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Prorrogação de permissões de serviços públicos: seria uma norma de efeito concreto?

28 de fevereiro de 2008

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O tema atinente à chamada “prorrogação” de permissões de serviços públicos de transporte coletivo de passageiros tem despertado atenção, ante o número de representações por inconstitucionalidade de leis (municipais e uma no plano estadual), ajuizadas pelo Ministério Público perante o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Em duas delas (uma por unanimidade, outra por maioria), houve a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos de leis municipais que mantiveram permissões, enquanto que, em três outros controles concentrados e abstratos de constitucionalidade, estes não foram conhecidos (uma por unanimidade, duas por maioria) por se reconhecer que, em tais hipóteses, se tratava de norma de efeito concreto, a tornar essa via inadequada, na linha do entendimento do STF.
Percebe-se, aqui, que, somente no plano processual, esse tema já desperta, por si só, grande interesse para os operadores do Direito, sendo que as últimas decisões do Órgão Especial são as três últimas mencionadas, levando a crer que houve mudança de orientação do mais alto Órgão Colegiado do Tribunal de Justiça deste Estado.
A seguir, vai-se, através de ligeiras considerações, abordá-lo apenas sob essa perspectiva, deixando-se para outra oportunidade o debate da denominada prorrogação (rectius: manutenção) de permissões preexistentes à Lei nº 8.987/95.
Como se sabe, o controle abstrato de inconstitucionalidade é um ato político, conforme acentuou o ministro Moreira Alves, exercido pelo STF, tendo por objeto a lei ou ato normativo federal, distrital ou estadual (art. 102, I, “a”, primeira parte, da Lei Fundamental).
Aos Estados está, por seu turno, cometida a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual (art. 125, § 2º, da Carta Magna).
O controle abstrato de normas somente é cabível para os atos do Poder Público (excluídos os atos normativos privados: acordos, pactos, compromissos, estatutos de associações, convenções, etc., que, se ofenderem a Constituição, poderão ser declarados inválidos, observa Zeno Veloso (1), através da via ordinária), com atributos de generalidade, abstratividade e impessoalidade, poderão ser submetidos à fiscalização de constitucionalidade, através de ação direta, ou, no caso dos Estados, de representação.
Mas qual será o significado desses atributos?
Na doutrina, observa Marcelo Caetano (2), em relação ao atributo ‘abstração’, que “enquanto nas normas se formula abstratamente a previsão de circunstâncias que poderão vir a dar-se e que servem de pressuposto de conduta a seguir em geral por todos quantos venham a encontrar-se nessas circunstâncias; no caso concreto está-se perante circunstâncias já verificadas e relativamente às quais se individualiza a conduta de pessoas determinadas”.
Para o referido e saudoso autor, a generalidade “está na sua abstração, isto é, em ser formulada de tal modo que não se saiba quantas pessoas, nem quais virão a ser abrangidas pelos seus comandos”.
E dá exemplos: “Podem estes abranger apenas uma categoria restrita (os professores de uma Faculdade de Direito, os combatentes da guerra de 1914-18, ou como sucede freqüentemente nas disposições transitórias, aqueles que no momento da publicação da lei se encontrem em determinada situação), ou até apenas o titular de um órgão singular que se sabe, portanto, ser um único indivíduo: desde que a norma seja decretada para vigorar sucessivamente por tempo indefinido ou por período tal que se torne aplicável a todos quantos, durante a sua vigência, possam achar-se nas circunstâncias previstas para caírem sob a respectiva alçada, a generalidade existe”.
Na hipótese de o comando dirigir-se a uma categoria perfeitamente determinada de pessoas, conforme o exemplo do ilustre administrativista, os atuais funcionários da Direção-Geral “X”; os antigos combatentes da guerra tal, neste caso o critério para distinguir o ato da norma será o da permanência ou instantaneidade da execução.
Se todos os atuais 2º oficiais do serviço “X” são promovidos a 1º oficiais, sendo a execução instantânea, há ato e não norma.
Porém, se aos atuais 2º oficiais do serviço “X”, ao contrário do que por hipótese sucederia, é facultada a promoção por antigüidade até Diretor-Geral, é norma e não ato, visto que a indeterminação das circunstâncias em que, a cada um, corresponde o aproveitamento de tal faculdade, incerteza do tempo e da pessoa a quem será aplicável o preceito, isto é, o que se pode chamar de vigência sucessiva mantém-lhe o caráter de regra abstrata.
Mas tal qual concebeu Hans Kelsen, mestre da Escola de Viena, há exemplo por ele formulado que continua irrespondível, conforme frisou o ministro Sepúlveda Pertence, no voto por ele proferido na ADIn 2.057, relator ministro Maurício Correa, in verbis:
“Não é o número de destinatários que decide entre ser a norma abstrata ou concreta: dizer o pai ao seu filho que ele está obrigado a ir à missa todos os domingos é estabelecer norma geral; agora dizer que todos os filhos têm de ir, um determinado dia, visitar o avô, é uma norma concreta, ainda que com vários destinatários” (in RTJ, v. 173, p. 490).
Na doutrina, pode-se, ainda, referir à posição de Celso Antonio Bandeira de Mello (3). Ao se deter no exame dos atos abstratos, considera-os atos normativos, que se adequam, se amoldam ao conceito de lei em tese. Para esse autor, tais atos são os que prevêem reiteradas e infindas aplicações, as quais se repetem cada vez que ocorra a reprodução da hipótese nele prevista, alcançando um número indeterminado e indeterminável de destinatários. Dá, como exemplo, o regulamento cujas disposições colherão sempre novos casos tipificáveis em seu modelo abstrato.
Por seu turno, Sergio Ferraz (4) destaca que “é da essência de lei de efeitos concretos que a produção dos efeitos lesivos ao impetrante ocorra independentemente de qualquer ato que seja necessário para que a norma se torne concretamente eficaz … (omissis)…” (MS 20.993-3, rel. min. Moreira Alves, DJU 2.10.92, p. 16.843).
Na jurisprudência do STF não se considera possível o controle abstrato de normas sobre leis de efeito concreto, sem caráter de generalidade. Leis, apenas no sentido formal, cujo conteúdo encerre preceito que tem objeto determinado e destinatários certos (leis casuísticas), não se prestam ao referido controle.
Emblemático é o julgamento da ADIn nº 647-DF – Medida Liminar, relator ministro Moreira Alves, que expôs a doutrina que tem sido seguida pela Excelso Pretório:
“A ação direta de inconstitucionalidade é o meio pelo qual se procede, por intermédio do Poder Judiciário, ao controle da constitucionalidade das normas jurídicas in abstracto. Não se presta ela, portanto, ao controle da constitucionalidade de atos administrativos que têm objeto determinado e destinatários certos, ainda que esses atos sejam editados sob a forma de lei – leis meramente formais, porque têm forma de lei, mas seu conteúdo não encerra normas que disciplinem relações jurídicas em abstrato” (RTJ 140/41).
Portanto, ante a sintonia a respeito do conceito de lei de efeito concreto entre a doutrina e a jurisprudência, pode-se passar a examinar, apenas no plano do cabimento ou não do controle concentrado e abstrato de inconstitucionalidade, a hipótese tipificada no art. 6º, in fine, da Lei nº 972/99, do Município de Araruama, que manteve as atuais permissões e autorizações delegadas a uma única empresa transportadora daquela localidade. Esse dispositivo tem o seguinte texto, verbis:
“Art. 6º. A permissão de serviço público de transporte coletivo será formalizada mediante contrato de adesão, sem prejuízo de seu caráter precário, mantidas, automaticamente, pelo prazo de quinze anos, prorrogável uma única vez, as atuais permissões e autorizações”.
Desde logo, observa-se nesse texto que há, claramente, duas disposições: a) a permissão de serviço público de transporte coletivo de passageiros será formalizada mediante contrato de adesão, sem prejuízo de seu caráter precário; e b) mantidas automaticamente, pelo prazo de quinze anos, prorrogável uma única vez, as atuais permissões e autorizações.
Como observa Humberto Ávila (5), as normas não são textos, nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação; e as normas, no seu resultado.
Os dois comandos, então, extraídos são:

a) No primeiro caso, em toda e qualquer permissão, uma das modalidades de delegação de execução indireta de serviços, deve haver um contrato administrativo, com prazo determinado (art. 57, § 3º, da Lei nº 8.666/93), com a observância de elementos essenciais (art. 23, da Lei nº 8.987/95, possivelmente repetida na referida lei municipal); precedida de licitação (art. 175, caput, e 37, XXI, ambos da Constituição da República);
b) No segundo, extrai-se norma no sentido de que as permissões delegadas (sim, pois são permissões por linha e não por área) a única empresa, que executa indiretamente os serviços públicos de transporte coletivo de passageiros por ônibus do Município de Araruama e que continuava a executar os serviços no momento da publicação da Lei municipal nº 972/99, foram mantidas pelo prazo de quinze anos, havendo possibilidade de final desse prazo ser prorrogada (aqui sim, se cogita da figura da prorrogação, pois se as permissões ostentadas por essa única empresa haviam sido firmadas por prazo indeterminado, não se podia cogitar de prorrogação, porém de se conferir um prazo para que eventualmente pudesse amortizar os seus investimentos).

Há, entre elas, diferença marcante.
No primeiro caso (a), nota-se, à evidência, a presença do atributo abstração, pois a norma impõe condições para quaisquer pessoas que se desconhecem para que não somente deverá haver escolha prévia, através de licitação, do futuro permissionário, como também se lhes impõe o atendimento de circunstâncias ou exigências na formalização do título que o vencedor do certame ostentará.
Trata-se, com rigor, de norma jurídica com os atributos de abstração e de generalidade.
No segundo caso (b), tal inocorre, pois no momento da publicação da Lei municipal nº 972/99, já se encontrava na situação de titular de permissões de serviços de transporte coletivo, naquele momento, a única empresa transportadora de Araruama. Por isso, o emprego do termo “atuais”.
O significado desse termo revela que se trata de algo presente, que ocorre no momento em que se está falando.
Há, conforme observa Humberto Ávila, determinados termos que apresentam significados intersubjetivados, tais como “vida”, “morte”, “antes”, “depois”, que não precisam a toda nova situação ser fundamentados.
Portanto, “atuais”, no contexto da Lei nº 972/99, eram as permissões existentes ou preexistentes à publicação desse diploma legal, cuja titular, repita-se, era a única empresa operadora dos serviços públicos de transporte coletivo daquela comuna.
Aqui, evidencia-se tratar-se de norma de efeito concreto, que alcançou especificamente pessoa determinada. É uma
norma concreta.
Aliás, no primeiro caso (a), o número de pessoas que poderão estar interessadas na permissão é indeterminado e indeterminável, não se sabe hoje quem e quais são essas pessoas e quem e quais poderão ser no futuro, a revelar a abstração.
Já, no segundo (b), é perfeitamente determinada e determinável a empresa titular das permissões de Araruama, a rigor a única transportadora nas condições previstas na parte final do art. 6º, da referida Lei nº 972/99, o que evidencia ato e não norma jurídica com atributo de abstração.
Por outro lado, dúvida não subsiste, no segundo caso (b), de que a incidência da norma de efeito concreto sobre a situação fática da única empresa transportadora operante do serviço público de transporte coletivo de passageiros ocorreu de modo instantâneo e numa única vez. Não mais ocorrerá pela simples circunstância de estarem completamente exauridos os efeitos da parte final do referido art. 6º, da Lei nº 972/99.
O mesmo não se dá com a incidência da norma, no plano abstrato, como norma em tese, no primeiro caso (a), pois sua incidência ocorrerá de modo permanente, desde que, naturalmente, presentes estejam os elementos fáticos do tipo do art. 6º, primeira parte, ora em pauta.
Estas breves considerações são oportunas, em face do julgamento, no dia 11 de abril de 2005, da Representação por Inconstitucionalidade nº 19/2001 de três dispositivos da Lei nº 972/99, dentre os quais a segunda parte do seu art. 6º, cuja constitucionalidade foi questionada pelo Ministério Público deste Estado, através desse controle concentrado e abstrato perante o E. Órgão Especial do Tribunal de Justiça também deste Estado, não sendo conhecida por maioria de votos, em que se entendeu tratar-se, na espécie, de norma de efeito concreto, na linha do entendimento do Supremo Tribunal Federal.

AUTORES REFERIDOS _____________________________
1)    Zeno Veloso (in “Controle de Constitucionalidade”, 2000, Belo Horizonte: Del Rey, pág. 109);
2)    Marcelo Caetano (in “Manual de Direito Administrativo”, 1997, Coimbra: Almedina, pág. 436;
3)    Celso Antônio Bandeira de Mello  (in “Curso de Direito Administrativo”, 17ª ed., 2004, São Paulo:
Malheiros,  pág. 388)
4)    Sérgio Ferraz (in “Mandado de Segurança (individual e coletivo) aspectos polêmicos”, 2ª ed., 1993, ­
São Paulo: Malheiros, pág. 76)
5)    Humberto Ávila (in “Teoria dos Princípios”, 4ª ed., 2004, São Paulo: Malheiros, pág. 22)