Edição

Renúncia de Jânio Quadros efeitos e consequências

31 de outubro de 2006

Compartilhe:

Iniciava-se o mês de agosto de 1961 e tinha-se a sensação que a tempestade estava próxima.

O Presidente Jânio Quadros subira ao poder, com apoio da direita e da ala populista. Apesar de não contar com maioria no Congresso, passou a governar com grande afirmação, eleito que fora por maioria absoluta.

Seu vice-presidente, João Goulart, fora eleito graças ao trabalho em prol da dupla “JAN-JAN” (Jânio e Jango). A Constituição de 1946 à época permitia que o presidente e o vice-presidente tivessem as votações separadas e fossem de partidos diferentes. Apesar de João Goulart representar o partido da oposição (PTB), não oferecia ameaça à forma de governar de Jânio.

Tinha Jânio estilo próprio. A tônica era a dos “bilhetinhos”, que com desenvoltura e êxito, ele próprio escrevia, substituindo os protocolares ofícios.

Convidara o presidente Jânio para chefiar o CONTEL – Conselho Nacional de Telecomunicações, o general Paulo Krugger da Cunha Cruz, meu ex-comandante e amigo, profundo conhecedor das comunicações e com larga experiência no setor.

O general Paulo Krugger era um militar de glorioso passado, com brilhante passagem como integrante da Coluna Prestes.

Com o decorrer dos meses algumas ações espetaculares começaram a deixar preocupados os que depositavam absoluta confiança em seu governo.

Assim foi a famosa proibição da “briga de galos”, e abolir os anúncios nos intervalos das sessões de cinema, que nada tinham a ver com os importantes problemas nacionais. Abre frente contra o desperdício gasto em papel – à época, importado – nas edições dos principais jornais do país. Vai à televisão e apresenta edições de domingo dos jornais Estado de São Paulo e Jornal do Brasil, exibindo grosso calhamaço.

Transpira a notícia haver determinado que o Estado-maior do Exército estude um plano de invasão das Guianas.  Envia missão extraordinária, chefiada pelo jornalista João Dantas, diretor do Diário de Notícias à área socialista.  Condecora Che Guevara, líder exportador da Revolução Cubana para a América, com a medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul, a mais alta condecoração do Brasil. Envia o vice-presidente João Goulart para, em missão extraordinária, visitar a China.

Paralelamente à repercussão dessas medidas, começa a circular a notícia de golpe iminente, com fechamento do Congresso, a ser executado por Jânio Quadros.

Na noite do dia 24 de agosto, Carlos Lacerda, então governador do estado da Guanabara, ocupa por várias horas a televisão para denunciar o golpe.

Na manhã do dia 25 de agosto, em Brasília, na solenidade do Dia do Soldado, os três ministros militares, em ordem do dia – presente Jânio Quadros – pela palavra do ministro Odilio Denys, fazem ao presidente da República enérgica advertência, com evidente ligação com a denúncia da véspera feita por Carlos Lacerda.

Retira-se Jânio Quadros. Ele próprio datilografa uma carta-renúncia e viaja para São Paulo, onde vai para a base aérea de Cumbica na capital do estado. Lá permanece aguardando os acontecimentos, como se esperasse uma reação de apoio. Consta que ao chegar a São Paulo, foi recebido pelo então governador Carvalho Pinto, mantendo áspero diálogo, chegando a agredi-lo, o que levou o governador a ter que engessar um dos braços.

Os ministros militares viajam para o Rio de Janeiro.  O Congresso Nacional aceita a renúncia e o presidente da Câmara, deputado Raniere Mazily assume o exercício da presidência da República, nomeando chefe da Casa Militar o general Ernesto Geisel.

Até hoje o episódio da renúncia é objeto de controvérsia,  no que se refere a sua interpretação.  Nunca Jânio Quadros esclareceu os verdadeiros motivos, embora em entrevistas em 1976, à revista Manchete e à Folha de São Paulo, tenha dado sua versão, alegando razões de consciência em face da hostilidade do Congresso. Fato insofismável é que Jânio esperava que o povo não aceitasse sua renúncia é tampouco esquecera de levar consigo a faixa presidencial que, ao renunciar, não mais lhe pertencia.

Vendo-se frustado pelas denúncias do governador da Guanabara e colhido de surpresa com a advertência dos ministros militares de cuja ação dependia superestimou seu prestígio populista, julgando certamente o que se reproduziria na História do Brasil: o “fico”. Jânio  ficou à espera em Cumbica.  Os ministros militares reagiram à posse de João Goulart e a nação mergulhou em dias de imensa dúvida.

A importância do CONTEL equivalia a que teve a EMBRATEL, tais os poderes que enfeixava nas comunicações.

À época da renúncia, servia na diretoria de estudos e pesquisas tecnológicas, como chefe, o general Delson Mendes da Fonseca, muito ligado ao general Kruger.

A partir do dia 27 de agosto, no CONTEL, participei de todos os acontecimentos, movimentos e decisões no sentido de impedir a posse de João Goulart.  Pelos meios de comunicação auscultava-se tudo o que se passava no Brasil.

A par desse trabalho, desenvolvíamos intensa ligação com as autoridades militares, levando-lhes informações sobre a situação do Rio Grande do Sul, onde o então governador, Leonel Brizola, sentindo a oposição à posse de seu cunhado João Goulart, organizou o foco da resistência, através da famosa “cadeia da legalidade”, irradiada da capital do estado pela Rádio Guaíba. Determinou que a brigada militar protegesse o palácio do governo e dali, utilizando a invejável potência da mesma rádio, transmitia em ondas médias e curtas, durante 24 horas, para o Brasil e para o exterior, em várias línguas, notícias conclamando o povo e as forças armadas a defenderem a legalidade, com a posse de Goulart.

Era comandante do III Exército, em Porto Alegre, o general Machado Lopes, que recebeu ordens do ministro Odílio Denys para prender o governador Leonel Brizola e ocupar o Palácio Piratini. Contrariando a ordem recebida, Machado Lopes entende-se com o governador e adere ao movimento a favor da posse de João Goulart.

Em conseqüência, o ministro da Guerra demite o general Machado Lopes e nomeia para substituí-lo o general Oswaldo Cordeiro de Farias, ex-integrante da FEB e com grande prestígio nas forças armadas, que nunca assumiu o cargo.

Quanto à força aérea, com base em Canoas, considerando o posicionamento dos oficiais, foi feito um “acordo de cavalheiros”. Os aviões deixariam a base aérea, com a condição de voarem desarmados, o que foi cumprido.

Na China, sabedor da renúncia, João Goulart regressa rápido ao Brasil.  Sem condições de aterrissar em Brasília, ou em outro qualquer ponto do território, à exceção de Porto Alegre. Para lá se dirige, onde é recebido em triunfo.

Os dias passam e no CONTEL o trabalho é ininterrupto.  Através da escuta e da interceptação de telegramas, tomávamos conhecimento das comunicações com Porto Alegre.  Intensa é a movimentação de Tancredo Neves, pela posse de João Goulart.  Nos telegramas, seu código era “titio”.

Na euforia que imperava em Porto Alegre, João Goulart, toma posse como presidente da República, ao arrepio do previsto na Constituição. As estações dos Correios e Telégrafos em Jacarepaguá (RJ) gravavam todas as transmissões de Porto Alegre.

Por ordem do CONTEL, as comunicações com Brasília são interrompidas.

Dois contatos importantes fiz nesse período: um, com o comandante da Vila Militar, general Adhemar de Queiroz, onde fora levar cartuchos do “canhão 155mm”, produzidos às pressas pela fábrica de Realengo, e cujo projeto estava sob minha supervisão na diretoria de estudos e pesquisas tecnológicas. O grupo de artilharia “155mm” recebera ordem de embarque. Aproveitei a ocasião para informá-lo de que no 3º Batalhão de Carros de Combate, onde servia um filho do coronel Rodolfo Navegantes, meu velho companheiro, a totalidade dos sargentos e quase todos os oficiais comprometidos com  seu ex-comandante, Anaurelino Vargas, eram favoráveis à posse de João Goulart.

No Rio Grande do Sul, várias guarnições recusaram receber ordens do general Machado Lopes, tendo sido organizado um núcleo de resistência em Santa Maria, cidade central do Rio Grande do Sul.

Nesse contexto, na iminência de uma guerra civil, surge a idéia promovida por alguns generais de ser dada posse a João Goulart, limitando-lhe os poderes. O senador Afonso Arinos que viera ao Rio de Janeiro para esse fim, regressa a Brasília para dar curso à adoção do parlamentarismo.

Constantes eram os contatos do general Paulo Kruger com o ministro Denys e com o general Nestor Souto de Oliveira, comandante do I Exército.  A unidade dos ministros Militares e o pensamento contra a posse de João Goulart era assunto inquestionável.

Enquanto isso, o Congresso Nacional aprovava, em medida urgentíssima, no dia 2 de setembro, a emenda constitucional nº 4, instituindo o sistema parlamentar de governo, que em seu artigo 25 previa que lei específica poderia dispor sobre a realização de plebiscito que decidiria pela manutenção do sistema parlamentar ou pela volta ao sistema presidencial. Em tal hipótese, deve-se fazer a consulta plebiscitária nove meses antes do término do atual período presidencial. Desta forma estava praticamente assegurado que João Goulart seria presidente de um governo parlamentarista, pelo menos até 9 meses antes de terminar seu mandato.

Ao chegar ao CONTEL, deparei-me com um telefonema do Major Miranda Carvalho, da Secretaria do Conselho de Segurança Nacional, chefiada pelo coronel Golbery, para que fosse determinado o levantamento da interdição das comunicações com Brasília, a fim de ser divulgada a aprovação da emenda parlamentarista.  Ponderei e insisti que fosse antes anunciada a posse de João Goulart em Porto Alegre, ao arrepio da Constituição, por julgar que a importância dessa notícia reforçava o posicionamento dos ministros militares contra a posse de João Goulart.

A seguir, novo telefonema de Miranda Carvalho, informando-me que deveria ser cumprida a ordem de Golbery para abrir as comunicações com Brasília, para que se anunciasse a emenda parlamentarista.

Levantada a interdição, ao mesmo tempo que as rádios e televisão anunciavam a emenda parlamentarista, ligações telefônicas eram efetuadas de Brasília para Porto Alegre.

Pouco depois, chegava comunicação da Estação dos Correios e Telégrafos, em Jacarepaguá, de que haviam sido gravadas conversas telefônicas do Sr. João Goulart com os principais líderes políticos que se sucediam: senador Áureo de Moura Andrade, deputados Batista Ramos, Doutel de Andrade, etc.

As conversações versavam sobre a emenda parlamentarista; queixas de João Goulart por ter sido obrigado a chegar ao Brasil pela porta dos fundos, isto é, pelo Sul; de não estar aceitando a emenda parlamentarista, por ver diminuídos seus poderes e estar propenso a só ir para Brasília, com todas as garantias e sem diminuição de poderes nem humilhações; perguntas sobre a posição dos ministros militares, sendo-lhe informado que dois já tinham cedido e que o terceiro também cederia; reclamações de que não se sentia seguro quanto à posse em Brasília, pois os ministros militares deveriam estar lá.

Seus interlocutores faziam todos os esforços para convencê-lo de que não havia diminuição de seus poderes; que esta fórmula foi a única encontrada para permitir que os militares concordassem com sua posse; exortavam João Goulart para que se desmentisse pela rádio Guaíba que havia tomado posse em Porto Alegre e se negado a fazê-lo; que a emenda continha o máximo que conseguiram para concordância dos ministros militares; e, finalmente, garantiam que em futuro breve iria ter seus poderes restabelecidos.

Na realidade não houve concordância dos ministros militares. Houve, sim, por parte de alguns generais, movimento nesse sentido para impedir o que acreditavam que pudesse transformar o episódio da renúncia numa guerra civil.

Enquanto esse movimento se processava, os três ministros militares, coesos, não cessavam de afirmar: “Jango não toma posse, só o fará com nosso sacrifício”.  Essa era a informação sempre obtida pelo general Paulo Krugger, ainda na véspera da aprovação da emenda parlamentarista e a mim transmitida.

Após divulgada a emenda parlamentarista, chega-nos a notícia de que a operação “Pintassilgo”, da FAB, havia fracassado.  Consistiria essa, na missão da derrubada do avião que conduzisse João Goulart para Brasília, quando voasse de Porto Alegre.  Ocorre que um rebate falso sobre o vôo desencadeou a operação, sem êxito.

Estávamos escutando as gravações das conversas de João Goulart com os parlamentares, quando recebeu o tenente-coronel Martinelli comunicação do censor na Agência Nacional, major Auriz, diretamente de Brasília, pelo telefone oficial, ordens para difundir o seguinte:

“Não há nenhum fundamento na notícia de minha posse na presidência da República em Porto Alegre. A minha posse será em Brasília, conforme solicitei ao presidente do Congresso, na próxima segunda-feira, dia 4 às 15 horas” – declarou  Goulart, ontem pelo telefone ao deputado Doutel de Andrade e ao senador Áureo de Moura Andrade, presidente em exercício do Senado. João Goulart outorga ainda ao deputado Doutel de Andrade a divulgação de sua declaração, a fim de terminar com a exploração em torno de sua posição no atual quadro político brasileiro (a) Reinaldo Ribeiro, Secretário de Imprensa (Ordem da Presidência, escrita em frente do general Ernesto Geisel).

Encontrei Golbery bastante contrariado, sem entender o que se passara.  Procurei esclarecer que eu é que estava surpreso. No CONTEL, por todas as informações correntes, o veto à posse de João Goulart era assunto resolvido entre os ministros militares. Retrucou que eu estava mal informado, pois a emenda parlamentarista era a solução. Quanto ao objeto de minha ida ao Conselho – a gravação da conversa – desinteressou-se.

Retornei ao CONTEL, onde gradativamente iam chegando companheiros.  Tomando conhecimento do que se passara, resolvemos – o major Aroldo Soares dos Santos, o coronel Navegantes e eu – levar a gravação ao conhecimento do almirante Silvio Heck, ministro da Marinha.

Por volta das 23 horas chegávamos a seu gabinete, no ministério da Marinha.  Fomos recebidos pelo almirante Acyr Dias de Carvalho Rocha, chefe do gabinete do ministro, que depois de inteirar-se dos acontecimentos, afirmou-nos com convicção: “Não vou acordar o almirante Silvio Heck, pois recolheu-se a pouco, muito cansado. Posso, porém, afirmar, em seu nome, que o compromisso dos ministros militares, vetando a posse de João Goulart, é fato irreversível.  Podem ficar tranqüilos. Não sei o que poderá acontecer: se o avião não chegará, se será impedida a posse, mas o certo é que João Goulart não tomará posse”.

Face essa afirmação, resolvemos levar ao general Adhemar de Queiroz, comandante da Vila Militar, a gravação, esperando lá colher sua posição sobre os acontecimentos.

Chegamos ao amanhecer. Encontramos o General Adhemar de Queiroz muito nervoso e contrariado, pois estavam chegando, presos à Vila Militar, oficiais e sargentos do 3º Batalhão de Carros de Combate que se negaram a embarcar com destino ao estado de São Paulo

Inteirando-se da razão de nossa ida, disse-nos o general Adhemar ter sido informado pelo deputado Raimundo Padilha sobre a emenda parlamentarista, retirando os poderes de João Goulart. Face às informações de que estávamos lhe transmitindo sobre a gravação das conversas de João Goulart com os parlamentares, garantindo que breve teria restituídos seus poderes, seria bom que o deputado Padilha escutasse a gravação.  Fez uma ligação para o deputado, avisou-o da nossa ida. Pessoalmente, o general Adhemar nada podia fazer.  Todo o efetivo da Vila Militar deslocara-se para São Paulo e a tropa já estava na divisa com o estado do Paraná, aguardando as ordens.

De retorno à cidade, já dia claro, resolvemos ir primeiro ao CONTEL. Lá encontramos o general Paulo Krugger, a quem relatei a odisséia desde a noite da véspera.  O general achou melhor telefonar para o general Nestor Souto de Oliveira, comandante do I Exército, relatando-lhe o ocorrido.  Ficou Nestor responsável por contactar o general Dennys e, logo a seguir, do palácio Laguna, residência oficial do ministro, telefonou ao general Krugger, solicitando que levássemos a gravação.  Éramos três: o general Krugger, o coronel Garcez e eu.

Ao entrarmos, para nossa surpresa, deparamo-nos com grande número de oficiais, generais, almirantes e brigadeiros.  Logo percebemos que essa reunião seria para aprovação formal da emenda parlamentarista.

Aproximou-se o almirante Saldanha da Gama que solicitou-nos que fosse ligado o gravador.  Escutou e afastou-se sem comentários.  Pouco depois, aproximou-se o ministro Denys, dizendo: “É, está muito baixo, quase não dá para ouvir”. Inflamados, procurávamos mostrar que a guerra tinha sido ganha no “grito”, sem aquilatar-se o risco em que mergulharíamos.

Nesse ambiente de início de frustação para aqueles que desejavam a aprovação dos presentes para a emenda, intervém o general Orlando Geisel, retornando ao salão. Procura o general Krugger e solicita nossa retirada.  Fomos avisados que a reunião teria, a seguir, caráter sigiloso.

Encontramo-nos com o coronel Gustavo Borges, diretor dos Correios e Telégrafos. Demos-lhe a notícia. Ficou estupefato com o que ouvia.  Ainda não tinha essa certeza.  Iria comunicar-se  com o governador Carlos Lacerda.

Em 23 de janeiro de 1963, teve o presidente João Goulart devolvidos seus poderes, pois o Congresso aprovava a emenda constitucional nº 6, revogando a de nº 4, que instituíra o sistema parlamentar do governo; retornando o regime presidencialista, sob a égide da Constituição de 1946, uma vez que no plebiscito nacional realizado naquele mês, 80% dos eleitores optaram pelo retorno ao presidencialismo.

No entanto, não podia imaginar que sua duração como presidente da República findaria com sua deposição em 1º de abril de 1964. Uma lástima insuperável para o país.