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Recorrente de boa-fé

5 de novembro de 2002

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A reflexão inicia-se com a seguinte indagação: qual a possibilidade jurídica de recursos tidos como intempestivos impedirem o trânsito em julgado de decisão judicial e, por conseguinte, obstarem a fluência do biênio legal para a propositura da ação rescisória?

O art. 495 do CPC dispõe: “O direito de propor ação rescisória se extingue em 2 (dois) anos, contados do trânsito em julgado da decisão.”

Em tese, se após a publicação de acórdão por um Tribunal, a pane inconformada opõe embargos de declaração, para fins de pré-questionamento, e estes sendo inadmitidos por decisão singular, mantido seu indeferimento em sede de agravo interno, ou regimental, daí resultando outro acórdão, após a ciência deste último se a parte interpõe recurso extraordinária, inicialmente admitido, mas posteriormente revogada esta decisão para inadmiti-lo, mediante acolhimento de embargos de declaração da parte adversa, qual seria a última decisão destes autos? Tudo faz crer que a decisão que inadmitiu o RE, e, a partir desta interpretação, poderia a parte propor a ação rescisória, nos termos do art. 495 do CPC, ao entendimento de inocorrência da decadência.

De fato, a existência de recursos pendentes, mesmo que inadmitidos por intempestividade, já impediriam o trânsito em julgado do acórdão de mérito impugnado, dada a presença da boa-fé do recorrente.

Segundo ensina De Plácido e Silva1, boa-fé deve ser entendida no sentido de expressar a intenção pura, isenta de dolo ou engano com que a pessoa executa o ato, certa de que está agindo na conformidade do direito, conseqüentemente, protegida pelos preceitos legais. Para Alípio Silveira2, a boa-fé pode ser entendida como convicção ou consciência de praticar ato legítimo.

Como o processo e instituto de ordem publica, cujas normas e regras são cogentes, objetivando solucionar as pretensões resistidas em JUÍZO, exige-se das partes que atuem de boa-fé, procedendo com lisura e lealdade. Assim, consistiria a boa-fé na consciência de que a parte esta usando o processo sem intenção de descumprir a lei3. Nesse contexto, a má-fé e a antítese da boa intenção 4, caracterizando-se, essencialmente, pela intenção de prejudicar o outro litigante.

Destarte, agiria de forma malévola a parte que prolonga deliberadamente o andamento do processo procrastinando o feito, causando dano processual a parte contraria, como ad exemplum, a oposição de resistência injustificada ao anda­mento do processo, a provocação de incidentes infundados, e a interposição de recurso com intuito manifestamente protelatório.

Por outro lado, muito já se discutiu acerca da possibilidade da interposição de recursos obstar a fluência do prazo bienal determinado no artigo 495 do CPC, para ajuizamento da ação rescisória, restando consagrada pelos nossos Tribunais Superiores a posição no sentido de que tal prazo não teria início enquanto não apreciado recurso interposto nos autos, ainda que especial ou extraordinário. Ou seja, não transitaria em julgado a decisão enquanto não analisado o último recurso existente no processo.

Neste sentido há diversos precedentes do E.STJ, como se depreende a seguir:

“PROCESSO CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. INOCORRÊNCIA. ARTIGO 485, IV, DO CPC. OFENSA A COISA JULGADA NÃO CARACTERIZADA.

O termo inicial para a contagem do prazo do artigo 495, do CPC, deve ser o do transito em julgado da ultima decisão da causa, momento em que ocorre a coisa julgada material.” (AR nº 846/AL, Min. Franciulli Netto, DJU de 1/081 2000,STJ)

Impende transcrever as precisas palavras do Exmo. ministro Vicente Cernicchiaro, em que, inclusive, cita outros precedentes:

“Não se pode estabelecer, como início do prazo decadencial para a propositura da ação rescisória, a coisa julgada formal, sob pena de criar perplexidade para a parte vencida, que terá seu direito a ação rescisória condicionado ao conhecimento ou não de recurso.

RESP – PROCESSUAL CIVIL – RESCISÓRIA – COISA JULGADA – PRAZO – TERMO A QUO – A RELAÇÃO PROCESSUAL PRINCIPIA COM O INGRESSO DA AÇÃO (CITAÇÃO E EXIGÊNCIA PARA FLUIR O TEMPO PARA RESPOSTA) E TERMINA QUANDO EXPIRA O PRAZO PARA RECORRER DA ÚLTIMA DECISÃO. DAÍ, SURGE o FENOMENO DA COISA]ULGADA (MUITAS VEZES, SEM PRECISÃO TÉCNICA, CONFUNDIDA COM A PRECLUSÃO). PARA EFEITO DE CORRER 0 PRAZO PARA PROPOR A AÇÃO RESCISÓRIA, O TERMO A QUO É CONTADO DO DIA SEGUINTE AO TERMINO DO PRAZO DO RECURSO ADEQUADO PARA ATACAR A DECISÃO, OU DE SEU JULGAMENTO, SE INTERPOS­TO. SEM ESSA ALTERNATIVA, CHEGAR-SE-IA A SITUAÇÃO INADEQUADA CASO O RECURSO FOSSE APRECIADO APÓS A FLUÊNCIA DO BIÊNIO PARA O EXERCÍCIO DO DIREITO POTESTATIVO PARA DESCONSTITUIR O JULGADO.” (REsp nº 41.488/R], Min. Vicente Cernicchiaro, DJU de 28/03/94)

Há outros julgados, como o reproduzido no voto do E.Min. Adhemar Maciel, quando da apreciação do REsp nº 11.106-SC, publicado no D]U de 10/11/97:

“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RESCISÓRIA. TRÂNSITO EM ]ULGADO. DECADÊNCIA NÃO CONFIGU­RADA.

O prazo de decadência, na ação rescisória, conta-se do trânsito em julgado da ultima decisão proferida na causa, seja ela de mérito, ou não.

Recurso conhecido e provido.” (STJ – REsp nº 29.572/R], Min. José Candido de Carvalho Filho, DJU de 01/08/94) Nesse mesmo sentido é o teor do verbete nº 100, da súmula do TST: “o prazo de decadência na ação rescisória, conta-se do transito em julgado da ultima decisão proferida na causa, seja de mérito ou não.”

A questão da intempestividade do recurso não possui maior relevância quando presente a boa-fé do recorrente, traduzida na inexistência do intuito protelatório da parte, como visto acima, e quando haja, efetivamente, duvida razoável acerca da tempestividade do recurso então interposto.

Inexiste intuito protelatório da pane interessada quando esta aguarda o julgamento dos recursos interpostos em Face do acórdão rescindendo, para, posteriormente, impugná-lo através do recurso extraordinário, vez que não permanece inerte. Opostos embargos declaratórios, por exemplo, para fins de pré-questionamento, nos termos do art. 538 do CPC, fica interrompido o transito em julgado do acórdão rescindendo, aguardando-se o julgamento definitivo. Portanto, qualquer recurso somente poderia ser interposto após a apreciação definitiva destes recursos, que, inadmitidos, poderiam alterar o teor do acórdão rescindendo.

Ausente, portanto, a má-fé, o transito em julgado para efeito de se contar o prazo bienal de propositura da ação rescisória, passa a ser a data em que restou irrecorrível a decisão proferida no recurso extraordinário, ainda que inadmitido, como se pode aferir do seguinte julgado:

“AÇÃO RESCISÓRIA. DECADÊNCIA. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.

O prazo decadencial flui do transito em julgado do recurso especial, ainda que não conhecido. Hipótese em que não se vislumbra ter sido o recurso utilizado para o fim de burlar a fluência do prazo extintivo.

Recurso conhecido e provido.” (STJ – REsp nº 155.001­AL, Min. Ruç Rosado de Aguiar, DJU de 29/06/98) Elucidativa e a lição do E. Min. Athos Carneiro, do E. Superior Tribunal de Justiça, proferida no julgamento do REsp nº 2.447-RS, publicado no DJU de 9/12/91:

“AÇÃO RESCISÓRIA. RECURSO EXTRAORDINAR!O NÃO ADMITIDO POR INTEMPESTIVO, INÍCIO DO PRAZO DECADENCIAL. SOLUÇÕES DOUTRINARIA­MENTE COGITAVEIS. DEFESA DE BOA-FÉ DO DEMANDANTE.

Mesmo adotada a tese segundo a qual o início do prazo de decadência para a pretensão rescisória não e obstado pela interposição de recurso que venha a ser considerado intempestivo, ainda assim impende considerar a boa-fé do re­corrente, naqueles casos especiais em que a própria intempestividade do recurso apresenta-se passível de fundada duvida. Impossibilidade jurídica do ajuizamento da ação rescisória “condicional” ou “cautelar”, interposta no biênio para ter andamento somente se o recurso pendente for tido por intempestivo.

A melhor aplicação da lei e a que se preocupa com a solução justa, não podendo o juiz esquecer que por vezes o rigorismo na exegese do texto legal ou na adoção da doutrina prevalecente pode resultar em injustiça conspícua.

Recurso Especial conhecido e provido.” (grifei)

Assim se posicionam nossos Tribunais Superiores, como se pode verificar nas precisas colocações do E. Min. Sálvio de Figueredo, ao julgar o REsp nº 62.353/RJ, DJ de 29/9/97:

“É de salientar-se, outrossim, que o termo a quo do prazo para o ajuizamento da rescisória fixado pelo Tribunal de origem também não se amolda a doutrina e a jurisprudência contemporâneas, preocupadas sobretudo com o prejuízo que pode advir ao jurisdicionado em razão da ineficiência da maquina estatal criada para a composição dos conflitos.

Não se justifica atribuir natureza jurídica declaratória ao juízo de admissibilidade negativo em tempos em que uma demanda pode levar décadas para ser solucionada se porventura se esgotarem as instancias. E é por isso que se tem admitido como marco de contagem do prazo decadencial da rescisória a decisão que inadmitiu 0 ultimo recurso, desde que não haja má-fé do recorrente, funcionando como termo a quo o primeiro dia seguinte ao transito em julgado daquela decisão. (…)

É de considerar-se, por outro lado, que, em um sistema como o nosso, em que a admissibilidade dos recursos excepcionais se faz primeiramente pela Presidência do Tribunal de origem, que pode inclusive discutir meritoriamente o acerto ou não da Turma, se passou a entender de excessivo rigor considerar letra morta para tal desiderato a decisão que inadmite recursos extraordinario ou especial. Se o recorrente interpos o recurso e se não agiu maliciosamente, tern ele a expectativa de ser o mesmo examinado nos Tribunais Superi­ores.

Outrossim, argumentou-se tam bern que, tendo a rescisória por pressuposto geral o transito em julgado da decisão, seria inviavel admiti-la nos casos de recursos ainda pendentes.(…)

Dentro desse raciocínio, passou-se a adotar o posicionamento segundo o qual o acórdão que resolver os recursos excepcionais, mesmo que seja para não conhece-Ios por falta de pressuposto especffico de admissibilidade recursal, tem como efeito deslocar o início do prazo decadencial para o dia seguinte ao seu transito em julgado. Neste sentido, os REsps. 34.0 14/RJ (RST] 73/239), relator o Min. Ruç Rosado de Aguiar, e 21.715/CE (D] de 10/41 95), relator o Min. Antonio Torreao Braz, desta Turma, e 18.691/RJ (D] de 28/11194), da Primeira Turma, relatado pelo Min. Dem6crito Reinaldo, assim respectivamente ementados:

‘_ O prazo da decadência da ação rescisória começa a fluir do transito em julgado da decisão proferida no recurso extraordinário não conhecido’.

‘_ Não corre o prazo para o exercício da ação rescisória se interposto recurso especial ou extraordinário, ainda que não venha a ser admitido’.

‘- A rescisória, dada a sua natureza, pressupõe o esgota­mento de todos os prazos, para que a decisão rescindenda seja irrecorrível. O prazo para a propositura da ação rescisória tem sua fluência contada a partir do transito em julgado da decisão proferida no ultimo recurso interposto do acórdão rescindendo, in casu, do recurso extraordinário interposto’.”

Da decisão, portanto, que inadmite o recurso extraordinário, começa a fluir o prazo decadencial, por ter sido a ultima a tornar o acórdão rescindendo irrecorrível.

Como se vê, não se pode inferir má-fé, a princípio, do simples excesso de prazo5, pois nem sempre resulta de ate conscientemente praticado em desacordo com a norma legal respectiva, podendo o extrapolamento decorrer de circunstância suscetível de gerar controversia6. Da mesma forma, o caso de erro grosseiro, como, por exemplo, a interposição de um recurso em vez de outro expressamente indicado para a hipótese, não denota, por si só, má-fé.

Deve-se ter em mente, portanto, na apreciação da responsabilidade da parte pela interposição de recursos aparentemente inconvenientes a boa marcha do processo, o elemento subjetivo, a revelar a existência ou não do abuso do direito de recorrer demonstrado pelo concurso de certas circunstâncias de faro, das quais transpareça a intenção de prejudicar o outro litigante7.

Bibliografia __________________________________________________________________________

1 Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro. Foren­se, 1982, v.1

2 A boa-fé no C6digo Civil. São Paulo. Livraria e Editora Universitária de Direito, 1972.

3 A. Buzaid. Processo e verdade no direito brasileiro. Revista de Processo, São Paulo. Revista dos Tribunais, 1987.

4 Abuso do direito e má-fé processual/Rui Stoco. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2002.

5 José Carlos Barbosa Moreira. O Juízo de admissibilidade no sistema dos recursos civis. Revista de Direito da Procuradoria-Geral.

6 Aspectos polêmicos e atuais dos recursos/ Eduardo Pellegrini de Arruda Alvim, Nelson Nery Jr. e Teresa Arruda Alvim Wambier.

7 Pedro Baptista Martins. O abuso do direito e o ato ilícito. Rio de Janeiro. Forense, 1997.