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Reforma Trabalhista ainda vai dar muito o que falar

20 de novembro de 2017

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Realizado às vésperas do início da vigência da reforma trabalhista, o disputado seminário “Novos paradigmas do Direito do Trabalho” teve debates acalorados e mostrou que a aplicação das novas regras está longe do consenso. Além da urgência, o grande interesse no debate também se justificou pela qualidade dos debatedores, incluindo o ministro do STF Luis Roberto Barroso e especialistas em leis trabalhistas como os ministros do TST Alexandre Agra Belmonte e Guilherme Augusto Caputo Bastos, os desembargadores Sérgio Torres (TRT6), Rosana Travesedo (TRT1) e Vólia Bomfim (TRT1), além do relator da reforma trabalhista na Câmara, deputado Rogério Marinho (PSDB-RN).

A troca de ideias entre eles mostrou que ainda há muito o que discutir, nos plenários e tribunais, até que o alcance das novas regras esteja consolidado. Afinal, o seminário aconteceu em contexto de disputa entre parlamentares e magistrados. Poucos dias antes, na II Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), foram aprovados 125 enunciados sobre a interpretação e aplicação da lei da reforma (Lei no 13.467/2017). Vários deles apontam a inconstitucionalidade dos novos dispositivos ou sua incompatibilidade com as convenções da OIT. Em resposta, começaram a circular no Congresso proposta de extinção da Justiça do Trabalho e transferência de suas atribuições para a Justiça Federal.

Organizado pela Associação de Supermercadistas do Estado do Rio de Janeiro (Asserj), o seminário teve dentre seus principais patrocinadores o Sebrae Rio e a Souza Cruz. A realização foi do curso jurídico Espaço Intelectual, com coordenação científica da Dra. Carolina Tupinambá.

Ministro Luis Roberto Barroso, do STF

Socialismo para ricos – Na primeira palestra, o ministro Barroso disse que não devemos nos deixar contaminar pela “onda de negatividade que tomou conta do país”, pois “o retorno do país ao curso de sua história” virá com o fortalecimento da livre iniciativa, da democracia e da justiça social.

“Livre iniciativa de verdade, com concorrência, risco e igualdade entre os competidores. Não esse modelo esquisito de capitalismo que cultivamos no Brasil, que vive de financiamento público, reserva de mercado e desonerações para ter vantagens competitivas sobre concorrentes. Esse modelo ruim é uma forma de socialismo para ricos. Precisamos de livre iniciativa em sentido pleno”, ressaltou.

Para Barroso, a enorme quantidade de ações apresentadas todos os anos à Justiça do Trabalho é a comprovação de que há algo errado. Citando relatório do Congresso, o ministro ressaltou que o Brasil lidera o ranking das reclamações trabalhistas com quatro milhões de novas ações/ ano, muito à frente do segundo colocado, os EUA, com 200 mil, e da França, em terceiro, com 170 mil. A complexidade da legislação, o viés ideológico de muitas decisões e o modo como muitas vezes a advocacia trabalhista solicita sua clientela estariam entre os fatores que contribuem para judicialização. Dentre as consequências negativas, já que as ações com muita frequência ocorrem após as rescisões, o real custo do contrato de trabalho só é conhecido após seu término. “Porque o litígio é inexorável, o empregador deixa alguma coisa pendente para fazer o acordo depois. Esse modelo é um evidente desestímulo à contratação e à formalização”, disse o ministro. Ele acrescentou às consequências da judicialização os impactos negativos sobre o sistema previdenciário, o valor dos salários e a produtividade do trabalho.

Ministro Alexandre Agra Belmonte, do TST

Ex tunc, ex nuncO ministro Alexandre Belmonte subiu o tom crítico. Disse que a legislação trabalhista e seu caráter protetivo não podem ser apontados como causas do desemprego na medida em que, com as mesmas leis, o país alcançou o pleno emprego em 2014. O magistrado questionou também a açodada tramitação da reforma, que levou apenas quatro meses. Reconheceu que de fato era necessário atualizar a legislação, mas que a falta de amplos debates deu azo a exageros, como o fato da redação original, de apenas sete artigos, ter sido aprovado com 117.

Ao falar sobre a aplicabilidade da nova lei aos contratos vigentes, Belmonte disse que a aplicação a todos os contratos de prestação continuada é imediata, respeitado “o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A exceção vem com os contratos por tempo determinado que já estejam em curso. Para esses, vale a regra vigente no momento da contratação, embora seja possível a inclusão de adendos mediante negociação. Na medida em que a Constituição veda a retroatividade, as relações jurídicas já encerradas estão fora de alcance. Não há qualquer garantia, no entanto, para as “expectativas de direito”, que Belmonte exemplificou com a contagem de prazo para a incorporação de gratificações.

Desembargadora Vólia Bomfim, do TRT-1a Região

Inversão na hierarquia do Direito – Para a desembargadora do TRT 1a Região e autora de vasta obra trabalhista, Vólia Bomfim Cassar, estamos no movimento pendular entre a proteção excessiva e a desproteção, em busca da difícil fórmula da pacificação entre capital e trabalho. Para ela a reforma tem um viés privatista que se expressa a partir do Art. 8o. “Poucos perceberam a mudança no parágrafo primeiro do Art. 8o. A redação antiga dizia que nas lacunas do Direito do Trabalho, o juiz deveria utilizar as regras do direito comum, quando compatíveis. Desapareceu a expressão ‘quando compatíveis’. É a primeira grande mudança. Já é dever do aplicador do Direito do Trabalho, aplicar nas lacunas o Direito Civil e os seus princípios, mesmo que não haja compatibilidade. Não bastasse essa colocação, o parágrafo terceiro do mesmo artigo claramente amarra os julgadores e a Justiça do Trabalho dizendo que ‘só pode aplicar nulidade de convenção ou acordo coletivo se houver violação dos requisitos do Art. 104 do Código Civil’. É um artigo dirigido à Justiça do Trabalho, no sentido de que a partir de agora devemos nos limitar aos vícios do negócio jurídico”.

Segundo a desembargadora, a partir da reforma as normas coletivas convencionadas estarão acima das próprias leis. “Lembra do velho princípio da aplicação da norma mais favorável? Acabou. Lembram daquela pirâmide em que a Constituição está acima, abaixo delas as leis ordinárias, as leis complementares, as convenções e acordos? (…) Agora, a convenção ou acordo, mesmo quando reduzir ou suprimir direitos, estará acima de qualquer lei ordinária. (…) Foi feito tão detalhadamente que o caput do Art. 611-A diz: ‘A convenção e o acordo prevalecem sobre a lei nos seguintes itens, entre outros’. O ‘entre outros’ quer dizer que pode tudo que não violar a Constituição e não mexer com créditos ou tributos de terceiros”.

Ativismo judicial – Na volta do almoço, os trabalhos foram retomados com a palestra do deputado federal Rogério Marinho, que relatou o projeto da reforma na Câmara. Ele rebateu as críticas de que houve pouca discussão, pois teriam sido realizadas 17 audiências públicas para ouvir mais de 200 especialistas. Disse ainda que a reforma recebeu mais de 1.400 emendas na Câmara e 800 no Senado, passando para a história como o segundo projeto mais emendado na história do Congresso. Para Marinho, a reforma terá efeitos positivos imediatos sobre a competitividade das empresas, as taxas de desemprego e a retomada do crescimento econômico.

“Associações ligadas a juízes, como a Anamatra, ao MP, como a Associação dos Procuradores do Trabalho, e às associações de auditores fiscais vem fazendo declarações de que vão trabalhar pela não aceitação da lei, inclusive orientando juízes sobre como podem burlar a legislação. (…) Todo juiz tem a prerrogativa de fazer o controle difuso da constitucionalidade. Pode atribuir que determinado artigo é inconstitucional e simplesmente não acatar, justificando isso na sentença. É uma prerrogativa do juiz e é bom que seja assim. Agora, uma associação de classe se reunir e pregar de forma deliberada que os juízes têm que descumprir a lei e orientá-los como fazer torna-se desobediência civil. É crime”, alfinetou o deputado.

Patamar mínimo – O ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos abriu a palestra “O embate entre o legislado e o convencionado” com um questionamento à indisponibilidade e à irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas. Para ele, a jurisprudência do TST evoluiu ao fixar que todos os direitos poderão ser negociados, exceto quando o instrumento suprimir direito expressamente definido em lei ou reduzir o patamar mínimo protetivo assegurado ao trabalhador. Dessa forma, acredita, o Tribunal legitimou a norma jurídica produzida por meio da participação dialética dos envolvidos. “Se a rigorosa limitação da autonomia da vontade é a tônica do direito individual do trabalho, o mesmo não ocorre em relação ao direito coletivo do trabalho ou às normas constitucionais. A Constituição afirma a cidadania, a dignidade humana, o pluralismo político e reconhece uma série de direitos sociais que se prestam a proporcionar condições materiais para a participação do cidadão no debate público, especificamente no que se refere ao direito coletivo do trabalho”, observou. Mas, a fragilização dos sindicatos com o fim abrupto da contribuição sindical obrigatória poderá desequilibrar essa relação? O ministro deixou a pergunta em aberto.

Apesar das críticas às “amarras” impostas à Justiça pela reforma, Bastos reconheceu que a nova lei é legítima. “Não podemos simplesmente lhe negar aplicação, como querem muitos dos meus colegas, inserindo-se numa infração hipocrítica, em que o juiz embora pareça atender a lei, em verdade lhe dá um sentido que não é o dela”.

Tropeço, retrocesso ou solução? – A vice-presidente do TRT 1a Região, desembargadora Rosana Salim Travesedo, fez um duro contraponto às defesas da reforma. “Penso diferente de tudo o que foi dito aqui até agora”, disse no início de sua exposição. “A Constituição vigente é pródiga na previsão de direitos fundamentais de cunho econômico, um Estado social democrático e de direito vocacionado para a progressiva consecução de um projeto de igualdade material. (…) Não se poderá admitir que o legislador venha a reduzir de modo arbitrário ou desproporcional o patamar de desenvolvimento infraconstitucional de um direito fundamental social. Há, portanto, o princípio constitucional da proibição do retrocesso social, relacionado com o desiderato da Lei Maior de 1988, de promoção da justiça social”, criticou a magistrada, que acrescentou: “Pulsa hoje aqui a controvérsia. Será a reforma trabalhista um tropeço, um retrocesso ou uma solução mágica para revitalizar a combalida economia brasileira?”.

Para a desembargadora, o debate está eivado de mitos: “que a lei trabalhista impacta, que a Justiça não funciona, que benesses precisam ser retiradas, que trabalhadores e empregadores podem medir forças porque estão em igualdade de condições. Se estivéssemos na Suécia poderíamos implantar essa reforma trabalhista, mas estamos no Brasil, acorrentados a uma violência que nos impede de ir e vir, assistindo impactados o que se passa no Congresso Nacional. Esse Parlamento tem legitimidade para editar uma norma dessa magnitude?”, indagou à audiência.

Processo trabalhista – O desembargador Sérgio Torres aprofundou o debate com um olhar sobre as mudanças no direito processual do Trabalho, que considerou bem menos polêmicas do que aquelas operadas no direito material. Para ele, o desconforto é menor porque o direito processual trabalhista tem hoje como principal fonte o recente CPC, que materializa vários incisos processuais constitucionais. Dentre as principais alterações no âmbito processual, ele apontou questões envolvendo vias de acesso à Justiça, questões de deveres e direitos dos litigantes e questões propriamente procedimentais.

Premido pelo tempo, pôde comentar apenas algumas destas, como a possibilidade de aplicação da arbitragem nas demandas de trabalhadores que recebam duas vezes o teto da Previdência Social (R$ 11.062) e tenham cursos superior. O que ele considera um “balão de ensaio do governo” para a inserção das vias extrajudiciais na resolução de conflitos trabalhistas. No mais, disse considerar a maior parte das mudanças apenas superficiais. Por fim, defendeu calma, ponderação, bom senso e otimismo aos colegas: “Nós (juízes e advogados) é que vamos construir um novo modelo processual a partir dessa reforma. Sejam otimistas comigo”. 

Dra. Carolina Tupinambá

Cardápio de contratações – Na última palestra, a Dra. Carolina Tupinambá ressaltou a pluralidade das opiniões que se manifestaram no Seminário. Ela afirmou que a “nova Justiça do Trabalho” nascida da reforma “veio para ficar” e está assentada no tripé formado por: flexibilidade do legislado, pelo reconhecimento formal da autonomia coletiva; liberdade como proteção, a partir da identificação de um ponto ótimo nas relações entre capital de trabalho; e intervenção estatal racionalizada, baseada em confiança e previsibilidade. No encerramento, Tupinambá invocou Fernando Pessoa em O tempo da travessia: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas…”.

Encerramento – Para fazer o encerramento, foi convidado o presidente da Asserj, Fábio Queiroz, que comentou: “Jamais imaginei que seríamos capazes de realizar um evento tão maravilhoso quanto este. Foi muito satisfatório ver que demos espaço para que as pessoas possam tirar suas próprias conclusões. (…) Se a chuva nos encolheu um pouquinho de manhã, o conteúdo nos engrandeceu”.