Regra Moral no Controle Judicial

7 de março de 2012

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Desde os primórdios da construção do Estado de Direito que se discute se cabe ao Poder Judiciário o controle das condutas humanas em face de regras morais. É que, a partir da afirmação do caráter laico do Estado, fruto da separação entre Estado e Igreja, no século XVIII, adotou-se como premissa que direito e moral ocupam círculos concêntricos, mas não se misturam, por isso que à ordem jurídica não interessariam os postulados morais que as leis não transformassem em normas exigíveis de conduta, com o efeito de afastar do controle judicial o ato imoral que não colida com a legislação vigente ou se revista de aparente licitude formal.

Quando condutas situadas na fronteira entre moralidade e direito chegam ao julgamento pelo Judiciário, a questão de fundo reedita a velha questão. É o que se extrai das manifestações de acusação e de defesa, formuladas por analistas de variada formação e veiculadas pelo mais recente noticiário jornalístico, acerca de quatro assuntos que se repetem: aplicação de verbas públicas na realização de objetivos diversos daqueles fixados em convênios celebrados entre órgãos públicos e entidades privadas; uso de recursos do erário ou de sociedades empresárias para a cooptação de apoios políticos, tendentes a fazer prevalecer interesses unilaterais, com a aparência de interesse público; destinação preferencial de recursos a estados onde ministros pretendam favorecer projetos políticos pessoais ou partidários; exercício de controles internos sobre os próprios membros do Judiciário, quando sob suspeita de condutas incompatíveis com a magistratura.

O interesse que esses assuntos tem provocado traduz nova postura da sociedade, exigente de controles aptos a coibir violações antes morais do que jurídicas, desde que comprovadamente caracterizadas. Ao interesse se segue a incerteza: estariam os juízes preparados para aceitar que tais questões também cabem no controle judicial e que, cabendo, as julgariam de acordo com a nova postura?

A resposta há de ser dada com os olhos postos nas transformações que, a partir do século XX, vêm moldando novos paradigmas de controle jurídico da gestão pública.

As sociedades do pós-guerra 1939-45 se dão conta progressivamente de que sua escassa participação na avaliação das chamadas “razões de estado” e a proibição de controles sobre atos fundados na estrita discrição da autoridade – isto é, pouca democracia e muito autoritarismo – permitem que agentes públicos, sejam os políticos ou os administrativos, empreendam ações governamentais dissociadas das necessidades reais e dos interesses autênticos das populações a que se deveriam destinar, com efeitos conhecidos: programas e projetos de inadequada relação custo-benefício e finalidades desviadas do interesse público.

As Constituições promulgadas no período, de que são exemplos as da Alemanha, Itália, Espanha e de Portugal – não por acaso, nações que experimentaram modelos extremados de concentração autoritária do poder político, ao longo dos anos 1900 (nazismo, fascismo, franquismo e salazarismo) –, estabelecem, em seu próprio texto, políticas públicas limitadoras da discricionariedade e cuja execução possa ser objeto de controles efetivos pelas instituições incumbidas de aferir-lhes os resultados e retificar-lhes eventuais desvios, entre os quais o Poder Judiciário. Tal técnica nada mais é do que estratagema para limitar o exercício do poder.

Com a Constituição brasileira de 1988 não foi diferente. Até porque também aqui se viveu um período de forte concentração do poder político.

Das definições lançadas no texto constitucional até a sua absorção e observância cotidiana, porém, vão consideráveis distância e número de emendas. Mais de vinte anos e quase setenta emendas constitucionais se passaram e o que se vê, na realidade brasileira atual, é a busca da afirmação dos novos paradigmas, aos quais, contudo, resistem pessoas, corporações e culturas.

Quanto à configuração desses paradigmas, não subsiste, no direito público ocidental contemporâneo, divergência relevante no concernente à sua essência, em qualquer dos poderes constituídos do Estado e independentemente de filiações político-partidárias, a saber:

– o patrimonialismo (uso privado do que é público) deve ceder ao compromisso com os resultados de interesse público, mensuráveis mediante indicadores objetivos e de acesso democratizado;

– toda ação governamental deve cumprir o ciclo da gestão técnica (planejamento, execução, controle e avaliação);

– não pode prevalecer a discricionariedade administrativa onde houver política pública traçada na Constituição, a que se deve reconhecer supremacia;

– todos os atos dos agentes públicos, incluídos os providos de discricionariedade, devem explicitar os seus motivos (razões de fato e de direito que justificam a conduta) e sujeitar-se a controles institucionais e sociais sobre a sua veracidade e idoneidade, inadmissíveis nichos de irresponsabilidade;

– os princípios norteadores do sistema jurídico, entre os quais os da moralidade e da eficiência, encontram na Constituição sua sede principal e devem ser considerados normas jurídicas de eficácia imediata e providos de sanção para o caso de descumprimento, e, não, apenas, proposições gerais, impessoais e abstratas, de índole programática.

Quanto à concretização, tais paradigmas suscitam perplexidades e  divergências na travessia para a prática das instituições e de seus agentes.

Se, por um lado, é nova a extensão desse controle, não o é o debate acerca de sua natureza.

A resolução da antiga polêmica sobre as relações entre direito e moral conhece orientação que, já em 1930, imprimia Georges Ripert – professor da Faculdade de Direito e da Escola de Ciências Políticas de Paris –, em obra laureada, na qual rebatia a separação de seus respectivos círculos, ao examinar a presença da regra moral nos contratos. Assim:

“Percorrendo as decisões dos tribunais, eis os preceitos que se podem encontrar e dispor sob forma imperativa…: não procurarás tirar proveito do teu deboche ou de outrem; não enriquecerás injustamente… por astúcia ou pela força ou por embuste, mesmo que este não seja punível; não farás por interesse o que deves fazer por dever; não estipularás remuneração por atos que não devam ser pagos; não obterás por dinheiro uma impunidade culpável… A jurisprudência… não fez mais do que retomar e completar a obra dos canonistas, que tinha já marcado no direito ‘um progresso do espírito de moralidade’. A jurisprudência não acolheu o contrato como um ato abstrato que tirasse a sua força da vontade, mesmo quando esta objetivasse um fim ilícito, ou fosse inspirado por um desígnio imoral, mas, pelo contrário, pedindo contas às partes dos seus motivos, perscrutando as suas intenções, ligando o contrato ao fim que o determinou, recusou consagrar a realização de um pensamento culpável… Violação da liberdade de consciência? Não me consta que essa liberdade implique o direito de concretizar o pensamento imoral num ato que lhe deve dar satisfação. Digamos simplesmente: intervenção necessária do juiz para assegurar o respeito de um princípio do qual o legislador não podia precisar a aplicação” (A regra moral nas obrigações civis, pp. 74 e 83. Ed. Bookseller, 2000, trad. Osório de Oliveira).

Advertia Ripert que

“A regra moral pode ser estudada na sua função normativa quando vem impedir o abuso da forma jurídica que se queira utilizar para fins que a moral reprova. Contra o princípio da autonomia da vontade ela cria a necessidade devida ao contratante que se encontra em situação de inferioridade e que é explorado pela outra parte; ensina que a justiça deve reinar no contrato e que a desigualdade das prestações pode ser reveladora da exploração dos fracos; lança a dúvida sobre os acordos que são a expressão duma vontade demasiado poderosa dominando uma vontade enfraquecida… A moral ensina também que é preciso inquietarmo-nos com os sentimentos que fazem agir os assuntos de direito: proteger os que estão de boa-fé, castigar os que agem por malícia, má-fé, perseguir a fraude e mesmo o pensamento fraudulento… O dever de não fazer mal injustamente aos outros é o fundamento do princípio da responsabilidade civil; o dever de se não enriquecer à custa dos outros, a fonte da ação do enriquecimento sem causa… Não se adiante muito mais quando, renunciando a distinguir em toda a sua extensão os domínios do direito e da moral, se tenta caracterizá-los por meio das regras: o direito propondo-se à ordem e não se ocupando senão das ações; a moral ocupando-se das intenções e propondo-se ao aperfeiçoamento interno individual… Se o direito se ocupa das ações, não é indiferente às intenções e seria singularmente paradoxal dizer que ele tem por missão a proteção dos corpos e não a das almas; se ele se desinteressa pelo aperfeiçoamento moral do indivíduo, deixa de ter o seu papel na sociedade. Não existe, na realidade, entre a regra moral e a regra jurídica, nenhuma diferença de domínio, de natureza e de fim; não pode mesmo haver, porque o direito deve realizar a justiça, e a ideia do justo é uma ideia moral. Mas há uma diferença de caráter. A regra moral torna-se regra jurídica graças a uma injunção mais enérgica e a uma sanção exterior necessária para o fim a atingir”
(pp 24-27).

Na jurisprudência brasileira contemporânea, a regra moral tem sido a chave para resolver um sem número de conflitos cíveis, de que decorram danos materiais (perda ou diminuição patrimonial), cumulados ou não com danos morais (lesão a direitos da personalidade, tais como honra, nome, imagem, crédito, integridade física e psicológica), seja nas relações contratuais ou extracontratuais, com ou sem a participação do poder público.

Aos adeptos da legalidade estrita, como barreira à aplicação da regra de moralidade, recorde-se que os princípios que homenageiam a boa-fé objetiva e vedam o enriquecimento sem causa passaram a constituir, igualmente, regras jurídicas, acolhidos que foram nos artigos 113 e 884 do Código Civil de 2002, além de figurarem entre as normas do Código de Defesa do Consumidor, de 1990, autorizando o juiz a invalidar contratos ou declarar a nulidade de cláusulas abusivas. E que a transgressão culposa de princípios por agentes públicos constitui ato de improbidade administrativa, segundo o disposto no art. 11 da Lei no 8.429/92.

Na jurisprudência penal, nada obstante o devido prevalecimento do princípio da reserva legal (não há crime sem lei anterior que o defina) e das garantias da ampla defesa e do contraditório em processo regular, várias são as questões que suscitam divergências de interpretação na aplicação da norma punitiva, conforme se acentue ou se atenue a reprovação moral às circunstâncias em que se materializou o delito imputado ao acusado.

Diante das expectativas que as Constituições contemporâneas despertam nas sociedades e dos valores por estas reconhecidos, os juízes e tribunais devem estar qualificados para aplicar o direito segundo regras de moralidade, seja nas convenções entre particulares ou nas relações públicas. Legítimo que o façam em todos os processos, de qualquer porte e repercussão. Mormente quando tais processos houverem de ser julgados pelas Cortes Superiores, cujas decisões assentam paradigmas de elevado efeito pedagógico e multiplicador para todo o sistema judiciário, a reforçar o conceito que, na cultura jurídica brasileira, deixou Clovis Bevilacqua, mentor do Código Civil de 1916 – “A Justiça é o Direito iluminado pela Moral”.