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Refém das palavras

5 de abril de 2004

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O erro não está nos astros, mas em nós mesmos.

Shakespeare

Na definição, aliás muito feliz, do ministro da Comunicação do governo, Luiz Gushiken, “o uso das palavras pode ser doce como mel, amargo como remédio ou puramente veneno”. No caso do Partido dos Trabalhadores essa variedade de ingredientes – mel, remédio e veneno – se misturam em proporções variadas. Mas ultimamente o uso das palavras, de tão intempestivo e sem conexão com a realidade, tem sido sinônimo também de uma fatal armadilha.

O caso Waldomiro Diniz, aquele assessor qualificado do governo que foi pilhado por urna câmara indiscreta achacando dinheiro de um bicheiro famoso, certamente teria se esvaziado – ou na pior das hipóteses perdido força, em vez ganhar proporções de urna grave crise – não Fosse o ministro José Dirceu, chefe do assessor, urna personalidade pouco econômica com as palavras. A arte de falar, como a arte da escrita, e feita da economia. Quanto menos se fala, mais se informa. E mais se conquista credibilidade.

Os ataques que o ministro tem democraticamente distribuído ao Ministério Público, a imprensa e a personagens da oposição, tiveram o condão de empurrá-lo para a luz dos refletores, quando seria aconselhável que ele estivesse na ribalta. Em silêncio, limitando-se apenas a apresentar fatos de consistência em sua defesa, mas sem vestir os trajes de vitima, se resguardaria de urna exposição crescente e nociva. O presidente Lula, também escolheu o caminho da fala excessiva, tirando da cartola acusações a supostos “conservadores”. (Lembrem de Jânio falando das forças ocultas que ninguém jamais soube identificar).

Um caso inédito. “Onde estão os conservadores?”, indagou a revista Veja na Última edição de março. “E quem são eles? Os banqueiros que tem aplaudido o governo Lula? Os velhos caciques da política de raízes oligárquicas, como os senadores Jose Sarney e Antonio Carlos Magalhães, que tem sido fiéis aliados do governo? Mistério”. No calor do debate, alguém lembrou de dizer que o governo e mais do que conservador: e ultraconservador.

Esse paradigma vai em flagrante choque com o PT do passado. Não que o partido não pudesse mudar, não pudesse evoluir. Os trabalhistas ingleses mudaram, mas não como marketing e sim como produto de discussões e convencimento interno. Entre o PT que fez oposição e o PT que hoje levanta o dedo para acusar os conservadores de querer desestabilizá-lo há um oceano de diferenças. Prometeu-se o que não se cumpriu. Resultado, é o primeiro governo da história brasileira que se tornou refém do seu próprio programa.

Getulio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, apenas para citar presidentes que ousaram reformar o País, sofreram oposição truculenta, foram alvos de ressentimentos e conspirações, inclusive de golpes militares. Estes sim, foram castigados pelos conservadores. Vargas suicidou-se. Juscelino conseguiu terminar o governo, mas foi posteriormente cassado nos seus direitos políticos pelo regime pós-64 e Jango amargou longo exílio, onde morreu, depois de deposto há 40 anos pelas baionetas e as tacões das Forças Armadas. Lula foi uma unanimidade. Toda a nação o admirava e cortejava, como continua admirando e cortejando.

O que aconteceu? Palavras, Palavras, Palavras ao vento…

O inimigo do PT é o que o PT falou por marketing e furos oposicionistas, pensando que a sociedade iria esquecer. Mito, o brasileiro não tem a memória curta como se imagina. Tal ideia nasceu daqueles que falam mal de si mesmo numa flagrante demonstração dos seus próprios atavismo. O povo tem boa memória, sim, e com todos as seus “inexauríveis recursos”, para lembrar o velho Marx, está caindo em cima do governo para cobrar. A queda dos índices de aprovação do governo, que caíram de 41% no ano passado para 34%, segundo pesquisa do Ibope-CNI, está aí para mostrar o quanto as palavras não cumpridas são venenosas.

Centralismo democrático

Gushiken tem sido acusado de stalinista, de querer impor ao governo as mesmas práticas dos antigos bolcl1eviques. Discordar internamente, comportar-se com rígida unidade em publico. Não é uma perspectiva incoerente. É assim nas empresas. Não conheço um único executivo que vá a público criticar seus pares ou o dono da empresa. Se agir assim, sua cabeça vai rolar em tempo real.

Mas na política e diferente. Se o próprio PT vive em guerra com o PT , como evitar que os aliados façam diferente? Marx escreveu: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diariamente, ligadas e transmitidas pelo passado”. Se o tempo voltar atrás em seu vôo implacável na revelação da história, o ministro Dirceu poderá constar que o seu partido cresceu e chegou ao poder graças a democracia, mas nunca efetivamente abraçou as práticas democráticas como uma estratégia, um valor universal. A democracia foi uma tática, dai 0 recurso ao surrado centralismo democrático, mesmo que levado a publico com a serenidade que caracteriza Gushiken.

Por isso, é que o ministro e o governo não são vitimas dos inescrutáveis desígnios do destino, mas prisioneiros da própria história – dos erros que ela com tem em seu interior. Crises não terminam com notas oficiais. Não são como um livro que se lê e guarda na estante. O erro está em olhar a sociedade e a historia como se fossem espelhos, onde se visse só o espelho e não as imagens refletidas. As crises de reputação e imagem que ameaçam abater o antes poderoso ministro José Dirceu – uma personalidade com urna biografia política admirável até que se prove o contrário – demonstram apenas o que o governo quer esconder, as suas contradições e paradigmas autoritárias. Tentativas que revelam um quebra-cabeça onde as peças não se encaixam. Rever a política de comunicação exige que as peças sejam colocadas no lugar. Assim, e que se deixara de perseguir miragens autoritárias e se investigara , independente das conseqüências, as denuncias que acuam o governo, o Partido dos Trabalhadores e deixam a sociedade perplexa. Caso contrario, os únicos que irão ouvir o governo e o ministro serio aqueles que concordam com o que está sendo dito. Ou seja, um grupo cada vez menor de secretários ou interesseiros.

Um último registro: palmas para o ministro Mauricio Correa, presidente do Supremo Tribunal Federal, que tem feito veemente oposição à lei da Mordaça.