficácia das decisões, que cassam registro ou diploma por ter ficado provado que o candidato comprou ou tentou comprar algum voto, ao seu trânsito em julgado, isto é, ao julgamento final de todos os diversos recursos cabíveis, até a última instância.

O segundo exige que o recurso contra expedição de diploma nos casos em que a votação foi viciada por falsidade, fraude, coação, abuso do poder econômico ou de autoridade e captação vedada de sufrágio, tenha que estar amparado em decisão judicial transitada em julgado.

Vejamos por partes

A possibilidade de se afastar, imediatamente, da disputa ou da função pública o candidato que, comprovadamente, tenha comprado ou tentado comprar algum voto foi introduzida na nossa legislação eleitoral em razão de um movimento popular que envolveu mais de um milhão de eleitores e contou com a participação de diversos segmentos da sociedade, entre eles a Ordem dos Advogados do Brasil e a Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.

As alterações da Lei nº 9.504/97 vieram ao encontro da vontade da sociedade de ver rapidamente apurados e punidos os ilícitos eleitorais, razão pela qual a corrupção, que já constitui o crime previsto no art. 299 do Código Eleitoral, passou a ser também causa de imediata perda do registro da candidatura ou do diploma.

Introduzido na Lei das Eleições em 1999, pela Lei 9.840, o art. 41-A foi aplicado, pela primeira vez, nas eleições municipais de 2000 e colheu significativos frutos. Diversos prefeitos e vereadores foram afastados de seus cargos porque a Justiça Eleitoral verificou que eles haviam comprado ou tentado comprar o voto de algum eleitor.

Discute-se, agora, no Congresso Nacional, se não seria melhor que a decisão que cassa registro ou diploma só tenha validade após o término do processo, depois de percorridas todas as instâncias e esgotados todos os recursos.

Tenho absoluta convicção de que não

A aprovação da proposta significará simplesmente acabar com a possibilidade de punir candidatos que corrompam ou tentem corromper eleitores, na medida em que a legislação vigente permite, que, sem maior esforço, os advogados – que têm o dever de usar todos os recursos legais em defesa de seus clientes – levem o final dos processos para depois do término dos mandatos.

O art. 41-A cuida da apuração e punição de conduta delituosa de quem já se apresentou à Justiça Eleitoral como candidato, diferentemente do que ocorre nos processos de registro, em que se discute condições de elegibilidade ou causas de inelegibilidade, ocasião na qual, então, é justo aguardar o trânsito em julgado da decisão para afastar o candidato definitivamente da disputa, embora o Tribunal Superior Eleitoral, nas Instruções para as eleições deste ano, já tenha fixado que não serão imediatamente contados os votos dados a candidatos que, no dia da eleição, ainda não possuam registro.

O bem protegido pelo artigo 41-A é a formação da vontade do eleitor e, portanto, nada justifica que, uma vez provada a captação vedada de sufrágio, seja postergada a punição. O interesse a prevalecer é o de afastar imediatamente da disputa ou da função aquele que, no curso da campanha eleitoral, compra ou tenta comprar voto.

Por outro lado, importante destacar que eficácia ou execução imediata da decisão não se confunde com seu caráter definitivo, que, este sim, torna irreversível a execução do julgado.

Assegurar eficácia imediata à decisão é cumpri-la prontamente, sem prejuízo do candidato reverter a situação caso venha a obter decisão favorável em instância superior. Assim, se a sentença for proferida antes da realização da eleição, o candidato não terá seu nome retirado da urna e poderá receber votos, cuja validade dependerá de seu apelo ser acolhido. Se julgada após a expedição do diploma, ele é afastado da função, mas a ela poderá retornar no caso de seu recurso ser provido. Conseqüentemente, o afastamento do candidato não será irreversível, mas a primeira decisão terá eficácia.

Além disso, é muito importante notar que o cumprimento imediato da decisão sempre poderá ser suspenso caso o candidato obtenha liminar dando efeito suspensivo a seu recurso – como, aliás, pode ocorrer em todos os processos em que o recurso, em princípio, não tenha esse efeito – , bastando para tanto que demonstre o sinal de seu bom direito e a possibilidade de sofrer dano irreparável.

Desse modo, condicionar o cumprimento da decisão proferida com base no art. 41-A da Lei das Eleições ao seu trânsito em julgado é desnecessário e, além de trazer uma grande frustração à sociedade que tanto lutou por eleições éticas e limpas, poderá incentivar a prática do inaceitável procedimento de compra de votos, o qual todos nós temos a obrigação de combater.

De outra parte, a pretendida modificação do artigo 262, IV, do Código Eleitoral, exigindo que o recurso nele previsto só possa ser ajuizado se estiver fundamentado em sentença transitada em julgado, proferida em outro processo também em nada virá beneficiar a lisura e a legitimidade das eleições.

Essa regra, se aprovada, significará a extinção de importante instrumento jurídico, fundamental para a proteção da lisura das eleições.

O recurso contra a diplomação, previsto no art. 262 do Código Eleitoral, contempla várias hipóteses, entre elas a do inciso IV, que se reporta ao art. 222 do mesmo Diploma e que trata da possibilidade de anulação da votação quando viciada de falsidade, fraude, coação, emprego de processo de propaganda ou captação de sufrágio vedada por lei, e, ainda, quando houver interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade em desfavor da liberdade do voto, tendo a Lei nº 9840, de 28.9.99, introduzido o art. 41-A da Lei nº 9.504/97 (que pune a compra de voto) entre as hipóteses de cabimento do recurso.

Até pouco tempo, o Tribunal Superior Eleitoral seguia vetusto entendimento de que o recurso contra a expedição do diploma fundado no inciso IV deveria vir embasado em decisão com trânsito em julgado.

Essa posição não mais subsiste, pois a Corte, sensível à necessidade de atribuir eficácia aos instrumentos jurídicos que permitem à Justiça Eleitoral controlar a legitimidade do pleito, fiscalizar a correção das atitudes e práticas observadas pelos partidos e candidatos em disputa e garantir um mínimo de igualdade entre os concorrentes, efetivamente punindo os desvios, irregularidades e abusos, chegou à conclusão de que o referido recurso poderia vir instruído com prova pré-constituída, podendo ser ela a já formada em outros processos, mesmo quando ainda não tivesse sido apreciada por algum juiz, ou em documentos, desde que preexistentes ao ajuizamento do recurso.

Desse modo, os fatos tidos por ilegais podem ser apurados no próprio recurso contra a diplomação, desde que o recorrente assim requeira, juntando provas ou indicando as que pretende sejam produzidas, nos termos do art. 270 do Código Eleitoral.

Ao assim entender, repita-se, o Tribunal Superior Eleitoral mais uma vez preocupou-se em dar a maior efetividade possível aos processos que pretendam investigar e eventualmente punir práticas que objetivem desequilibrar a disputa eleitoral, coerente com a postura que vem adotando em outras matérias, como por exemplo, na apuração de captação vedada de sufrágios, prevista no art. 41-A da Lei nº 9.504/97, cuja decisão tem cumprimento imediato e na celeridade da ação de impugnação do mandato eletivo, que a partir das eleições deste ano deve observar o rito do processo de registro de candidaturas descrito na Lei Complementar nº 64, de 1990.

A modificação da jurisprudência buscou evitar o que ocorria com muita freqüência nas eleições anteriores: a decisão na investigação judicial não transitava em julgado a tempo de servir de base para a propositura de recurso contra a diplomação, que deve ser ajuizado até três dias após a diplomação.

Aquele entendimento, hoje superado, levava a que o recurso contra a expedição do diploma fosse inócuo e que os possíveis abusos do poder econômico ou do poder político, assim como outras graves e inaceitáveis práticas ilegais, deixassem de ser apurados e seus responsáveis punidos.

Esse quadro, que estava afastado, corre o risco de retornar.

Exigir que o recurso contra a expedição de diploma previsto no artigo 262, IV, do Código Eleitoral esteja amparado em decisão com trânsito em julgado, representará enorme retrocesso no que se refere à coibição e punição de ilegalidades que comprometam a legitimidade e a lisura das eleições no Brasil.

Tenho certeza, porém, que nossos Congressistas saberão elaborar e manter leis justas que busquem a igualdade social e a soberania do povo brasileiro.