Relevância constitucional do crédito rural como alicerce do direito à alimentação

16 de junho de 2014

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MassamiO Ano de 2014 foi aclamado pela ONU como o Ano Internacional da Agricultura Familiar.

E, efetivamente, a relevância da alimentação avulta de importância ante o ameaçador espectro da fome que paira sobre a humanidade.

Daí, pensamos ser oportuno tecer algumas reflexões sobre o tema deste artigo, para possibilitar aos aplicadores do Direito adequado embasamento para sua compreensão.

Elementar a noção de que o ser humano não dispensa a alimentação como essencial para sua sobrevivência, mas, conquanto esta noção seja tão simples, somente em 2010 ela veio a ganhar dignidade constitucional como sendo um direito social, por força da EC 64, que a inseriu no rol do art. 6o da Constituição Federal de 1988.

Pode parecer óbvio que a alimentação, por ser essencial à existência humana, exatamente por sua obviedade, dispense tratamento constitucional.

Mas, se analisarmos o art. 1o da CF, ao apresentar o elenco dos fundamentos da República Federativa do Brasil, ali estão relacionados fundamentos óbvios para um Estado Democrático de Direito, sendo de se considerar que, precedendo o conceito de dignidade da pessoa humana, encontra-se a alimentação, sem a qual a própria vida não seria possível.

Então, pergunta-se: somente após 22 anos da promulgação da Constituição Cidadã é que a alimentação veio a ser reconhecida como direito social?

Estas considerações aqui são feitas porque, na sequência de obviedades, a alimentação não dispensa a produção de alimentos e esta, por sua vez, como resultado do labor do homem do campo, não se realiza sem a adequada e necessária obtenção do crédito.

Aliás, o crédito é fator fundamental para a vida em sociedade.

Crédito, em sua origem etimológica, significa confiança, boa-fé. Esses conceitos, por sua vez, constituem o amálgama do convívio social. Sem confiança e boa-fé o núcleo social se esfacelaria.

O crédito rural, entretanto, vem sendo tratado ao longo do tempo de modo preconceituoso, como se fosse uma benesse extraordinária que o Estado concede aos produtores rurais, os quais constituem elo fundamental para a cadeia produtiva do “agrobusiness”, tão decantado como a âncora verde que proporciona significativa participação na balança comercial do País, mas tão relegado ao plano das atividades subalternas ou menores, sob o estereótipo de que produtor rural (principalmente o pequeno) é o homem do campo, matuto e inculto, sob a sombra e o estigma de “Jeca Tatu”.

A atividade agrícola é, dentre as atividades produtivas, a primeira, concomitante ao surgimento do homem. A esta constatação não se apartou o constituinte de 1988, ao conferir-lhe dignidade constitucional, com tratamento diferenciado e específico não concedido no texto consti­­tucional a qualquer outra (comércio, indústria  e serviços, que são derivados da agricultura), pois no art. 23, inciso VIII, dispôs ser da competência comum da União, dos Estados, do DF e dos Municípios o fomento à produção agropecuária e a organização do abastecimento alimentar.

E mais, no art. 187 da Carta Magna, ao estabelecer a política agrícola como meta do Estado, conclama que ela será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes.

E esta política agrícola, por sua vez, assenta-se, entre outros fundamentos, na concessão de instrumentos creditícios e fiscais, no estabelecimento de preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização e no seguro agrícola (incisos I, II, V, art. 187, CF).

Na prática, contudo, o que se vê é o vicejar do distorcido entendimento de que o crédito rural tem os mesmos contornos de um crédito bancário comum.

Não. O que deve ser considerada, em relação ao crédito rural, é a circunstância de o tomador do crédito (o produtor), por exercer atividade sujeita à sazonalidade, às intempéries da natureza ou às flutuações de uma Bolsa de Mercadorias, não poder balizar-se de acordo com os parâmetros comuns, sujeitos ao risco do empreendimento, como ocorre em outras atividades produtivas.

Daí que, exemplificativamente, juros incidentes sobre o crédito devem ter alíquotas diferenciadas às dos demais empréstimos comuns; o prazo de vencimento, em ocorrendo qualquer das circunstâncias impeditivas da safra prevista (excesso de chuva, secas, pragas devastadoras, geadas, granizo, tufões, queda do preço mínimo, etc.) há de proporcionar e possibilitar a renegociação da dívida, com o alongamento de prazos, (sem, contudo, impingir-se a famigerada operação “mata-mata”), sem que isto constitua-se em privilégio, mas, sim, como tratamento isonômico ao produtor rural, garantindo-se o fornecimento da alimentação, essencial ao ser humano.

Essas operações, seja a de conceder o crédito rural com juros e prazos especiais, seja no tratamento à prorrogação do vencimento para sua solvência, não são realizadas ao arrepio da lei e da Constituição.

O abrigo constitucional se encontra nos incisos I e II do art. 187 da CF, e a cobertura legal, por sua vez, no inciso V do art. 50 da Lei 8.171/91, que disciplina a fixação do cronograma de pagamento do mútuo rural, ao dispor “prazos e épocas de reembolso ajustados à natureza e especificidade das operações rurais, bem como à capacidade de pagamento e às épocas normais de comercialização dos bens produzidos pelas atividades financeiras”.

Quanto à prorrogação do vencimento da obrigação de pagar o mútuo rural ou, como se queira, o alongamento da dívida, o Manual de Crédito Rural do Banco Central, ao dispor normativamente, estabelece:

Art. 3o. São objetivos específicos do crédito rural:
III – Possibilitar o fortalecimento econômico dos produtores rurais, notadamente pequenos e médios;
a – Independentemente de consulta ao Banco Central do Brasil, é devida a prorrogação da dívida, aos mesmos encargos financeiros antes pactuados no instrumento de crédito, desde que se comprove incapacidade de pagamento do mutuário, em consequência de: (Circ. 1536)
b – dificuldade de comercialização de produtos; (Circ. 1536)

O crédito rural foi instituído pela Lei no 4.829/65, com o escopo de desenvolver a produção rural do País, possibilitando-se, com a concessão da linha de financiamento, o incremento da propriedade rural e de seus meios de produção, tudo de molde a se alcançar ofertas qualitativa e quantitativa de produtos agropecuários de modo a proporcionar o bem estar do povo, com a elevação de seu padrão alimentar.

A Lei no 4.829/65 previu que o crédito rural, para proporcionar o custeio oportuno e adequado da produção e comercialização de produtos agropecuários, deve resultar de aplicação compulsória de recursos em operações típicas de crédito rural.

E o próprio legislador se encarregou de frisar que a finalidade do crédito rural não pode representar ganho do emprestador, mas deve visar o fortalecimento econômico do tomador, posto que, sem a concessão de referido crédito, não se tem como alcançar a finalidade eminentemente social da atividade agrícola.

Veja-se que a lei que institucionalizou o crédito rural – Lei no 4.829/65 – dispôs expressamente em seu artigo 14 que os termos, prazos, juros e demais condições de operações de crédito rural, sob qualquer das modalidades, serão estabelecidos pelo Conselho Monetário Nacional, tendo-se em mente a limitação, sempre que necessário, das taxas, dos juros, dos descontos, das comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários, certo que as taxas de operações, sob qualquer modalidade de crédito, serão inferiores, em pelo menos ¼, às taxas adotadas para as operações de crédito mercantil.

Não sendo o crédito rural um crédito de natureza comercial e sendo um crédito especial, de natureza social, a interpretação dos contratos de mútuo rural não pode ser feita como se comerciais fossem, já que não são resultantes de operações de mercado financeiro.

As operações creditícias de mercado financeiro são amparadas pela Lei no 4.595/64, que instituiu a reforma bancária, enquanto as de crédito rural são baseadas na Lei no 4.829/65, que institucionalizou o crédito rural no Brasil.

E o crédito rural deriva de recursos oficiais que os emprestadores recebem com a finalidade de repassá-los ao mutuário rural, sendo regulado pelo Conselho Monetário Nacional para cada safra.

Aqui se observa ser o caráter sazonal de cada safra o fator norteador do Conselho Monetário Nacional a regular a liberação dos recursos oficiais a serem compulsoriamente concedidos por meio do financiamento rural.

A constatação de que o crédito rural não tem natureza comercial e que o elemento fático da sazonalidade das safras é o termômetro regulador do sucesso das mesmas é que permite invocar a inocorrência de mora no adimplemento do crédito se ocorrer o insucesso do empreendimento financeiro, caracterizando fato ou omissão inimputável ao devedor, como reza o artigo 963 do Código Civil:

Art. 963. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora.

Assim, a alteração da política agrícola, com a redução do preço mínimo, poderia caracterizar o insucesso do empreendimento, ao lado, evidentemente, de fatores climáticos adversos, tais como chuva excessiva, seca prolongada, geada, granizo, incêndio, praga etc.

Esta hipótese acha-se contemplada no Manual do Crédito Rural, Capítulo 2, Seção 6, Item 9, do Conselho Monetário Nacional, admitindo-se a prorrogação do financiamento, desde que comprovada a incapacidade financeira do mutuário para satisfazer o contrato no vencimento.

O desconhecimento da mens legis referente ao crédito rural tem acarretado muitas vezes soluções que não se coadunam com as finalidade eminentemente sociais que motivaram sua edição.

Assim, veja-se o que ocorre no tocante à capitalização dos juros incidentes sobre o crédito rural.

O artigo 5o do Decreto Lei 167/67 dispõe que os juros incidentes sobre o financiamento rural, cujas taxas são fixadas pelo Conselho Monetário Nacional, são exigíveis em 30 de junho ou 31 de dezembro, podendo ser capitalizados, ou seja, incidem semestralmente e não mensalmente.

Esta disposição legal motivou a edição da Súmula 93, do STJ, assim enunciada:

Súmula 93 – A legislação sobre crédito rural, comercial e industrial, admite o pacto de capitalização de juros.

Embora possa a leitura singela da Súmula induzir a conclusão de que o crédito rural, assim, tem a mesma natureza jurídica do crédito comercial e industrial, isso não ocorre, pois o crédito rural tem natureza eminentemente social. O enunciado pode, também, induzir a interpretação de incidência da capitalização de juros mensal ao crédito rural, quando, na realidade, é semestral.

Ao lado do florescente campo do agronegócio, a participação da agricultura familiar no Brasil é expressiva e é ela a responsável imediata pelo suprimento e pela fartura na mesa das famílias brasileiras.

A adequada e correta compreensão do direito à alimentação e do crédito rural, por certo, contribuirá para que o respeito à dignidade da pessoa humana não permaneça apenas como silencioso fundamento da República Federativa do Brasil.