Resgatando as experiências e refletindo

5 de agosto de 2003

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Até os primeiros anos deste século, ao entardecer. as ruas do Rio de Janeiro eram percorridas pelos acendedores dos lampiões que iluminaram as vias públicas ate 1933. A partir de 1903, enquanto, nos Estados unidos começava a fabricação das motocicletas Harley-Davidson e o norte-americano já viajava de automóvel de São Francisco para Nova York, a iluminação publica e as residências cariocas apenas começavam a ser eletrificadas.

Daquele tempo até aqui, foram sendo incorporados aos nossos hábitos e costumes os velhos rádios, hoje transformados em potentes e refinados receptores; os antigos toca discos, já substituídos pelos CDs lidos pelo laser, que, por suo vez já perderam espaço para as transmissões “internéticas”; as enormes e pesadíssimas máquinas que faziam as quatro operações aritméticas nem mais são lembradas pelas pequeninas calculadoras cientificas; e do nosso dia-a-dia fazem parte 2 televisão, a geladeira, as máquinas que lavam roupas e louças, as geringonças que trituram, torram, espremem, cortam e misturam, para não falar dos computadores pessoais. Tudo movido aquela força que corre pelos fios: a eletricidade.

Não foi diferente a evolução da disponibilização da água potável nos nossos ambientes de trabalho e moradia. Da água colhida nas fontes longínquas até o acesso cômodo à ducha reconfortante, nosso banho tornou-se mais agradável e prazeroso.

No caminho das comodidades, nossos meios de transporte foram o cavalo, as charretes, os bondes puxados por burros, que a partir de 1892 passaram a ter tração elétrica, os trens, carros, lotações, ônibus e o metro. Registre-se que em 1854, quando já havia 35000 quilômetros de linhas ferroviárias nos Estados Unidos, no Brasil eram inaugurados os primeiros 600 pontos de luz a gás é a nossa primeira ferrovia ligando Porto de Estrela (Magé) a Raiz da Serra (Petrópolis), percorrida pela intrépida “Baronesa”. O transporte ferroviário urbano e suburbano fluminense foi implantado em 1868, pela Cia. Ferro-Carril do Jardim Botânico.

Eis aí uma súmula bem limitada e ligeira da nossa interação com os chamados serviço públicos essenciais: energia, água e transporte.

Atualmente, um dia nosso poderia ser assim descrito: após uma noite quente de vedo, o nosso sono bem embalado pelo refrigério do ventilador ou do ar condicionado e interrompido pelo som do radio despertador que substituiu canto do galo. Colocamos. água e pó na cafeteira elétrica, pão na torradeira e retiramos da geladeira a manteiga e o queijo. Enquanto o café é preparado e o pão aquecido, fazemos a higiene matinal com a água farta que corre da torneira e, antes do primeiro banho do dia, fazemos a primeira refeição. Em seguida tomamos a ducha que acaba de nos acordar e vestimos as roupas, previamente alisadas e passadas com o ferro elétrico. Então, como fazem 86% das pessoas embarcamos num ônibus, de volta a casa, e em lá chegando mais uma vez desfrutamos dos prazeres e comodidades que nos permitem a água e a energia elétrica disponível.

A banalização oculta o valor das coisas. Imaginemos o mesmo dia acima descrito, mas sem água. Talvez nos arrependêssemos de acordar. Ou imagine que não houvesse energia elétrica. Talvez, se conseguimos dormir com tanto calor, tenhamos perdido a hora pelo silêncio do radio despertador e o prolongamento do sono até seria bem tolerado como forma de nos poupar da falta das demais tarefas e comodidades da eletricidade.

Na verdade, não temos consciência da importância do fornecimento de água e energia. Já fazem parte do nosso cotidiano. Estão banalizados. Mas se faltarem… Bem, se faltarem teremos que reaprender a viver sem eles e, durante algum tempo, a nossa vida será muito difícil.

Há também a hipótese de desfrutarmos do fornecimento de água e de energia, mas falta-nos o ônibus. Ou seja, faltar o transporte para 86% das pessoas. Agora imagine o tamanho dos engarrafamentos. Quão superlotados estarão trens e metrô. Imagine o tempo que gastaremos para chegar ao trabalho, ao médico ou ao mercado. Imagine em que condições seremos transportados. Como o fornecimento de água e eletricidade, só a falta nos faria valorizar o papel desempenhado pelos ônibus no sistema de trans porte público.

O transporte publico é um dos fatores que mais influem no desenvolvimento urbano. Outros serviços públicos e fatores diversos influem na expansão urbana, mas nenhum como o transporte de passageiros.

Prova disso é que a ocupação dos espaços urbanos sempre se deu ao longo dos itinerários dos meios de trans porte de passageiros. Primeiro dos trilhos dos bondes, depois dos trilhos do trem e finalmente ao longo das linhas de ônibus.

Por ação e graça (ou seria melhor omissão e desgraça) dos administradores públicos, os caminhos de trilhos pararam de crescer e os veículos que sobre eles circulavam se deterioraram.

A demanda por transporte, todavia, não parou de aumentar. O transporte rodoviário, que inicialmente foi prestado por limusines e pequenos lotações, e que “alimentava” e “complementava” o transporte ferroviário, tendo em vista a deterioração e estagnação das modalidades sobre trilhos passou a responder pela demanda reprimida e promoveu a expansão da ocupação do solo, ampliando as áreas urbanas. Basta constatar no mapa as áreas do estado não cortadas pelos trilhos, mas densamente povoadas, e apurar a época da ocupação para reconhecer o papel preponderante do transporte rodoviário no desenvolvimento das cidades.

As atuais empresas de ônibus, pequenas, medias e grandes, todas tem origem naqueles particulares que operavam limusines ou pequenos lotações. São, portanto, resultado do trabalho. E se hoje ocupam o espaço que ocupam, isso se deve a incompetente administração pública do transporte ferroviário (que não atendeu ao crescimento da demanda reprimida por transporte de passageiros) e ao desprendimento daqueles pequenos investidores de então.

Assim como cresceram as empresas de ônibus, também foi se estruturando um sistema de transporte. Mais recentemente, as empresas firmaram contratos escritos e com prazo certo, substituindo os antigos termos de permissão por prazo indeterminado, sob clausula “enquanto bem servir”. Foi a forma encontrada pelos governantes para transitar para futura substituição das operadoras sem anus das indenizações que decorreriam da imediata interrupção das delegações.

Com o contrato formal e por prazo determinado, enfim, os empresários poderiam empregar todo o esforço e concentração na operação e melhoria dos serviços públicos que operam, com o fim da “espada de Dâmocles” que lhes ameaçava a cabeça a cada capricho não atendido.

Ledo engano. O sistema está sendo degradado pela indiscriminada expansão do chamado “transporte informal” (eufemismo para atividade ilegal), cuja concorrência predatória desequilibra a economia das empresas legalizadas, sonega impostos, subemprega e expõe ao risco as pessoas.

E aí está um ponto para receber o foco das instituições republicanas: o transporte ilegal, que não paga impostos (nem multas de transito), que não oferece empregos formais, que utiliza veículos sem as condições de segurança exigidas pela legislação ou com placas “clonadas”, que o noticiário da imprensa imputa ligações com o crime organizado, com sucessivos homicídios na luta pelo controle da atividade ilegal, com reprovável envolvimento de alguns policiais e que esta comprometendo 0 funcionamento do sistema de transporte, serviço público essencial.

Mas, se no que concerne ao transporte ilegal, ate aqui, só houve omissão, o mesmo não se pode dizer do enfrentamento a questão das gratuidades no transporte pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

Registre-se que, ao contrário do que foi equivocadamente noticiado, o Judiciário não decidiu “contra as gratuidades”. Em momenta algum o Tribunal declarou que estudantes, idosos ou portadores de deficiência ou doença crônica não fossem credores do beneficio. Pelo contrário, todas as manifestações foram no sentido do reconhecimento da gratuidade no transporte como indispensável ação de assistência social e de garantia ao ensino fundamental.

O que efetivamente decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro é que a assistência social e a garantia ao ensino fundamental são deveres dos poderes públicos. O que, alias, em relação aos estudantes, acaba de ser explicitado pela Lei Federal nº 10 709/2003, publicada em 01/08/2003, que expressamente atribui ao Estado “assumir o transporte escolar dos alunos da rede estadual” e aos municípios “assumir o transporte escolar dos alunos da rede municipal”.

O tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, de forma exemplar e agindo a altura da expectativa da sociedade, sinalizou claramente que não aprova o discurso fácil de quem não respeita limites na busca do voto do eleitor desavisado. Não se curvando as pressões, o Tribunal afirmou a independência que também decorre da remuneração digna para os seus membros.”