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Quilombos: da insurreição à propriedade constitucional

5 de agosto de 2005

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O presente artigo tem por objetivo apresentar argumentos jurídicos para o convencimento de que a norma constitucional do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que prescreve: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” é justa e exige a sua pronta efetivação.

A palavra quilombo sugere vários significados, dentre os quais o de “valhacouto de escravos fugidos; unidade básica da resistência negra“ como sugere o saudoso e eminente advogado Alaôr Eduardo Scisínio em seu consagrado Dicionário da Escravidão.

A norma constitucional acima transcrita indica que efetivamente o sentido da palavra quilombo seja o de uma fortificação composta de negros fugitivos que desafiando o direito estatal, formaram um núcleo populacional que buscava manter a cultura e a estratificação social trazida da África.

Os quilombos que se formaram e se espalharam pelo território brasileiro traziam duas práticas insurrecionais.  A primeira relativa à ocupação da terra que não se fazia dentro do modelo estatal da compra e venda ou da sucessão hereditária e o segundo que guarda relação com o próprio questionamento do regime servil e que contribuiu para a sua derrocada.

Com efeito, o apossamento de um território quilombola significava uma medida duplamente insurgente e aí se encontra a grandeza da luta histórica dos escravos fugidos que lograram trazer, a despeito da distância continental, um pedaço da África para o Brasil no tocante ao território e cultura, ajudando a que o país se livrasse da maldição de manter pessoas cativas servindo a outras sem liberdade, mas também foi a primeira demonstração de que a posse da terra como instituto independente da propriedade podia ser utilizado em sua função social para afirmar a moradia, produção e trabalho dos rebelados do sistema escravagista.

Nesse exato ponto, impende situar, ainda que brevemente, o cenário jurídico de aquisição da propriedade de terras no período que antecedeu a abolição da escravidão.  Em um primeiro momento a terra era concedida por Cartas de Sesmarias, cuja definição nas Ordenações Manuelinas, Livro IV, Tít. 67 era a de “datas de terras, casas ou pardieiros, que foram ou são de alguns senhores e que, já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora o não são”.

Após esse período e com o reconhecimento da independência do Brasil não se verificou uma modificação no sistema fundiário pátrio e o regramento mais importante dessa fase foi a Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras, cujos artigos 1°, 4° e 5° deixavam claro que a aquisição da propriedade somente se daria por ocupação primária anterior, compra e venda, sucessão hereditária, sendo revalidadas as outorgas das referidas cartas de sesmarias.

A lei de terras data do mesmo ano da lei Eusébio de Queirós que fora decretada no dia 4 de setembro de 1850 reprimindo o tráfico de africanos e punindo com rigor os selvagens contrabandistas de gente.  Isto nos conduz a uma conclusão lógica: o país que se preparava para abolir a escravidão, consolidava os latifúndios nas mãos da oligarquia rural tomando cuidado para que o escravo, ao se deparar com a liberdade, não tivesse acesso à propriedade pelo obstáculo do preço e pela proibição de legitimar posses posteriores à referida lei de terras.

Com efeito, vê-se com clareza que as áreas de posse de quilombos não encontraram mecanismos jurídicos para se legitimar no direito positivo vigente após a abolição da escravidão, permanecendo à margem da titularidade formal dos imóveis que com a lei de terras passou a ser a situação proprietária, sendo a posse um instituto de categorização inferior, tido como estado provisório e, portanto, inseguro, que funcionava como uma mera exteriorização da propriedade.

Kant sustenta ser legítima a primeira posse de um pedaço de terra, sendo um direito natural ter algo, cuja utilização por outrem possa se traduzir em um prejuízo a quem exerce a posse sensível sobre o bem.  Diz o autor que este postulado está ligado a uma lei permissiva da razão prática que confere ao possuidor direito de exigir de todas as outras pessoas um dever geral de abstenção frente a aquele que primeiro exerceu a posse sobre o bem.

O indigitado filósofo ensina que o estado de posse é um fenômeno da natureza que confere proteção jurídica ao primeiro possuidor, pois é também direito natural não ser obrigado a certificar sua posse, além do que é correto formular a proposição de que tudo que uma pessoa submete ao seu controle de acordo com as leis da liberdade externa, manifestando a vontade que seja o titular, realmente o será.  Nessa ótica, aduz o autor em sua memorável “metafísica dos costumes” que: “realizar a primeira tomada de posse tem, portanto, uma base jurídica (titulus possessionis), que é posse original em comum; e o brocardo: “felizes são aqueles que tem a posse” (beati possidentes), porque ninguém ser obrigado a certificar sua posse é um princípio básico de direito natural, o qual estabelece o tomar a primeira posse como uma base jurídica de aquisição com a qual pode contar todo primeiro possuidor.”

A posse de terras no solo brasileiro para a formação de quilombos pelos escravos equivale à posse no estado da natureza e justifica a sua defesa pelo título conferido pelo próprio apossamento ab origine.  Nessa linha de raciocínio, as áreas utilizadas para a formação de quilombos eram terras de ninguém (res nullius) que foram possuídas pelos escravos que fugiam do cativeiro e cujos descendentes continuam exercendo posse passados mais de cem anos de abolição da escravidão.

A idéia acima de apreensão originária se encontra também em autores clássicos como o Doutor Spencer Vampré, J.M. Carvalho Santos, Pontes de Miranda, Martinho Garcez e Lafayette Rodrigues Pereira. Entretanto, forçoso reconhecer que mesmo Kant aduzia que a defesa fulcrada em uma legítima apreensão, como fora a que historicamente se verificou nos territórios quilombolas, não basta, pois há a necessidade de uma legitimação estatal com o reconhecimento de uma titularidade definitiva sobre o bem possuído.

Verifica-se também nas lições de Kant que é necessário que do estado da natureza em que se acha a posse haja a conversão para o estado de direito que, à luz do ordenamento pátrio, seria o reconhecimento da propriedade como direito definitivo.  Dizia o mestre que: “Em síntese, o modo de ter alguma coisa externa como sua num estado de natureza é posse física que tem a seu favor a presunção jurídica de que será convertida em posse jurídica através de sua união com a vontade de todos numa legislação pública, e em antecipação a isto é válida comparativamente como posse jurídica.”1   E falando sobre a propriedade, o apontado filósofo alemão ratifica a aludida afirmação prescrevendo que: “alguma coisa pode ser adquirida definitivamente sob uma constituição civil. Em um estado de natureza também pode ser adquirida, mas somente provisoriamente.” E conclui dizendo que: “a conseqüência é poder a aquisição original ser apenas provisória.  A aquisição definitiva ocorre somente na condição civil.”

Assim, é de importância vital para a segurança jurídica dos descendentes dos escravos africanos e para a afirmação cultural e étnica das comunidades remanescentes de quilombos a atestação da propriedade sobre os territórios quilombolas, e que do reconhecimento unilateral de afirmação da titularidade sobre o bem – posse em estado natural – se chegue ao reconhecimento da sociedade acerca do direito de propriedade dessas terras promovendo, por conseguinte, a aceitação de todos de um direito definitivo assentado em uma legislação de ordem pública.

Conclui-se, de logo, o quão importante é conferir efetividade ao comando normativo do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, identificando as áreas remanescentes de quilombos e conferindo o título de propriedade na forma da lei civil pátria.  Releve-se o fato de que o aludido dispositivo constitucional trilha a idéia kantiana quando prescreve que o estado deverá reconhecer a “propriedade definitiva” das comunidades remanescentes de quilombos, ou seja, o texto constitucional não faz referência à posse, tendo em vista a simples constatação de que esta já estava mais do que solidificada por ocasião da promulgação da lei maior em outubro de 1988.

Imperioso ratificar que o reconhecimento da propriedade constitucional das áreas remanescentes de quilombos é originário por não se fundamentar em relação jurídica anterior que lhe dê suporte.  Nesse passo, há uma semelhança muito grande com a usucapião, sendo certo que como sucede com o instituto análogo a eventual sentença judicial que o reconhecer também será declaratória. Entretanto, a prescrição aquisitiva conta com um termo inicial – a quo – e um termo final – ad quem e após a sua configuração o possuidor se faz proprietário, ou seja, o usucapiente não precisa continuar possuindo para que seja reconhecido o seu direito de propriedade, valendo lembrar a denominada ação publiciana que municia o usucapiente de pretensão reivindicatória sem título e posse atual.

O termo inicial para que a posse de um quilombo seja reconhecida na atualidade como propriedade é o momento da instalação da comunidade de escravos africanos, e o termo final coincidirá com a promulgação da Constituição, momento em que o direito de propriedade se incorporou definitivamente ao patrimônio dos quilombolas que reconhecerem sua própria história de descendentes de escravos africanos que foram residir nos quilombos antes da decretação da lei áurea, merecendo destaque que tal direito pode ser usado como defesa em eventual ação reivindicatória proposta pela pessoa, cujo título se encontra registrado no cartório imobiliário.

Com redobrada vênia, se a propriedade a que se refere a norma do artigo 68 do ADCT fosse por meio da usucapião, teríamos que imaginar que a usucapião do afrodescendente quilombola teria que ser por um prazo maior do que cem anos, sendo evidente que o prescrição mais longa, atualmente, no direito brasileiro, é a da usucapião extraordinária prevista no art. 1.238 do Código Civil Brasileiro que é de quinze anos.  Se o Poder Constituinte Originário quisesse disciplinar o direito de propriedade das áreas de quilombos pela árdua via da usucapião teria feito, como aconteceu, por exemplo, com a usucapião especial urbana (art. 183, C.R.F.B.) e rural (art. 191, C.R.F.B.).

A última parte do dispositivo legal assegura um direito subjetivo para as comunidades remanescentes de quilombos, acarretando ao Estado um dever jurídico prestacional, pois a lei das leis prescreve que o Estado deve emitir os títulos de propriedade.  A grande dificuldade está em definir como o Estado poderá atestar a propriedade.

A norma jurídica constitucional que se encontra nas disposições transitórias, por óbvio, tende a perder a sua importância social na medida em que o seu comando se efetiva, mas enquanto isto não acontece, deve ser encarada como parte integrante do texto constitucional a quem se deve conferir a máxima efetividade.  Pela simples leitura do artigo 68 do ADCT observa-se que o tipo legal contém todos os requisitos de sua auto-aplicabilidade, sendo norma de eficácia plena para nos servirmos da nomenclatura adotada pelo eminente constitucionalista José Afonso da Silva.

A despeito de a norma do artigo 68 do ADCT conter todos os requisitos para a sua auto-aplicabilidade, o Governo Federal editou o Decreto Federal nº 4.887, de 20 de novembro de 2003 visando regulamentar a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Nos imóveis registrados em nome do Estado, o próprio ente federativo deverá emitir o título respectivo, reconhecendo o direito de propriedade para as comunidades remanescentes de quilombos, na forma do que estabelece o artigo 12 do referido decreto.

Estando o imóvel registrado em nome de particular, o artigo 13 do decreto federal nº 4.887/2003 prevê que a política governamental para a efetivação do direito de propriedade para as áreas de quilombos será a desapropriação dos imóveis com o conseqüente pagamento de verba indenizatória à pessoa cujo nome estiver registrado a terra ocupada pelo quilombo.  Tal opção do encimado dispositivo regulamentar padece de flagrante inconstitucionalidade por afrontar diretamente a norma contida no artigo 68 do ADCT.

O reconhecimento da propriedade prescinde de desapropriação, cumprindo, outrossim, as normas contidas nos artigos 215 e 216 da C.R.F.B. que objetivam proteger valores culturais, preservando-se a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.  De efeito, como o Estado “expropriará” e “concederá” título a quem, a bem da verdade, já é o verdadeiro proprietário na forma do que disciplina o artigo 68 do ADCT? Será que os próprios quilombolas, por serem proprietários, receberão indenização? Qualquer solução nesse sentido é absurda.

O fato é que os recursos que seriam destinados a “comprar” a terra de quem já não é mais o titular serão mais bem alocados para dotar os quilombos de infra-estrutura, promovendo a sua emancipação, proporcionando uma justiça, ainda que tardia, aos africanos que foram trazidos violentamente para o Brasil e aqui contribuíram para a formação do povo brasileiro. A indenização, salvo melhor juízo, não pode ser condicionante da regularização fundiária dos territórios quilombolas.  Se for entendido que é devida uma indenização, que a mesma seja pleiteada por ação própria em face do Estado, pois foi ele que na constituição cidadã de 1988 afirmou a propriedade para os quilombolas dos territórios que ocupam.

A nosso sentir, caberá a propositura de ação declaratória na forma do artigo 4º,I, do Código de Processo Civil e que nas sábias palavras de João Batista Lopes a ação será declaratória(e não constitutiva), porque sua eficácia preponderante não é a criação ou constituição de ato jurídico já existente, mas sim o reconhecimento judicial de sua existência.

Na referida ação declaratória, de conteúdo real, serão citados eventuais interessados e, se for a hipótese, a pessoa, em cujo nome esteja registrado o imóvel.  O pedido deverá conter requerimento de extração de Carta de Sentença para que o imóvel seja registrado em nome da associação de moradores ou, se for o caso, dos litisconsortes que provarem a descendência inerente aos quilombolas.

Algumas providências preliminares devem ser observadas, dentre aa quais: laudo histórico de formação do quilombo, laudo antropológico reconhecido como autêntico pela Fundação Cultural Palmares (Ministério da Cultura), certidão atualizada do Cartório de Imóveis da cidade em que se situa o quilombo, cadastro sócio-econômico dos moradores, planta de situação do imóvel em que a comunidade está localizada, memorial descritivo, estatuto da associação de moradores na forma da atual lei civil e devidamente registrado, ata de assembléia da associação de moradores autorizando o ingresso com a ação declaratória de reconhecimento de propriedade.

Augurando que o singelo texto sirva de reflexão para que os leitores desse valioso periódico jurídico pensem em caminhos jurídicos razoáveis para a titulação definitiva das comunidades remanescentes de quilombos como afirmação de valores culturais e étnicos que servem de base para a formação da história desse país, além do resgate de cidadania que se reveste como um imperativo de justiça.