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Reforma da administração da Justiça

5 de fevereiro de 2003

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Em seu discurso de posse, no início deste mês, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva falou quatro vezes em mudança. De fato, ele não recebeu 53 milhões de votos para que o Brasil continue como está. Um país marcado pela desigualdade, uma administração pública assinalada pela ineficiência. Ele não teve esses votos para fazer um governo convencional, conformado e conformista, mas para implantar as mudanças que precisamos.

Acredito que depois de 27 de outubro as coisas já começaram a mudar. Os padrões se transformaram, as inquietações, as vontades, o desejo da maioria cresceu. Nossa esperança, nossa confiança, é ter um governo em que os interesses da maioria prevaleçam sobre os privilégios. É ter uma democracia de massa, em que os bens fundamentais da vida sejam acessíveis a todos.

Aí se inclui a administração da Justiça. Ela não pode continuar sendo, por um lado, propriedades de poucos, e, por outro, escudo da impunidade. O Judiciário não pertence ao governo, e tampouco às elites: pertence ao povo, ao qual há de servir sob o pálio da Constituição, da lei e da justiça social.

“Os governos usam o Poder Judiciário para a adiar as suas dívidas”, já denunciou o jurista Joaquim Falcão. “É a judicialização do deficit público, o custo da injustiça”, alerta. Tenho a convicção de que mudar significa, antes de tudo, mudarmos. A reforma começa pela própria casa. Deve o Executivo, por isso, empenhar-se em desafogar a pauta dos tribunais superiores, atravancada por pleitos repetitivos contra o Estado. Sei que há constrições orçamentárias insuperáveis, e que à vontade do administrador antepõem-se demandas políticas irresponsáveis. Mas o governo precisa dar o exemplo de ser o primeiro e o mais fiel cumpridor das leis que ele próprio editou.

Antes de colher os frutos é preciso plantar as árvores, disse o presidente Lula em seu discurso de posse.

Durante a Constituinte, já se manifestavam os desejos de reforma. A proximidade da ditadura, porém, a sobrevivência de vícios antigos, a ausência da massa crítica, impediram-nos de ver e decidir com clareza, não obstante se tivessem agitado, ali, teses pioneiras. Soma-se hoje, àquelas propostas, o clamor da realidade: milhões de pessoas, que não têm garantidos os seus direitos, não dispõem acesso ao Judiciário; os que o têm encontram, na lentidão de práticas envelhecidas, um dique às suas legítimas pretensões. Isso acontece com a dona de casa, com o trabalhador e com o empresário. Acrescentada ao chamado “custo Brasil”, a lentidão judicial é verdadeiro imposto que agrava nossa produção, entrava nosso desenvolvimento.

Dentre os operadores jurídicos inexiste cabeça, a nossa inclusive, que não tenha uma proposta de reforma. A reforma necessária certamente não será qualquer dessas, senão a que venha nascer de uma ampla articulação de todos os que vivem os problemas da administração da Justiça: juízes, defensores públicos, servidores da Justiça e seus usuários.

Desde já, porem, a experiência aponta rumos para essa reforma: a demarcação do seu objetivo, a exata consideração dos seus fins, a definição dos seus métodos.

Em vês de “reforma do Judiciário” ou “reforma da prestação jurisdicional”, parece perecível dizer “reforma da administração da Justiça”. A prestação jurisdicional é apenas a última fase de um processo que só se instaura legitimamente se os interessados tiverem acesso, antes, a bens elementares da vida, e aos meios ordinários de constituição de prova: certidões, documentos, perícias, inquéritos.

Também a segurança é indissociável da Justiça. É inadmissível que as pessoas saiam de casa de manhã, sem a certeza de voltarem após o trabalho, que o Estado seja substituído pelo toque de recolher dos traficantes. Entre reformar a polícia e o Código Penal, não tenho duvidas em reformar a polícia.

O que diminui a criminalidade não é o tamanho da pena, é a certeza da punição. Mais importante do que modificar a lei é ter uma polícia que receba treinamento e equipamento, e seja capaz de decifrar os crimes.

Precisamos de Justiça eficiente e acessível a todos. “Não queremos juízes julgando debaixo das árvores”, afirmou Darcy Ribeiro. “Mas também não se admite um Poder Judiciário tão doentiamente autárquico que só cuida de si mesmo, indiferente ao destino da nação”.

Já disse alguém que a Justiça começa na calçada, outros mencionaram o direito achado na rua. A porta da Justiça não está nos tribunais: está nos guichês, nas repartições, nas delegacias, e precisa ser uma porta ampla: um prolongamento da rua, da calçada.

É preciso, urgentemente, democratizar a Justiça. Trazer para dentro dela milhões de pessoas que estão excluídas.

Por outro lado, é indispensável modernizar a administração da Justiça, realizar um “aggiornamento” das inteligências, e torná-la contemporânea das técnicas sem as quais, hoje em dia, é impossível trabalhar, negociar e produzir. São muitos os experimentos –  balcões do povo, centros integrados de cidadania, juizados especiais, procedimentos inteiramente informatizados – em condições de serem ampliados e estendidos.

“Brevidade na administração da Justiça” – consignavam as Ordenações do Reino – “é o principal respeito, que deve haver”. Ao que parece adequado o escólio de José Carlos Barbosa Moreira, condenado a crença de que cabe aos defeitos da legislação processual a maior responsabilidade pela duração excessiva dos pleitos: “O chavão, repetido a cada momento – sobretudo em editoriais da imprensa, redigidos, ao que parece, por pessoas que nunca sequer passaram pela porta do Fórum – acompanha-se de recomendações veementes de que se reduzem prazos e recursos, se cancelem oportunidades para as manifestações das partes, e outras do gênero”. “O que todos devemos querer” – sublinha – é que a prestação jurisdicional venha a ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço”.

Quanto ao método, alguns conceitos, algumas palavras-chaves se entremostram. Não existe método sem o estabelecimento de princípios, e na ordem dos princípios, o mais importante é a independência do Judiciário.

Também nos momentos de normalidade democrática podem ocorrer agravos à independência da magistratura, considerada como um todo, ou dos juízes considerados individualmente. Essa independência tem duas faces: a face negativa, corresponde à inexistência de coerção de qualquer espécie, e a face positiva, corresponde à existência das condições materiais necessárias ao exercício da jurisdição.

Segundo Paulo Bonavides, porém, a chamada crise do Poder Judiciário, “longe de ser no fundo e na substância apenas crise de meios materiais ou humanos indeclináveis ao bom exercício da prestação jurisdicional, é destacadamente uma crise de visão jurídica”. Ao que complementa Wolf Paul: “desde o ponto de vista metodológico, tanto a lealdade constitucional como a atitude política da magistratura deveriam ser de fundamental relevância para a realização do Estado democrático de direito e a ampla democratização do país. Não há ‘Constituição cidadã’ cumprida sem o compromisso democrático da magistratura.”

Também não existe método sem o conhecimento cientifico daquilo que se pretende reformar. Por mais respeitáveis que se apresentem, as opiniões nem sempre dão conta da realidade: faz falta um diagnóstico objetivo, quantitativo, preciso, sobre o estado da administração da justiça, como condição de intervenções consistentes e produtivas.

Nossa realidade é múltipla, variada. Uma coisa é justiça comum, outra as justiças especiais. Uma coisa é a justiça do trabalho, e a outra a justiça eleitoral, a justiça militar, os juizados especiais, os juizados das crianças e do adolescente, a justiça agrária. Uma coisa é a justiça civil, outra a justiça penal. Uma coisa é a justiça dos Estados, outra a justiça federal. Um coisa é a jurisdição voluntária, outra a jurisdição contenciosa. Uma coisa é a jurisdição ordinária, outra a jurisdição constitucional.

Este é o momento de uma grande articulação, que envolva os tribunais superiores, as demais cortes de justiça, os juízes, o ministério público, a advocacia, e suas respectivas entidades, a fim de que, possamos descobrir a reforma necessária, e, na seqüência, implanta-la. Nos trabalharemos pelo consenso.

Tenhamos presentes, ante nossos olhos, as multidões sequiosas de justiça. Que os obstáculos não nos intimidem, que as resistências não nos entibiem, que a rotina não nos acomode. Com tais propósitos, lancemo-nos à obra.

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