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Responsabilidade civil por danos causados por remédios

5 de janeiro de 2001

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Remédios  Remédios – benfeitores ou visoes?

Sergio Cavalieri Filho,Desembargador do TJ/RJ, Professor da Universidade Estácio de Sá, Titular do Curso de Graduação e Do Mestrado       em Direito, Diretor da Escola da Magistratura do RJ.

Os remédios são, a um só tempo, santos e demônios, heróis e vilões, benfeitores e malfeitores; tudo depende de como são produzidos, comercializados e utilizados. Se, por um lado, devemos aos remédios a melhoria da saúde e o expressivo aumento da sobrevida da população – dificilmente vamos encontrar uma pessoa idosa que não faça uso diário de pelo menos um remédio -, por outro lado, devemos também a eles algumas lamentáveis tragédias. Ainda recentemente a imprensa noticiou os graves danos causados por medicamentos falsificados lançados no mercado, ou sem as qualidades que deveriam ter. Em lugar de curar, acabaram levando à morte os usuários. Lamentavelmente, não se trata de problema novo, mas, pelo contrario, tão antigo quanta a própria história dos medicamentos. Na realidade, foram os danos causados por certos medicamentos que despertaram a consciência jurídica para a necessidade de uma disciplina mais eficiente em defesa do consumidor.

Casos Exemplificativos

Lembro, a titulo de exemplo, 0 caso da TALIDOMIDA Contergam, um sedativo grandemente utilizado entre 1958 e 1962, principal mente por gestantes. Esse medicamento foi retirado do mercado porque provocou deformidade em milhares de nascituros. Nos Estados Unidos, entre 1960 e 1962, um outro medicamento anticolesterol chamado MER-29, provocou graves defeitos visuais em milhares de pessoas – mais de cinco mil -, inclusive cegueira, e, por isso, foi também retirado do mercado. Todos nos lembramos da vacina Salk, contra a poliomielite. Por um defeito de concepção, essa vacina acabou provocando a doença em centenas de crianças na Califórnia. Na Franga, em 1972, 0 Talco MORHANGE causou intoxicação em centenas de crianças,  levando algumas delas à morte, também em decorrência de um defeito de concepção. Um dos primeiros casos julgados pelo Tribunal Federal Alemão relacionado com medicamento teve lugar no ano 1968, caso esse que acabou se tornando conhecido porque balizou a jurisprudência alemã. O dono de uma determinada granja aplicou certa vacina em suas aves e esta acabou causando a morte de mais de 4000 frangos. Pela primeira vez a justiça alemã admitiu a ação de indenização diretamente contra o fabricante, contra o fornecedor, e não contra o vendedor. Vale dizer, abstraiu a relação contratual, admitindo ainda a inversão do ônus da prova em favor do consumidor.

O Desenvolvimento Tecnológico, Cientifico e a Revolução Industrial

A potencialidade ofensiva dos remédios foi elevada quase ao infinito pelo desenvolvimento tecnológico, científico e pela revolução industrial, embora possa isso parecer um paradoxo. É que tais fatores aumentaram enormemente a capacidade produtiva do homem, transformando aquela produção, outrora artesanal, mecânica, manual, circunscrita ao âmbito familiar ou a um pequeno ciclo de pessoas, transformando essa produção, repito, em produção de massa, em grande quantidade. E é justamente ai que mora o perigo. Sim, porque um único erro de concepção, um vício de fórmula, um defeito de produção, pode vir a causar danos a milhares de consumidores, como efetivamente ocorreu nos casos a que já nos referimos. São os riscos do desenvolvimento, riscos em massa, riscos coletivos.

Antes do Código do Consumidor não havia uma legislação eficiente para proteger o consumidor contra esses riscos. Os riscos do consumo corriam por conta do consumidor, de sorte que o fornecedor só respondia no caso de dolo ou culpa, cuja prova era praticamente impossível. “A culpa, como assinala PIZZARO, apresentava-se como verdadeira couraça que tinha a singular virtude de proteger a quem havia causado um dana inculpavelmente, liberando-o de toda obrigação de responder, deixando a vitima abandonada a sua própria sorte”. Falava-se na aventura do consumo, porque consumir, em muitos casos, era realmente uma aventura. O fornecedor limitava-se a fazer a chamada oferta inocente e o consumidor, se quisesse, que assumisse os seus riscos, muito embora não tivesse outra alternativa.

A Disciplina do Código do Consumidor e o seu Campo de Incidência

O Código do Consumidor deu uma guinada de 180 graus na disciplina jurídica então existente, transferindo os riscos do consumo do consumidor para o fornecedor. Estabeleceu responsabilidade objetiva para todos os casos de acidentes de consumo, quer decorrentes do fato do produto, quer do fato do serviço. Tão grande foi a inovação introduzida pelo CDC em nosso direito obrigacional, principalmente na área da responsabilidade civil, que podemos dizer ter o Código feito uma verdadeira revolução, para a qual muitos profissionais do direito ainda não atentaram. Hoje, a responsabilidade civil pode ser dividida em duas áreas: a responsabilidade tradicional – aquela que estudamos na faculdade, fundada no artigo 159 do Código Civil e outras leis –, e a responsabilidade nas relações de consumo, fundada no Código do Consumidor. E mais, tendo esse Código, como vimos, estabelecido responsabilidade objetiva para o fornecedor, o campo da responsabilidade objetiva, outrora excepcional, restrita aos casos previstos em lei, tornou-se ainda mais amplo que o da responsabilidade subjetiva. Basta lembrar que somos cento e sessenta milhões de consumidores, gerando diariamente outros tantos milhões de relações de consumo. Hoje o juiz, ou qualquer outro profissional do direito, antes de enfrentar qualquer questão tem que indagar: estou ou não em face de uma relação de consumo? Sendo positiva a resposta, terá que aplicar a disciplina do Código do Consumidor.

Responsabilidade do Fornecedor de Medicamentos

A responsabilidade do fornecedor de medicamentos enquadra-se na responsabilidade pelo fato do produto, prevista no artigo 12 do CDC, cujo texto diz o seguinte: “o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de seus produtos … ” Fato do produto e sinônimo de acidente de consumo; é o acontecimento externo, ocorrido no mundo físico, que causa dano material ou moral ao consumidor, mas que decorre de um defeito do produto. Essa noção de fato do produto enquadra-se, com justeza, nos casos exemplificativos relatados no item II. O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitima e razoavelmente se espera (art. 12 § 1 Q). Esse defeito pode ser de concepção – que ocorre quando o medicamento esta sendo concebido -, de produção – verificado no momento da fabricação – e, ainda de informação, que decorre da falta de esclarecimentos a respeito das qualidades, riscos e modo de utilizar o produto.

O fato gerador da responsabilidade do fornecedor de medicamentos, como se vê do próprio texto legal, não é mais a conduta culposa, nem ainda a relação jurídica contratual, mas sim o defeito do produto. A lei, vale ressaltar, criou para o fornecedor um dever de segurança – o dever de não lançar no mercado produto com defeito -, de sorte que, se o lançar e ocorrer o acidente de consumo, por ele responde independentemente de culpa. Trata-se, em última instância, de uma garantia de idoneidade, um dever especial de segurança do produto legitimamente esperada.

Veja-se a respeito o artigo 10º do CDC que tem a seguinte redação: “O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar auto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.” No mesmo sentido, o artigo 24: “A garantia legal de adequação do produto ou serviço independe de termo expresso, vedada a exoneração contratual do fornecedor”.

De se ressaltar, ainda, que essa garantia de idoneidade ou de segurança do produto tem natureza ambulatorial, vale dizer, não está circunscrita a relação contratual de compra e venda, mas, pelo contrário, acompanha o produto por onde quer que circule durante toda a sua existência útil. Responde o fornecedor pelo acidente de consumo, desde que decorrente de um defeito do produto, ainda que a vítima – quem sofreu o dano – não tenha sido aquele que o adquiriu. Foi para alcançar esse objetivo que o artigo 17 do CDC equiparou ao consumidor todas as vítimas de um acidente de consumo.

Em conclusão, a responsabilidade do fornecedor decorre da violação do dever de não colocar no mercado produtos sem a segurança legitimamente esperada, cujos defeitos acarretam riscos a integridade física e patrimonial dos consumidores. Ocorrido o acidente de consumo, o fornecedor terá que indenizar a vítima independentemente de culpa, ainda que não exista entre ambos qualquer relação contratual.

Na França fala-se em guardião ou garante da estrutura do produto, o que faz com que o fabricante continue responsável pelos danos causados pelo medicamento mesmo depois de colocado em circulação, e ainda que o produto tenha sido transferido a terceiro. O fornecedor é responsável pelo acidente de consumo porque permanece como garante da estrutura do produto.

O Risco Inerente e o Risco Adquirido

O argumento mais utilizado por aqueles que procuram afastar os fornecedores de medicamentos da disciplina do Código do Consumidor é o de que seria impossível fabricar medicamentos sem riscos. Há determinados perigos, argumentam, que são inevitáveis, de sorte que se o fabricante de medicamentos tiver que responder por eles a responsabilidade objetiva tornar-se-á insuportável. E a seguir, indagam: como produzir medicamentos imune de contra-indicação sem tornar esse medicamento imprestável?

Observo, em primeiro lugar, que o CDC não cometeu a leviandade de exigir a produção de medicamentos sem qualquer risco. Já ficou dito que o que ele exige e apenas a segurança legitimamente esperável, e não uma segurança absoluta. Nesse sentido, o artigo 8º do CDC, que diz: “Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos a saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito”. Aqui tem perfeita aplicação a teoria do risco inerente e do risco adquirido, primorosamente ex posta pelo insigne Antônio Hermen de Vasconcelos e Benjamin.

Entende-se por risco inerente ou periculosidade latente aquele que faz parte da própria essência ou natureza do produto, de modo a não ser possível fabricá-lo sem essas características. E o perigo intrínseco, atado à própria qualidade da coisa, sem o qual o produto se torna inócuo, imprestável. É o caso de uma arma mortífera, de uma faca afiada de churrasco, um veiculo potente, agrotóxicos, medicamentos com contra-indicação etc. Embora se mostrem capazes de causar acidentes, a periculosidade desses produtos é normal porque conhecida e previsível, de modo a não surpreender o consumidor em sua legitima expectativa de segurança. Em síntese, normalidade e previsibilidade são as características do risco inerente, pelo qual em principio não responde o fornecedor por não ser defeituoso o produto nessas condições. Pode o fornecedor, eventualmente, responder pelo vicio de informação se não prestar ao consumidor os necessários esclarecimentos sobre os riscos do medicamento, modo de utilizá-lo, contra-indicações etc. É o que dispõe o artigo 9º do CDC, conforme segue: “O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira extensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto”.

Fala-se em risco adquirido quando o produto, normalmente inofensivo, torna-se perigoso em razão de um defeito. O consumidor é surpreendido em sua legitima expectativa de segurança porque, como já afirmado, o produto não é perigoso, não apresenta riscos superiores aos legitimamente esperados, só se tornando perigoso em razão do defeito. Imprevisibilidade e anormalidade são, pois, as características do risco adquirido.

Pois bem, a regra é a de que os danos decorrentes da periculosidade inerente não dão ensejo ao dever de indenizar, salvo se houver defeito de informação. Responde o fornecedor de medicamentos, todavia, pelos danos causados pela periculosidade adquirida, porque só ai haverá defeito do produto.

“Em matéria de proteção da saúde e segurança dos consumidores, vige a noção geral da expectativa legitima. Isto é, a idéia de que os produtos e serviços colocados no mercado devem atender as expectativas de segurança que deles legitimamente se espera. As expectativas são legitimas quando, confrontadas com o estágio técnico e as condições econômicas da época, mostram-se plausíveis, justificadas e reais. É basicamente o desvio deste parâmetro que transforma a periculosidade inerente de um produto ou serviço em periculosidade adquirida” (Antonio Hermen de Vasconcellos e Benjamin. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, Saraiva, 1991, p. 48).

A Posição da Justiça

Embora lentamente, os Juízes vão aos poucos se liberando do artigo 159 do Código Civil, tão arraigado em nossa consciência jurídica, e começam a enquadrar os fornecedores de remédios e outros produtos médicos na disciplina do Código do Consumidor. Na Apelação Cível nº 6.200/94, da qual foi relator o Des. Marcus Faver, a Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro enquadrou no Código do Consumidor um caso de fornecimento de sangue contaminado. Embora tratado como fato do serviço, porque relacionado com hemodiálise realizada por determinado hospital, o caso tem perfeita pertinência a espécie em exame, pois a disciplina do Código do Consumidor e a mesma tanto para o fato do produto como para o fato do serviço – espécies do gênero acidente de consumo (art. 12 e 14).

Feitas estas considerações, vejamos o que decidiu aquela Corte:

RESPONSABILIDADE CIVIL HOSPITALAR. Paciente Com Insuficiência Renal Grave. Hemodiálise. Contaminação Por Vírus da Hepatite B. Nexo de Causalidade Demonstrado.

Responsabilidade do Hospital. A contaminação ou infecção em serviços de hemodiálise caracteriza-se como falha do serviço e leva a indenização, independentemente de culpa. Aplicação, na hipótese, do art. 14 caput do Código de Defesa do Consumidor.

No corpo do acórdão, o seu eminente relator fez as seguintes judiciosas considerações: “Em realidade, estamos diante da responsabilidade pela prestação de um serviço defeituoso, onde o fornecedor do serviço, no caso o hospital, responde pela reparação do dano, independentemente da existência de culpa, a luz da regra estabelecida no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, já vigente a época dos fatos. “Assim a responsabilidade do hospital se aperfeiçoa, sem questionamento de culpa, mediante o concurso de três pressupostos: a) defeito do serviço; b) evento danoso; c) relação de causalidade.

Ora, no caso dos autos, tais pressupostos ficaram, sobejamente, demonstrados. Pelo laudo de fls 89/94, comprova-se que o autor ingressou no hospital sem o vírus da hepatite B, 0 qual, segundo estudos médicos, só se transmite por transfusão ou relações sexuais. Em razão dos serviços de hemodiálise, ali realizados, viu-se contaminado, ainda que pudesse, em tese, a apelante ter tomado os cuidados correspondentes a realização dos serviços. A legislação aplicável a espécie acolheu para hipótese os critérios da responsabilidade objetiva, pois desconsiderou, no plano probatório, quaisquer investigação relacionadas a conduta do prestador dos serviços que e, assim, irrelevante para a solução da controvérsia.

Como esclarece Antônio Hermen de Vasconcellos e Benjamin, Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor, Saraiva, 1991, pag. 80, quando se tratar de serviços médicos prestados por hospital, como fornecedor de serviços (art. 14 caput), a apuração da responsabilidade independe da existência de culpa. Na verdade, o hospital só se exoneraria da responsabilidade se comprovasse: não ter realizado os serviços; culpa exclusiva do autor ou de terceiro ou ocorrência de caso fortuito ou forca maior. Despiciendas, pois, quaisquer considerações ou investigações probatória sobre a possível conduta negligente, imprudente ou imperita da sociedade apelante”.

Em caso recente, envolvendo um lote de pílulas falsas de determinado anticoncepcional, a Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo tem concedido tutela antecipada com base no Código do Consumidor para as mulheres que ficaram grávidas no período em que tomaram o referido anticoncepcional. O Juízo da 42§ Vara Cível do Rio de Janeiro concedeu tutela antecipada a uma senhora, mãe de duas gêmeas que nasceram prematuramente e com problemas de saúde, impondo a fornecedora do medicamento o dever de pagar as despesas médico-hospitalares num período de 12 meses.

No mesmo sentido decidiu o Juízo da 18§ Vara Cível do referido Estado em relação a uma outra vítima, cujo filho morreu ainda no ventre da mãe. A empresa ré foi obrigada a pagar todas as despesas com a cirurgia, hospitalização e o sepultamento do natimorto.

Tivessem as vítimas que provar a culpa do fornecedor de medicamentos, sem dúvida jamais lhes teria sido deferida qualquer antecipação de tutela. Somente em face da responsabilidade objetiva, na qual a vítima nada tem que provar além do dana e a relação de causalidade, tem o juiz respaldo para antecipar, em parte ou totalmente, um provimento de mérito.

Exclusão da Responsabilidade do Fornecedor de Medicamentos

Convém ressaltar que mesmo em relação ao nexo causal não se exige da vítima uma prova robusta e definitiva, eis que essa prova e praticamente impossível nos casos de lesões causadas por medicamentos e produtos químicos. Bastará, por isso, a chamada prova de primeira aparência, prova de verossimilhança, decorrente das regras da experiência comum, que permita um mero juízo de probabilidade, como, por exemplo, a repetição de determinado evento em relação a um certo produto. Por isso, o Código do Consumidor presume o defeito do produto, só permitindo ao fornecedor afastar o seu dever de indenizar se provar, ônus seu, que o defeito não existe (art. 12, § 3º, II). Se cabe ao fornecedor provar que o defeito não existe, então ele é presumido até prova em contrario.

Correta a posição do Código porque se para a vitima e praticamente impossível produzir prova técnica ou científica do defeito, para o fornecedor do medicamento isso e perfeitamente possível, ou pelo menos muito mais fácil. Ele que fabricou o medicamento, ele que tem o completo domínio do processo produtivo, tem também condições de provar que o seu produto não tem defeito. O que não se pode e transferir esse ônus para o consumidor.

Provada a inexistência do defeito, afasta-se o dever de indenizar do fornecedor pela ausência de relação de causalidade entre o acidente de consumo e o produto defeituoso. O fornecedor não poderá ser responsabilizado simplesmente porque não terá violado aquele dever de segurança legitimamente esperada, ou de garantia de idoneidade do produto. Pode ainda o fornecedor excluir a sua responsabilidade provando não ter lançado o medicamento no mercado (art. 12, § 3º, I), como, por exemplo, medicamentos falsificados, sem as qualidades devidas, ou ainda em fase de teste, colocados no mercado por terceiros mediante meios criminosos. O fato de estar o produto em circulação, todavia, gera a presunção de ter sido lançado no mercado pelo seu fabricante, cabendo-lhe 0 ônus de elidir essa presunção. É o caso daquele lote de anticoncepcional de fantasia, a que ha pouco me referi, que nao obstante destinado a mero teste de uma nova embalagem, acabou sendo vendido como medicamento normal.

O fato exclusivo da vitima ou de terceiro exclui tambem a responsabilidade do fornecedor por inexistir, nesses casos, defeito do produto. Assim, se a vitima, apesar de devidamente informada, faz usa incorreto do medicamento, em doses inadequadas, ou se a enfermeira, culposa ou intencionalmente, aplica medicamento errado no paciente – ou em dose excessivas – causando-Ihe a morte, nao havera nenhuma responsabilidade do fornecedor do medicamento. a fato exclusivo da vitima ou de terceiro excluem 0 pr6prio nexo causal.

Os Riscos do Desenvolvimento

Lembro, para encerrar, que a questao dos riscos do desenvolvimento, muito constante no mundo dos medicamentos novos, ainda nao esta pacificada. Entende-se por risco do desenvolvimento 0 defeito impossivei de ser conhecido e evitado no momenta em que 0 produto foi colocado em circula~ao, em razao do estagio da ciencia e da tecnologia. E aquele defeito que nao pode ser cientificamente conhecido no momenta do lan~amento do produto no mercado, vindo a ser descoberto somente ap6s um periodo de usa do produto, como ocorre com certos medicamentos novos – vacinas contra 0 cancer, drogas contra AIDS, pilulas para melhorar 0 desempenho sexual, etc.

Quem deve suportar os riscos do desenvolvimento? a fornecedor ou 0 consumidor? a Direito Portugues, 0 Italiano e 0 Alemao optaram por impor 0 sacriffcio dos riscos do desenvolvimento sobre os ombros do consumidor. a nosso C6digo do Consumidor, todavia, nao 0 inciuiu entre as causas de exclusao de responsabilidade do fornecedor previstas no art. 12, § 3Q, razao pela qual os melhores autores, entre os quais Antonio Hermen de Vasconcellos e Benjamin, consideram 0 risco do desenvolvimento uma especie de genero defeito de concep~ao, e, como tal, incluido no risco do fornecedor. a fornecedor tem de estar sempre atualizado, acompanhando as experiencias cientfficas e tecnicas mundiais, e 0 mais avanQado estado da ciencia.

Sustenta-se que fazer 0 fornecedor responder pelos riscos do desenvolvimento seria inviabilizar o progresso cientffico-tecnoI6gico, frustrando as pesquisas e 0 lan~amento de novos medicamentos. Mas, por outro lado, seria extremamente injusto financiar 0 progresso as custas do consumidor individual. Por que s6 ele teria que suportar a cota social de sacriffcios do desenvolvimento? Se os seus beneffcios sao para todos, os riscos devem ser socializados, e isso se consegue mediante os mecanismos de pre~os e os seguros sociais, atraves dos quais todos temos que pagar 0 pre~o do progresso, e nao somente a vitima.

Convem, todavia, nao confundir 0 risco do desenvolvimento com a hip6tese prevista no artigo 12, § 1 Q, inc. III do CDC – a epoca em que 0 produto foi colocado em circula~ao. No primeiro caso, 0 produto e objetivamente defeituoso no momenta de sua coloca~ao no mercado, sem que, no entanto, o estado de desenvolvimento da ciencia e da tecnica permitisse sabe-Io. No segundo, 0 produto e perfeito por corresponder as legitimas expectativas de seguran~a na sua epoca, apenas superado por produto mais novo, em razao de aperfei~oamentos cientfficos e tecnol6gicos introduzidos pelo fornecedor.