Presença feminina na tradição de 206 anos do STM

17 de março de 2015

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Maria Elizabeth Guimaraes

“De Bertha Lutz a Maria da Penha, árduas foram e permanecem sendo as batalhas pela igualação de gênero. As mulheres, hoje, exercem posições de destaque e de liderança devido ao seu esforço em aprimorar-se intelectualmente, à sua inteligência emocional e à sua atitude visionária, desprovida de preconceitos, uma vez que ela própria foi, e lamentavelmente ainda é, vítima de exclusões.”
Ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha.

 

Fundado em 1808, por D. João VI, o Superior Tribunal Militar (STM) é o mais antigo Tribunal brasileiro. Como característico aos círculos marciais, em que sempre prevaleceu a figura masculina, em quase 200 anos de história, a Corte jamais tivera em sua composição uma mulher. A responsável por quebrar esta tradição foi Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha, ao ser nomeada ministra do STM em 2007. Em junho do ano passado, a mineira de Belo Horizonte quebrou outro paradigma: com a aposentadoria do ministro Raymundo Nonato de Cerqueira Filho, ela assumiu a presidência do Tribunal, para completar o biênio 2013–2015, tendo como vice-presidente o ministro Fernando Fernandes.

Aos 54 anos, casada com o General de Divisão Romeu Costa Ribeiro Bastos, Maria Elizabeth é bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), possui especialização em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestrado em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa), doutorado em Direito Constitucional pela UFMG e pós-doutorado em Direito Constitucional na Universidade Clássica de Lisboa (UCL). Atuou também como professora de graduação e pós-graduação em faculdades de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Distrito Federal.

Nesta entrevista ela fala sobre um de seus principais projetos à frente do STM: a digitalização dos arquivos da Corte, processos que remontam os primórdios de 1808. Isso inclui a divulgação pública de conteúdos relacionados a momentos marcantes na história da Nação, a exemplo das sessões secretas sob a égide da Lei de Segurança Nacional. São cerca de 10 mil horas de áudios de suas plenárias que aconteceram entre 1975 e 2004. Aproximadamente 10% desse total correspondem a julgamentos secretos de militantes de esquerda realizados nos últimos dez anos do período de regime militar. A meta busca, principalmente, ampliar o acesso à rica fonte de estudos e pesquisas que representam os arquivos do Tribunal.

Ao fazer um balanço de sua gestão, a ministra Maria Elizabeth destaca os reflexos de seu trabalho ao longo de oito anos, nos quais se vê como participante e testemunha de um momento histórico na Corte Militar. Algo que, em sua opinião, repercute na trajetória das mulheres brasileiras, que, com sua determinação, talento, esforço e valor, têm contribuído para tornar o Brasil um país mais justo.

Revista Justiça & Cidadania – Em março, a senhora encerra sua gestão como presidente do STM. Qual o balanço que faz do período em que esteve à frente da Corte?
Ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha – Apesar do curto interstício na Presidência do STM, as metas e os desafios por mim almejados foram bem-sucedidos e resultaram em benefícios aos jurisdicionados, servidores e cidadãos brasileiros. As ações que dependeram de soluções internas revelaram-se exitosas, valendo destacar o início da digitalização dos processos históricos que remontam os primórdios de 1808 e a consequente divulgação virtual na página web da Justiça Militar da União; a degravação da fita de rolo para mídia digital das sessões secretas sob a égide da Lei de Segurança Nacional. A realização de relevantes seminários e encontros jurídicos e as conquistas legislativas obtidas no Congresso Nacional me fazem crer que meus esforços frutificaram.

JC – De fato, quando a senhora tomou posse, um de seus principais projetos seria a digitalização dos arquivos da corte, visando, em particular, facilitar a consulta por parte de pesquisadores. Qual a atual situação deste projeto?
MEG – Ele encontra-se articulado em três frentes, a saber; livros antigos e de formato diferenciado estão sendo digitalizados na sede do Arquivo Nacional na cidade do Rio de Janeiro, e aqui destaco meus agradecimentos a tão nobre instituição, verdadeira guardiã da historiografia documental do Brasil. De outro lado, o Instituto dos Advogados Brasileiros, instituição jurídica mais antiga das Américas, igualmente sensível à relevância de oferecer à sociedade quase vinte milhões de páginas processuais que, em boa medida, refletem contextos, enriquecem, complementam e reforçam fatos e episódios históricos nacionais, obteve a aprovação do Projeto de Digitalização pela Lei Rouanet, junto ao Ministério da Cultura, de modo a permitir, na condição de proponente, a busca de patrocinadores para viabilizar a transposição digital de documentos datados do início do século XIX até o ano de 1989. Essa iniciativa, de autoria do Dr. Técio de Lins e Silva, presidente do IAB, em parceria com o STM, merece o reconhecimento e a gratidão da Corte. Por fim, os autos processados após 1990 estão sendo digitalizados internamente, pela Diretora de Documentação do STM, tudo nos moldes das normas vigentes do Arquivo Nacional.

Sem dúvidas, a digitalização dos feitos da Justiça Militar Federal será de extrema valia para dar publicidade e máxima divulgação aos julgados do Brasil Imperial e Republicano, em especial os relativos ao período do regime militar, de forma a esclarecer e mostrar ao povo brasileiro a imparcialidade do Superior Tribunal Castrense, bem como sua coragem e independência naquele período, pondo fim aos estigmas a ele lançados injustamente.

Tal como colocado, apesar de inexistir sigilo a estas informações, estando os arquivos da JMU abertos ao público em geral – basta um mero requerimento –, a transparência e o largo espectro da informatização ampliará o acesso à informação e ao conhecimento, mormente pelo fato de os depoimentos colhidos judicialmente tenderem a ter maior credibilidade por se encontrarem imunes aos lapsos de memórias e ao distanciamento temporal.

JC – Outra de suas propostas seria lutar pela inclusão de um representante da Justiça Militar da União no Conselho Nacional de Justiça. Quais ações foram feitas neste sentido?
MEG – O Conselho Nacional de Justiça, por definição e finalidade, tem o propósito de espelhar a representatividade dos órgãos judiciais e os anseios da Justiça como um todo. Portanto, natural incluir os representantes tanto da Jurisdição Militar quanto da Eleitoral naquele órgão de controle.

Para a Justiça Castrense, tal assento é de suma importância tendo em vista que, não obstante seus dois séculos de existência, a Justiça Militar da União ainda é extremamente desconhecida, seja pela sociedade, seja pelos próprios integrantes do Poder Judiciário e operadores do Direito.

Vale mencionar que o tema foi debatido no Plenário do STM, sendo unânime a indicação de que o representante da Corte deveria ser um ministro civil e togado.

Nesse norte, durante minha gestão, uma das ações que intentei foi elaborar uma sugestão de Proposta de Emenda Constitucional, apresentada ao senador Romero Jucá que, de pronto, comprometeu-se com a causa, sendo o autor da PEC nº 21/2014 junto ao Senado Federal.

A proposta obteve excelente receptividade por parte do relator, senador Inácio Arruda, a ela favorável, e, colocada em pauta na Comissão de Constituição e Justiça daquela Casa, houve pedido de vista, que interrompeu sua apreciação.

Atualmente, com o início da legislatura, para dar-lhe prosseguimento, aguarda-se a eleição dos novos membros da CCJ e de seu Presidente, bem como a designação de relator.

JC – Além dessas questões específicas, quais outros desafios foram enfrentados durante sua gestão e quais as principais conquistas?
MEG – O principal objetivo da Justiça é promover a paz social, contribuir para a manutenção da ordem e da democracia. Nesse sentido, os processos judiciais de competência da Presidência foram trabalhados com a máxima celeridade e efetividade possível, com a correta aplicação da Sistemática da Repercussão Geral.

Alterei o Regimento Interno do STM para que, a exemplo do Supremo Tribunal Federal (STF), pudesse julgar os processos que me foram distribuídos antes de assumir a Presidência, de forma a não deixar qualquer passivo, ainda que mínimo, para meus colegas.

Na esfera administrativa, foi criada a Assessoria Internacional da Presidência, já existente nos demais tribunais superiores, de suma importância para o diálogo com vários atores estrangeiros, jurisdições e organismos internacionais.

Nesse diapasão, ela foi fundamental para a articulação e organização do Encontro da Justiça Militar da União com a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, evento de magnitude ímpar realizado na sede do STM em fevereiro do corrente ano, que debateu temas relativos ao papel das Justiças Militares no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O encontro, que contou com a participação dos Juízes e Comissionados, demonstrou que, ao contrário do erroneamente difundido pelos partidários da extinção da Justiça Militar no Brasil, inexiste aversão pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a esta Justiça desde que respeitados os princípios e as garantias fundamentais dos jurisdicionados.

Paralelamente, foi revitalizada a Assessoria Parlamentar, protagonista de uma atuação eficaz junto ao Congresso Nacional, responsável pelo encaminhamento de diversos projetos, tais como a alteração na Lei de Organização da Justiça Militar para o julgamento monocrático de civis pelo Juiz-Auditor; pela aprovação da Lei nº 13.096/2015, que trata da gratificação por exercício cumulativo de jurisdição; bem assim pela elaboração de pareceres e realização de audiências com parlamentares para que melhor compreendam o papel da Jurisdição Castrense.

Sob outro conspecto, foi dado apoio ao Projeto da Justiça Eletrônica que propiciará, em breve, a implementação de um Sistema Eletrônico de Informação e agilizará o exercício da jurisdição, entre aperfeiçoamentos outros que advirão da Tecnologia da Informação para melhor servir a Instituição e o cidadão.

Alfim, por meio da Assessoria de Comunicação Social, implementei o projeto “Diálogos Abertos” visando a maior interação com a sociedade civil; conclui o lançamento do novo Portal da JMU, um esforço conjunto de três Presidências, e incentivei o aprimoramento de coberturas jornalísticas por meio das mídias sociais, entre elas o canal do STM no YouTube, medidas que vêm instigando o debate e incentivando a produção de artigos acadêmicos e doutrinários, fundamentais para dar visibilidade a esse ramo especializado do Direito.

JC – Em 2010, a senhora assumiu a presidência do Grupo Especial de Estudos, com o objetivo de sugerir alterações nos Códigos de Processo Penal Militar e Penal Militar. Como se deu o trabalho deste grupo?
MEG – O Grupo Especial de Estudos, com o objetivo de sugerir alterações no Código Penal Militar, concluiu seus trabalhos em abril de 2013, após vinte e três longas e profícuas reuniões, nas quais foram observadas as normas para elaboração, redação e alteração de leis e atos normativos constantes da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, e do Decreto nº 4.176, de 28 de março de 2002.

Precederam às discussões do grupo uma consulta pública disponibilizada no sítio do STM, que se estendeu por um período de dois meses, sendo as propostas enviadas por meio eletrônico devidamente compiladas e sistematizadas junto com as sugestões encaminhadas pelos órgãos oficiais consultados.

O foco da Comissão – de composição heterogênea e democrática e que contou com a participação de ministros do STM, magistrados das Justiças Militares Estaduais, Defensores Públicos da União, Procuradores do Ministério Público Militar, juristas e professores –, foi a harmonização da legislação penal militar vigente com a Constituição de 1988, mediante a compatibilização das penas em consonância com os bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal especializado, bem assim a tipificação objetiva dos crimes militares, evitando a formulação de normas penais em branco.

Posteriormente, constituiu-se novo grupo para debater e propor a reforma do Código de Processo Penal Militar, presidido pelo Ministro Artur Vidigal de Oliveira.

Ciente da necessidade da atualização normativa, durante meu mandato na Presidência do Tribunal, no ano de 2014, em audiência com o Presidente da Câmara dos Deputados, solicitei e foi autorizada a criação de um Grupo de Trabalho, formado por dez parlamentares, um representante do STM, um de cada Tribunal de Justiça Militar (TJM) estadual e um do Ministério Público Militar (MPM) para discutir e sugerir alterações normativas no âmbito legislativo.

JC – Existe uma corrente do Judiciário que defende a extinção do STM. Qual sua opinião sobre isso?
MEG – Eu respondo afirmando que todo oficial das Forças Armadas busca construir seu perfil e pautar sua autoridade à luz da legislação vigente. São cidadãos vocacionados, que têm como primeiro ato de ofício o juramento de lealdade e sacrifício à Pátria.

Com isso, quero dizer que as ações praticadas pelos militares e suas consequências no âmbito da caserna, no interior da corporação, são de difícil valoração para um juiz ordinário que a desconhece, porquanto a própria vida é secundária para aquele que veste a farda. Valores éticos especialíssimos norteiam, pois, o espírito do soldado.

Daí porque aqueles que defendem a extinção das Justiças Militares, federal e estaduais, não têm consciência das nefastas consequências que dela adviriam.

Na Justiça Penal Castrense, os processos são julgados em curtíssimo espaço de tempo, elemento fundamental para a preservação da ordem dentro dos quartéis. Homens armados, detentores do monopólio da violência legítima, têm de ser controlados com rigor porquanto a quebra da cadeia de comando ameaça a estabilidade do regime político. Estou a falar na preservação do Estado Democrático de Direito, uma vez que a contenção de levantes ou insurgências de cidadãos armados pelo Estado é fundamental para estabilidade e a paz social.

A estrutura verticalizada das Forças Armadas faz exsurgir os primados da hierarquia e disciplina como meta-valores. A função militar se diferencia das demais pela missão que encabeça, daí a subordinação ganhar destaque por preservar a eficiência e a obediência no seio da tropa. É nesse cenário que a Justiça Militar, seja Federal ou Estadual, ganha preponderância e prevalência na garantia dos pilares fundantes do próprio Poder Judiciário.

Imperioso a pronta, ativa e ágil estrutura judiciária, que deve ser integrada por magistrados devidamente preparados para apurar os delitos e punir os culpados com celeridade e expertise.

Tanto é assim que na Oficina de Trabalho denominada “A Justiça Militar – Perspectivas e Transformações”, realizada pelo CNJ em 2014, por consenso, concluiu-se sobre a imprescindibilidade da permanência das Justiças Especializadas (Militar Federal e Estadual) e pela necessidade da ampliação de sua competência, para adequar-se aos ajustes de ordem estrutural e à modernização da Judicatura.

Por outro lado, não se olvide que as Forças Armadas são extremamente demandadas nos Estados Democráticos. Em tempos pretéritos a História do Brasil foi marcada por mudanças, muitas delas implementadas pelos militares ou com o seu apoio. Rememoro a independência e a razão pela qual até hoje a Bahia comemora o dia Dois de Julho, quando foram derrotados os portugueses lá sediados, por volta de 1825. Relembro, outrossim, a manutenção da unidade territorial pátria durante o período regencial e o segundo reinado, bem como a vitória na Guerra da Tríplice Aliança e, também, a instituição da República e, posteriormente, da República Nova, quando os militares insatisfeitos com a política café-com-leite iniciaram movimentos como o Tenentismo, que culminaram com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder.

Pontuo ter a Intentona Comunista saído do interior dos quartéis, sob o protagonismo de Luís Carlos Prestes.

E, contemporaneamente, saliento a participação do Exército, Marinha e Aeronáutica na pacificação das comunidades do Rio de Janeiro, sua atuação em missões de paz no exterior; sua defesa nas fronteiras terrestres, marítimas e aéreas brasileiras em um mundo cada vez mais intimidado pelo narcotráfico e pelos crimes transnacionais; seu papel humanitário junto a populações tradicionais, indígenas e ribeirinhas no norte do País; sua proteção ao meio ambiente, entre atribuições outras. O fato é que, hodiernamente, são elas responsáveis por missões as mais diversificadas, que vão ao encontro do ideário de legitimidade de um Brasil democrático.

Portanto, incoerentes, para dizer o mínimo, proposições que propugnam a extinção das justiças castrenses, desprovidas que são de argumentação técnico-jurídica e de fundamentos plausíveis, marcadas, tão somente, por uma forte carga de preconceito.

JC – Ainda neste aspecto, há quem argumente, na defesa da extinção do STM, que a Justiça é Igual para todos; e que não haveria necessidade de uma Corte específica para julgamentos de militares. Mas é claro que as regras que regem um julgamento comum e um militar são diferentes; até porque os militares seguem seu próprio código de conduta. A senhora poderia apontar as principais diferenças entre ambos?
MEG – Inicialmente, ressalto não ter a Justiça Militar Federal como objetivo julgar os militares, e, sim, os delitos militares definidos em lei, independentemente de seu autor, civil ou militar.

Para os leigos, existe uma visão equivocada de que esta Justiça Especializada seria constituída por militares, para julgar militares. É o momento de desmistificar tal entendimento.

A verdadeira finalidade da Jurisdição castrense é proteger as instituições militares. Daí o critério adotado pela Lex Magna de 1988 não ter sido o ratione personae. Isso porque, salvo o ratione legis, nenhum outro definidor de competência seria hábil a contemplar, isoladamente, todas as hipóteses em que a vulneração ao bem jurídico afeta direta ou indiretamente as Forças Armadas.

Ocorre que, devido à importância dos bens jurídicos tutelados pelo Código Penal Militar, algumas regras diferenciam-se das normas contidas no Código de Ritos comum e em sua legislação complementar. Assim, os condenados na Justiça castrense não se beneficiam de diversos institutos previstos na legislação ordinária, a exemplo da substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direito ou das medidas despenalizadoras inseridas pela Lei nº 9.099/1995.

Certo é que, do militar, é exigida maior disciplina, sendo penalizadas diversas condutas que, no meio civil, passariam de meros fatos corriqueiros, sem repercussões no âmbito penal, como as hipóteses de dormir em serviço, abandonar o local de trabalho ou embriagar-se em serviço.

A razão é que ele desempenha papel importantíssimo para a Nação e deve estar sempre pronto para responder ao chamamento de seus superiores, seja na defesa do quartel, seja na da Pátria. Nesse sentido, o art. 28 do Estatuto dos Militares estabelece diversas regras que “impõem, a cada um dos integrantes das Forças Armadas, conduta moral e profissional irrepreensíveis, com a observância dos […] preceitos de ética militar”.

E por nortearem-se sob o abrigo de tais preceitos, os integrantes das Forças Armadas devem respeitar as leis, garantidores que são da Ordem e do Progresso, síntese ideário insculpido na bandeira nacional.

Engana-se, assim, aquele que crê ser a Justiça militar uma justiça corporativa. Ao revés, o rigor é muito maior e nela não se aplicam os princípios da bagatela ou insignificância, tampouco as medidas despenalizadoras da legislação criminal comum. Suas penas são mais severas que as previstas para delitos idênticos no rito ordinário, tudo em prol da manutenção da hierarquia e disciplina e do respeito às instituições castrenses – no caso de crimes cometidos por cidadãos civis –, fatores essenciais para a própria sobrevivência e coesão do Estado Brasileiro.

Eu concluo dizendo que o princípio da isonomia, tão saudável à concretização do devido processo legal, estatui deverem os desiguais serem tratados desigualmente na medida de suas desigualdades. O primado da Justiça funda-se na sua estrita observância, sendo este o mister das Jurisdições Militares.

JC – Quais foram os julgamentos mais relevantes ou polêmicos dos quais participou desde que passou a ocupar o cargo de ministra do STM?
MEG – Os mais polêmicos, certamente, foram aqueles envolvendo o direito dos cidadãos homossexuais. Muito antes de o STF ter se manifestado a favor da união homoafetiva, assegurei, em decisão administrativa, o direito dos servidores da Justiça Militar da União de incluir seus companheiros e/ou companheiras, no plano de saúde como beneficiários.

No seio das Forças Armadas, debater a orientação sexual dos seus integrantes consistia em um verdadeiro tabu, porém, hoje, a temática é recorrente, a despeito de encontrar resistências.

Defendi, ainda, em diferente julgado, a aplicação do Pacto de San Jose da Costa Rica com vistas à incidência do art. 366 do Código de Processo Penal (CPP) no foro castrense, a fim de propiciar a suspensão do processo penal quando declarada a revelia do réu, após o chamamento judicial por citação editalícia. Dispõe o referido Tratado, que possui status de norma supralegal, a necessidade de comunicação prévia e pormenorizada ao acusado de imputação contra ele formulada, de modo a propiciar concretude ao princípio constitucional da ampla defesa. Se sua ciência é meramente ficta, como em princípio ocorre na citação por edital, não há, efetivamente, a possibilidade de aplicação desse postulado.

Para além, suscitei a revogação pela Constituição Federal dos arts. 9º, § 1º, e 12, da Lei nº 5.836, de 5 de dezembro de 1972, dispositivos que preveem o julgamento secreto durante o procedimento do Conselho de Justificação.

Na mesma linha, votei pela revogação do art. 305 do Código de Processo Penal Militar (CPPM) que dispõe poder o silêncio ser interpretado em prejuízo do réu, diante de sua incompatibilidade com os ditames constitucionais.

Em outro feito, defendi a laicidade do Estado, em um processo no qual um Capelão da Aeronáutica foi denunciado por peculato por se apropriar dos óbolos e dízimos ofertados pelos fiéis e destinados à Igreja. Naquele caso, apontei a incompetência da Justiça Militar da União por não se tratar de bens sob administração militar.

JC – Quando de sua posse como ministra do STM, a senhora declarou estar animada com os desafios de realizar seu trabalho em um ambiente totalmente masculino. Como tem sido essa convivência, quais as experiências mais relevantes que poderia citar?
MEG – Tenho consciência de que meu trabalho ao longo desse tempo assinala não só um marco histórico na existência da Corte Militar, mas, sobretudo, repercute na trajetória das mulheres brasileiras, cuja determinação, talento, esforço e valor têm contribuído, de modo decisivo, para tornar o Brasil um país mais justo, mais consciente e mais aberto a todos, sem exclusões, discriminações ou intolerâncias.

Mesmo após oito anos integrando o STM, estou ciente de ser atora e espectadora de um momento de transformações, que assume o elevado sentido de verdadeiro rito de passagem.

Mais, vejo que, paulatinamente, o Estado Brasileiro vem desconstruindo posturas estigmatizantes, ao tempo em que consagra políticas afirmativas em favor da igualdade de gênero.

De minha parte, esforço-me em defender e dar voz aos excluídos, postulando a mais ampla e absoluta isonomia entre seres humanos. Sendo a primeira mulher a integrar uma Corte predominantemente masculina, tenho a oportunidade de mostrar a sociedade a importância da inclusão, do respeito à alteridade e da relevância da tolerância.

JC – A senhora é a primeira mulher a exercer a Presidência do STM, assim como foi a primeira mulher a integrar a composição desta Corte. Quais são os reflexos da presença feminina no STM de 2007 para cá?
MEG – Sinto-me honrada em ser a primeira mulher a tomar assento e a presidir o STM, a mais antiga Corte de Justiça do Brasil, que completou, em 2008, dois séculos de existência. É uma conquista de muitos anos de luta, que não é só minha, mas de todas as brasileiras, cada qual no seu universo, em uma sociedade ainda sexista e discriminatória.
Estou convicta de que a participação feminina no Poder Judiciário e no STM, em especial, tem contribuído sobremaneira para ampliar horizontes e enxergar as celeumas sob um ângulo antes inexplorado, combatendo a rigidez de pensamento, a exclusão das minorias e o mero tecnicismo ou formalismo jurídico, com vistas à persecução da Justiça substancial.

De Bertha Lutz a Maria da Penha, árduas foram e permanecem sendo as batalhas pela igualação de gênero. As mulheres, hoje, exercem posições de destaque e de liderança devido ao seu esforço em aprimorar-se intelectualmente, à sua inteligência emocional e à sua atitude visionária, desprovida de preconceitos, uma vez que ela própria foi, e lamentavelmente ainda é, vítima de exclusões.

Agregue-se, estarem os valores éticos e morais, comprovadamente, entre os fatores que as colocam como melhores administradoras públicas e aplicadoras do Direito, com baixos índices de corrupção.

Sem dúvida o empoderamento feminino aperfeiçoa a República. A ampliação da participação da mulher nos espaços públicos e privados é condição para o aperfeiçoamento da cidadania, afinal, como disse em meu discurso de posse, uma democracia sem mulheres é uma democracia incompleta.