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Que Judiciário queremos no século XXI?

5 de maio de 2000

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(Discurso proferido pela Desembargadora Letícia de Faria Sardas no dia de sua posse no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro)

Assumo o cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça do estado em que nasci, num momento que, embora mágico para mim, tem se mostrado cruel com a Magistratura Nacional, submetida a um confuso processo de reforma, inquietada com a súmula vinculante, abalada com a pequenez de seus vencimentos, pressionada pela crescente demanda, alarmada com a possibilidade de mordaça e preocupada com as exigências da sociedade moderna.

Nos albores de um novo século, o povo brasileiro, liberto de um regime de exceção, discute as instituições, analisa o Poder Executivo, desconfia do Poder Legislativo e questiona o Poder Judiciário, num claro fenômeno de descrédito dos poderes nacionais.

O renomado cientista político italiano, Norberto Bobbio, analisando idênticas situações, concluiu que “as vítimas de um poder opressivo pedem, antes de mais nada, liberdade. Diante de um poder arbitrário, pedem justiça. Diante de um poder despótico, que seja ao mesmo tempo opressivo e arbitrário, a exigência de liberdade não pode se separar da exigência de justiça.”

Na busca de liberdade e justiça, em acontecimento de recente memória, jovens cara pintadas foram as ruas e impulsionaram o processo de afastamento de um Presidente da República.

O Poder Legislativo tem sido constantemente chamado a prestar contas àqueles que lhe dão legitimidade.

Já não mais se admite a passividade do Poder Judiciário e a neutralidade do magistrado enquanto cidadão.

Existe um novo tempo. Há um despertar. Revigora-se o humanismo com seus postulados de paz, solidariedade e igualdade. O discurso do Método de Descartes, penso, logo existo, símbolo do individualismo, não mais se coaduna com o homem moderno.

Não somos seres solitários. Vivemos em sociedade e não mais queremos a justiça meramente protetora, pensada somente sob o ângulo do individualismo.

Em época de globalização, o Judiciário é chamado a ocupar, efetivamente, o papel de guardião dos direitos fundamentais, capaz de converter normas em direito eficaz.

Em sociedades de gritantes desigualdades sociais, o povo oprimido não mais se conforma com a exclusão social, com a desatenção à miséria, com a agressão ao meio ambiente.

A população brasileira busca sua identidade e afasta biombos que vedam a luz, revira baús na busca da sua memória, seca fossos, não aceita simples promessas, exige dos governantes uma visão abrangente, quer uma vida melhor, com reais possibilidades para todos.

Neste contexto, como promover a reforma do Poder Judiciário?

Que Judiciário queremos no século XXI?

Fala-se em reformas estruturais do Poder Judiciário, esquecidos da conhecida advertência de Rui Barbosa: justiça tardia não é justiça, é injustiça.

À evidência não necessitamos somente de reformas estruturais. As mágicas fórmulas de extinguir tribunais, apesar de populistas, não resolvem o problema da justiça.

Precisamos, principalmente, de reformas operacionais. Precisamos de celeridade e efetividade.

É necessário, como bem lembrou o Des. Thiago Ribas Filho em recente editorial, que “… o direito e a justiça sejam pensados e distribuídos do ponto de vista de quem os consome, vale dizer, o povo, não de quem os produz”.

Estou certa de que as leis precisam ser modificadas. Os códigos estão vetustos, precisamos de uma legislação ativa que assegure o acesso de todos a uma justiça rápida e efetiva.

Necessitamos que o Poder Judiciário retome o papel de partícipe do Estado Democrático de Direito.

Nenhum de nós escolheu o momento para existir, mas a nós cabe este momento em que vivemos.

Os juízes existiram em todos os tempos e povos e Aristóteles já os chamava de “a boca animada das leis”.

É nossa missão formar o juiz que queremos e, neste ponto, forçoso lembrar Oscar Wilde: “Penso nas coisas como são. E me pergunto por quê? Penso nas coisas como sonho. E me pergunto por que não?”

Nos meus sonhos, vejo igualdade, liberdade, fraternidade.

Tenho sonhado com um juiz livre do jugo da súmula vinculante, com um juiz sem mordaças.

Não é demais sonhar com um juiz independente, transparente, participante, ágil, consciente das suas funções, comunicativo, integrado à sociedade em que vive, preocupado com o grande distanciamento entre a promessa de direitos e a realidade prática de sua efetivação.

Vendo este recinto mesclado de representantes do Poder Executivo, de parlamentares e de juízes, num perfeito congraçamento, por que não sonhar com um juiz dotado de instrumentos legais capazes de garantir a todos o acesso à justiça, garantindo os direitos constitucionais, legais e contratuais de todos os cidadãos?

Sonho com a verdadeira democracia, mas como hoje não é só um dia de devaneios, me vem a lembrança a sábia advertência do saudoso democrata Ulisses Guimarães: o dia do benefício é a véspera da ingratidão.

Espero em Deus, no exercício do meu mister, jamais ser ingrata e sem pretender escapar para o pieguismo, não posso deixar de agradecer a todos os integrantes do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que, na difícil tarefa de escolher, depositaram no meu nome um voto de confiança, conferindo-me a elevada responsabilidade do cargo que ora assumo.