A securitização no Brasil: um olhar sobre as milícias cariocas

14 de janeiro de 2014

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LuisAugustoOs estudos que culminaram na teoria da securitização iniciaram-se a partir de questionamentos sobre a teoria tradicional que predominou durante toda a Guerra Fria, na qual somente o Estado e as correspondentes questões militares eram objeto da temática referente à segurança. Temas relacionados ao meio ambiente e à economia começaram a ocupar a agenda de institutos de pesquisa no decorrer das décadas de 1970 e 1980.

Segundo tais teóricos, os Estudos de Segurança Internacional (ESI) evoluíram para abrangerem questões além da defesa ou da guerra e para abordarem os setores político, econômico, social e ambiental. Tem-se, assim, o processo de securitização caracterizado por ser um movimento que classifica determinadas ameaças como questões que ultrapassam as regras preestabelecidas pela política.

Essa extensão do conceito de segurança foi abraçada pelos teóricos da assim conhecida Escola de Copenhague, onde elaboraram a teoria da securitização. Trata-se de uma versão extremada da politização. Preconiza-se que uma questão possa ser classificada de não politizada, politizada ou securitizada. Tem-se como não politizada aquela que não envolva o Estado, colocando-se à parte de qualquer debate ou decisão pública. Politizada é a que provoca uma decisão governamental, incluída no contexto das políticas públicas. Por fim, a questão é securitizada quando representa uma ameaça existencial ao próprio Estado
e/ou às suas instituições, impondo medidas urgentes e justificando ações além do processo político normal.

A partir desse raciocínio, qualquer questão pode inicialmente ser classificada como não politizada, tornando-se securitizada em momento posterior conforme as circunstâncias. Neste processo estão envolvidos os agentes securitizadores, os quais desempenham papel fundamental. São agentes ou atores que argumentam em favor de determinada questão, apontando e convencendo acerca de seu grau de importância no campo da segurança. O convencimento é fator essencial para que se confira legitimidade ao discurso e, consequentemente, a questão se torne securitizada.

A partir desse embasamento teórico, podemos analisar o fenômeno das milícias cariocas, verificando as características que permitam classificá-lo como uma questão securitizada, respeitada a devida adequação ao ordenamento jurídico pátrio.

O fenômeno das milícias no Estado do Rio de Janeiro pode ser visto como uma espécie de poder paralelo com características próprias, isto é, organizações criminosas de cunho mafioso que representam uma questão que perpassa, necessariamente, etapas ou fases para atingir certo patamar de poder político e econômico. Nessa ordem de ideias, a primeira fase é a econômica, quando, por meio da exploração de atividades impostas ao povo ou à comunidade sob seu poder paramilitar, a organização adquire forte concentração de capital e patrimônio. Munida desse poder econômico, adquire, então, a capacidade de se aventurar na seara política por meio da infiltração de seus integrantes. Forma-se uma espécie de ciclo que se retroalimenta, uma vez que, ampliando seu poder político, incrementa-se o poder econômico que o garante1.

Essa semelhança estrutural e de formação com organizações de natureza mafiosa alerta para uma ameaça que vai além de aspectos meramente relacionados à segurança pública de um ente da Federação. Evidencia-se um cenário que extrapola fronteiras estaduais por meio da corrosão de instituições estatais de poder, como, por exemplo, o Legislativo, desde o âmbito local até o federal, por meio do processo eletivo regular.

O fenômeno em análise representa uma ameaça às instituições estatais, aos Poderes Constituídos e, em especial, ao Legislativo por permitir o acesso desses criminosos ao processo de formação de leis em diversas áreas, editando normas que visem aos interesses da organização e de outras com ela conexas, bem como conferindo uma blindagem às correspondentes atividades ilícitas. Esse cenário nos permite afirmar que as milícias cariocas foram, sim, securitizadas, mas a partir de uma interpretação flexível da teoria formulada pela Escola de Copenhague.

A importação da teoria da securitização, assim como qualquer outra, pode ser efetuada, mas com as devidas adequações à disciplina constitucional brasileira. A simples importação de uma teoria, sem a devida compatibilização com o ordenamento jurídico pátrio, pode trazer equívocos ou torná-la inexequível e ineficiente. Uma teoria que preconiza qualquer tipo de tratamento de exceção ao cidadão deve ser confrontada com a sistemática legal e, principalmente, a constitucional, sobre o tema, sob pena de perda da sua utilidade prática.Nosso ordenamento jurídico encampa diversos princípios internacionais de tutela aos direito humanos, dentre eles a vedação ao tratamento discriminatório e aos regimes de exceção. Assim, a aplicação rigorosa da teoria da securitização encontraria, em tais princípios, uma barreira intransponível.

Entretanto, flexibilizando-se a teoria, pode-se reconhecer um processo de securitização quando, observado o ordenamento jurídico vigente, estabelece-se um tratamento diferenciado a uma determinada questão reconhecida como ameaça ao Estado e à nação.

Assim ocorreu com as milícias, as quais, reconhecidas como ameaça às instituições estatais, receberam tratamento próprio, sendo descritas como tipo penal autônomo previsto no artigo 288-A do Código Penal.

Trata-se, pelo exposto, de um exemplo prático de securitização em solo brasileiro desde que se importe a teoria de forma compatível com o ordenamento jurídico pátrio.

À toda evidência, estamos diante de um processo ainda incipiente em face da proporção que tais organizações criminosas têm alcançado, mas, sem dúvida, os primeiros passos estão sendo tomados, cabendo o enfrentamento do fenômeno não apenas às autoridades públicas no exercício de suas funções, mas também aos acadêmicos, por meio de estudos e reflexões que confiram novas abordagens e uma dimensão mais próxima da realidade diante da ameaça que se coloca às instituições estatais.

Nota _____________________________________________________________________

1 Resolução no 433/2008 – CPI das milícias. Disponível em: <http://www.alerj.rj.gov.br>. Acesso em 27 nov. 2013.