A publicação de biografias não autorizadas sob a ótica Civil-Constitucional – Interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil.

27 de novembro de 2013

Advogado, pós-graduando em Direito Civil Constitucional na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Uerj

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Está aquecida a discussão acerca da necessidade de autorização prévia do biografado para que seja publicada sua biografia, sendo certo que os entendimentos sobre o tema se dividem entre os que defendem a necessidade de autorização pelo biografado, com fulcro nos artigos 20 e 21 do Código Civil, os que entendem que deve haver uma ponderação acerca desta necessidade, conforme o caso apresentado e, por fim, os que advogam a tese de que não é necessária outorga de autorização pelo biografado, posto que os artigos do Código Civil devem ser interpretados conforme o texto constitucional e seus princípios.    

Os que entendem que é obrigatória a concordância da biografado para que sua biografia seja publicada, sustentam que os artigos 20 e 21 do Código Civil de 2002 devem ser interpretados e aplicados isoladamente, bem como que, em sendo constatada a publicação de biografia sem a autorização do biografado, e caso este se sinta lesado, o trabalho biográfico deve ser retirado de circulação e, no caso de o texto publicado ter sido capaz de causar dano ao biografado, haver a consequente indenização.

Ocorre, porém, que este não é o entendimento mais adequado, posto que, como sabido, os artigos 20 e 21 do Código Civil não devem ser interpretados e aplicados isoladamente, mas sim em conformidade com o que dispõe a Constituição Federal e com os Princípios Constitucionais.

Isto porque, com a promulgação da Constituição Federal em 1988, a supremacia constitucional se consolidou e a exemplo do que já ocorrera em outros países, a Constituição foi alçada a status de norma suprema perante às demais. Ressalte-se que, tendo em vista a consolidação da supremacia constitucional, a admissão do controle da constitucionalidade das normas infraconstitucionais foi muito importante para o fortalecimento do papel da Constituição e para sua estabilização como norma suprema.

O controle de constitucionalidade foi essencial para a manutenção dos institutos de Direito Privado, que, por conta da supremacia constitucional, passaram a ser interpretados em conformidade com o texto constitucional.

Portanto, a Constituição, alçada à condição de norma superior do ordenamento jurídico, dotada de supremacia perante às demais normas, passou a ser reconhecida como fundamento de validade e norte para a interpretação de todo o sistema jurídico. Daí decorre a necessidade de conformação, com o Texto Constitucional, de todo o sistema infraconstitucional. Essa posição, hierarquicamente superior, impõe restrições à legislação infraconstitucional e fornece subsídios para a interpretação dessas normas.

Ou seja, conforme o acima exposto, e com a devida vênia aos que entendem o contrário, os artigos 20 e 21 do Código Civil, ao tutelaram a imagem, a honra e a privacidade das pessoas, não podem ser interpretados isoladamente, sob pena de se furtar direitos fundamentais, inclusive assegurados constitucionalmente, tais como a liberdade de expressão, de informação e de pensamento, positivados no artigo 5º, incisos IV, IX, X e XIV, bem como no artigo 220, ambos da Constituição Federal. Tal interpretação afigura-se manifestamente inconstitucional.

Pois bem. As biografias geralmente se constituem de narrativas históricas descritas com base em fatos que o biografado deixou que ganhassem publicidade em algum momento de sua história. Tais fatos presumem-se de interesse público, pois se assim não fosse, os biógrafos não teriam interesse em publicar os trabalhos biográficos, uma vez que a carência de interesse público faria com que a biografia não fosse vendia e, assim, não renderia lucro ao escritor/pesquisador. Além da referida presunção de interesse público, os fatos considerados históricos, que se fazem presentes nas biografias, já são capazes de revelar o interesse público que as reveste, posto que sendo os fatos narrados, históricos, já tornam tais trabalhos interessantes ao público. Nesse sentido, leciona o Professor Gustavo Tepedino[1] “Tais fatos, só por serem considerados históricos, já revelam seu interesse público, em favor da liberdade de informar e de ser informado, essencial não somente como garantia individual, mas como preservação da memória e da identidade cultural da sociedade”.

Assim, é evidente que a biografia, ainda que não autorizada pelo biografado, é incapaz de gerar qualquer espécie de responsabilidade, posto que, como já dito, além do fato de que os artigos 20 e 21 do Código Civil devem ser interpretados sob a ótica da Constituição Federal, não deixando margem para discussão acerca de ofensa aos citados artigos em caso de publicação de biografias não autorizadas, os danos sofridos pelos biografados são indenizáveis, posto que não há conduta ilícita – contrária à lei – por parte do escritor. O biógrafo, ao realizar um trabalho biográfico e publicá-lo, dentro dos limites do exercício de seu direito e sem abuso, está apenas exercendo seu direito constitucional de liberdade de expressão e de informação.

Importante ressaltar que a biografia deve ser elaborada dentro dos limites éticos de informação constitucionalmente assegurada, ou seja, a biografia deve ser baseada em fatos verdadeiros obtidos através de fontes legítimas, sem que haja distorção dos fatos.

O abuso e o desvio do exercício do direito de liberdade de informação, que ocorrerá quando o biógrafo distorcer a verdade dos fatos, incluir na história o que nunca ocorreu ou obtiver fatos de fonte ilícita, deve ser punido pelo ordenamento jurídico, posto que tal abuso é capaz de gerar ao biografado um dano que, no caso, será reparável, tendo em vista a ilicitude da conduta do escritor. 

Conclui-se, portanto, que a publicação de biografia prescinde de autorização prévia do biografado, bem como que não há possibilidade de responsabilização do escritor, caso o biografado se sinta lesado, salvo se aquele tiver agido com desvio ou abuso, quando do exercício da sua liberdade de expressão, por meio de veiculação de fatos falsos ou manipulados em relação à vida do biografado.

Porém, embora a discussão esteja aquecida entre os operadores do direito, o posicionamento final acerca do tema caberá ao Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Adin 4815, movida pelo Associação Nacional dos Editores de Livros, que tem por objetivo a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil. Ainda não há previsão de votação, mas uma audiência pública foi marcada pela relatora da ação, Ministra Cármem Lúcia, para os dias 20 e 21 de novembro, a fim discutir o assunto.

Espera-se que o Supremo Tribunal Federal, por ser uma Corte Constitucional, interprete os supracitados dispositivos conforme o texto e os Princípios Constitucionais e, com isso, declare a sua inconstitucionalidade, com a consequente autorização de publicação de biografias não autorizadas, encerrando, de uma vez por todas, a discussão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MORAES, Alexandre de. DIREITO CONSTITUCIONAL. Editora Atlas. 23ª Edição. São Paulo-SP. 2008.

SARMENTO, Daniel. DIREITO CONSTITUCIONAL. Editora Fórum. 1ª Edição. Rio de Janeiro-RJ. 2013

TEPEDINO, Gustavo. Código Civil Interpretado, Vol. 1. Editora Renovar. 2ª Edição. Rio de Janeiro –RJ. 2013

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil. 3ª Edição. Editora Renovar. 2ª Edição. Rio de Janeiro –RJ. 2012


[1] Tepedino, Gustavo; Opinião doutrinária; http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120823-06.pdf