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Roubo contra passageiro embarcado – Responsabilidade Civil

31 de agosto de 2008

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Introdução
Aqui pretender-se-á abordar a questão da respon­sabili­dade civil das concessionárias pelos danos decorrentes de roubos praticados contra os passageiros, no interior dos veículos de transporte coletivo.
Fique, desde logo, firmado que o foco do presente trabalho não é o debate acerca de ser objetiva ou subjetiva a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de Direito Privado que operam o transporte público de passageiros por concessão, permissão ou autorização. Até porque, pelos danos sofridos por passageiros durante o transporte, a divergência, como será visto adiante, é restrita.
Apenas para introduzir a questão focada, nos permitimos alinhar alguns conceitos que, embora não se exclua a possibilidade de virem a ser objeto de outros trabalhos,  repita-se, não são protagonistas na proposta deste artigo.
Doutrina e jurisprudência vêm discutindo a responsa-bilidade civil das sociedades empresárias privadas, concessionárias do serviço público de transporte coletivo de passageiros.
A Constituição da República dispôs:

“Art. 37, § 6º. As pessoas jurídicas de Direito Público e as de Direito Privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

A partir do texto acima transcrito, que define como objetiva a responsabilidade civil das operadoras privadas dos serviços públicos, dividiram-se os intérpretes: alguns, entendendo estar a responsabilidade objetiva referida pelo § 6º, do artigo 37, restringida aos passageiros transportados; outros, entendendo que a responsabilidade objetiva, de que trata o referido parágrafo, se aplica a todo e qualquer dano causado a quem quer que seja, passageiro transportado ou qualquer outra pessoa.
A primeira interpretação decorre, sobretudo, por considerar que o texto constitucional precedeu o Código de Defesa do Consumidor e, assim, antecipando-se à legislação especializada consumerista, teve por objetivo ampliar a proteção do consumidor do serviço público prestado pelas concessionárias. E tal posição encontraria espeque nos registros dos debates na constituinte. Nesse sentido, decisão do STF, assim:

“A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de Direito Privado prestadoras de serviço público é objetiva relativamente aos usuários do serviço, não se estendendo a pessoas outras que não ostentem a condição de usuário. Exegese do art. 37, § 6º, da CF”. (RE 262.651, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ 06/05/05)

Portanto, segundo a interpretação que restringe a responsabilidade objetiva das concessionárias às relações de consumo, é subjetiva a responsabilidade civil pelos danos causados por seus agentes e que não decorram da relação de consumo.
Ainda poderia ser acrescido em favor de tal entendimento, que às pessoas jurídicas de Direito Privado, ao contrário da União, Estados e Municípios, não é concedido idêntico tratamento para liquidação das indenizações, como, v.g. o pagamento mediante precatório, sendo este limitado à força da arrecadação tributária. Portanto, não haveria simetria entre as conseqüências da responsabilidade objetiva dos entes públicos e das concessionárias, desautorizando a identidade de tratamento.
A interpretação que estende a responsabilidade civil objeti­va
aos não passageiros se firma, entre outros fundamentos doutrinários, na impossibilidade de restringir o sentido da expressão “terceiros”, do § 6º, do artigo 37, da CF.
Quanto aos passageiros, a responsabilidade civil objetiva das concessionárias prestadoras de serviços públicos está inscrita no artigo 14, combinado com o artigo 22, ambos da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor, que assim dispõem:

“Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.”
“Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.”

Como já registrado, não cabe no fôlego deste trabalho o aprofundamento de questões correlatas que emergem da abordagem mais ampla do tema responsabilidade civil do transportador. Assim, por exemplo, também não se abordará a questão da definição de serviço pelo § 2º, do artigo 3º, do Código do Consumidor1 (que, exigindo a remuneração, excluiria os beneficiários de gratuidades).
Portanto, a partir do entendimento de que, em tese, é objetiva a responsabilidade civil das concessionárias privadas de serviços públicos por danos causados aos passageiros embarcados (pelo menos, os pagantes), seja qual for o fundamento legal para tal entendimento, abordar-se-á a responsabilidade daquelas concessionárias em face de danos causados por roubos praticados contra passageiros no interior dos veículos empregados no transporte público coletivo.

Os elementos da responsabilidade objetiva

“… por mais louvável que seja a ampliação do dever de reparar, protegendo-se as vítimas de uma sociedade cada vez mais sujeita a riscos (…) – não se pode desnaturar a finalidade e os elementos da responsabilidade civil. O dever de reparar não há de ser admitido sem a presença dos elementos da responsabilidade civil.
Tão grave quanto a ausência de reparação por um dano injusto mostra-se a imputação do dever de reparar sem a configuração dos seus elementos essenciais, fazendo-se do agente uma nova vítima.”2

O fato, a autoria e o nexo de causalidade, como unanime­­mente consagram a doutrina e a jurisprudência, são elemen­tos essenciais da responsabilidade civil. E, ao contrário da responsabilidade subjetiva, para afirmar a objetiva, prescinde-se da demonstração da culpa. Mas, é imperioso que estejam configurados os demais elementos essenciais, sob pena de afirmação da responsabilidade sem causa ou da responsabilidade integral, modalidades não admitidas pelo Direito pátrio.
É assente na doutrina que são causas de rompimento do nexo de causalidade o caso fortuito ou força maior, a culpa exclusiva da vítima e o fato de terceiro, sendo as duas últimas expressamente contempladas pelo Código de Defesa do Consumidor3.
E aqui se insere a questão dos roubos praticados contra passageiros, no interior dos coletivos que operam o transporte público de passageiros.

O rompimento do nexo de casualidade
Há quem entenda que a lamentável repetição de roubos tornou a hipótese como previsível e, assim sendo, incapaz de romper o nexo de causalidade que afirma a responsabilidade da concessionária prestadora do serviço público. Tratar-se-ia de risco do negócio.
Com todas as vênias às respeitáveis opiniões e decisões nesse sentido, não parece ser o entendimento que melhor se conforma ao Direito posto. Ademais, tal entendimento poderia dar margem à extrapolação de que a doutrina e a jurisprudência se renderiam à banalização do crime4.
E mesmo o intérprete que se renda à banalização do crime, por coerência, já terá admitido que tratar-se-iam de riscos “… normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição”5, sendo, obviamente, dispensável que o prestador do serviço informe ao consumidor acerca do referido risco. E que não poderia ser caracterizado como risco exclusivamente do negócio, já que mais amplo: risco de todos.
Na verdade, como define a legislação consumerista, “o fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor”6 e, efetivamente, a ação dos meliantes não pode ser qualificada como ‘vício de qualidade’ do serviço.
O risco à saúde ou à segurança do consumidor, a que o fornecedor do serviço não pode expor o passageiro transportado, é aquele inerente à atividade de transportar propriamente dita, decorrente de ação ou omissão de preposto ou proveniente da utilização do veículo e seus equipamentos, ainda que fortuito (seria o chamado fortuito interno). Não há fundamento legal para que se exija mais do fornecedor de serviço.
No caso específico de roubo a passageiros trans­por­tados, é estreme de dúvida que são ocorrências “(…) imprevisíveis, inevitáveis, irresistíveis e indefensáveis”7 (tanto que as autoridades públicas não conseguem evitar!), que trata-se de questão afeta à segurança pública. E, como tal, o monopólio da ação preventiva e repressora compete ao Poder Público8.
Aliás, demonstrando a incompetência (não fora a impotência) da iniciativa privada para prover a segurança pública, transcreve-se em seguida manifestações recentes de autoridades públicas fluminenses9:

“Não podemos consentir que a segurança particular substitua a segurança pública.”
Ten.Cel. PM Ricardo Pacheco – Comandante do 12º BPM
“Se meus homens virem um segurança em alguma rua, ele será preso em flagrante por usurpação de função pública. Eles podem até responder por extorsão.”

Dr. Milton Olivier, delegado titular da 81ª Delegacia de Polícia

Evidentemente, não se poderia ver em decisões judiciais o estímulo à criação das malfadadas “milícias” que, nos ônibus, substituiriam as autoridades constituídas.
A ação dos meliantes, claramente, concretiza a hipótese do artigo 14, § 3º, II, do CDC.

A jurisprudência
Aqui, abre-se a oportunidade para a recuperação da conjuntura em que se afirmou a responsabilidade objetiva das estradas de ferro – matéria, inclusive, sumulada –, que muitos estudiosos transplantam para o transporte rodoviário de passageiros.
Entre as atividades das sociedades empresárias ferroviárias e as das rodoviárias, há em comum apenas a finalidade do transporte de passageiros. Mas, não se podem olvidar as diferentes condições em que desempenham os seus misteres: as ferrovias operam em vias exclusivas e muradas (de acesso restrito e controlado ou controlável) e dispõem da Polícia Ferroviária10; enquanto o transporte rodoviário divide a via pública com todos os demais veículos  e não dispõe de polícia específica.
A jurisprudência maciçamente predominante, em todas as instâncias do Judiciário, é no sentido de que o roubo praticado contra passageiros embarcados nos ônibus que operam os serviços concedidos é fato de terceiro, imprevisível e inevitável pelas concessionárias. Conseqüentemente, é reconhecido o rompimento do nexo de causalidade e infirmada a responsabilidade da transportadora de passageiros. E é assim, a nosso sentir, com acerto.

Conclusão

“Não almejo estimular convicção. Almejo estimular o pensamento e perturbar preconceitos.”
(Sigmund Freud)

NOTAS _____________________________
1 ”Art. 3o, §2º. Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.”
2 TEPEDINO, Gustavo. in O Futuro da Responsabilidade Civil, Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 24, Padma Editora
3 ”Art. 14, § 3º. O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.”
4 Pensamento realista o da juíza Elisa Carpim Corrêa, ao sentenciar (Proc. nº 01198168955, 9a Vara Cível de Porto Alegre): “De fato, o assalto a caminhoneiros, com o conseqüente roubo das mercadorias, é algo que não se desconhece. Mas taxá-lo de corriqueiro é banalizar a violência (…)”. Extraído do artigo do advogado Carlos Josias Menna de Oliveira (OAB-RS 16.126) publicado em 01/07/2008, in www.espacovital.com.br
5 “Art. 8º. Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.”
6 CDC, art. 20
7 In prefácio do Advogado Antônio Carlos Amaral Leão Filho, na obra A exclusão de culpa do transportador no caso de assaltos e lesões a passageiros, Elizabeth Viúdes C. Leão
8 CF, art. 144
9 O Globo – Caderno NITERÓI – Domingo, 27/07/2008 – pág. 3
10 CF, art. 144, III e § 3º