Edição

Segurança Pública: Questões estruturais e conjunturais

31 de agosto de 2007

Compartilhe:

O fenômeno da violência, como sabido, é complexo e de múltiplas causas. Uma política consistente de segurança pública deve, necessariamente, incorporar ações sociais de caráter preventivo (chamadas de “Prevenção Primária”) que, integradas à esfera policial, proporcionarão um enfrentamento mais efetivo do problema em toda sua totalidade e complexidade.

O presente resumo tem por objetivo fornecer elementos sobre o complexo diagnóstico encontrado no ramo da segurança pública nas últimas décadas através de uma análise crítica das falhas estruturais e conjunturais do sistema estatal e dos processos de discriminação negativa na formação dos jovens criados em comunidades carentes ao longo da história, assim como suas conseqüentes implicações sócio-econômicas no contexto dos ambientes em que vivem e das incidências criminais.

 

Aspectos culturais, sociais e políticos do Brasil relativos à infância brasileira

O estudo de Philippe Ariès em seu livro “História Social da Criança e da Família”, Guanabara Koogan, 1978, nos informa sobre a modernidade do conceito de infância.

Embora inovadora por discutir a infância enquanto uma construção histórica, ela está baseada na realidade européia, que, apesar de ter influenciado fortemente o mundo ocidental, não pode ser generalizada ou transportada de forma mecânica para a realidade brasileira.

Ressalta-se que, desde o início do período colonial, a sociedade brasileira é marcada por diferenças gritantes de distribuição de renda e poder, o que propiciou a emergência de infâncias diferentes em classes sociais distintas.

Segundo Mary Del Priori (org.), “História das crianças no Brasil”, Contexto, 2004, tanto a escolarização quanto a emergência da vida privada tardaram a chegar em nosso país, não sendo, portanto, a base de apoio para a formação do sentimento de infância. A história das nossas crianças seguiu o mesmo caminho da vivida pelos adultos, tendo sido feita à sua sombra.

Infelizmente este panorama ainda faz parte da sociedade brasileira no que diz respeito à infância, com crianças fazendo malabarismos nos sinais de trânsito, ou vendendo balas, complementando o orçamento doméstico. Isto remete ao distanciamento da escolarização, tendo uma infância marcada pela ausência, ou até mesmo pela negação dos sonhos infantis e de perspectivas de vida; característica de conseqüências psicológicas graves num cotidiano onde o consumo é quase uma imposição da mídia, e a idealização da malandragem é um dos ícones de muitos de nossos autores de livros, filmes e novelas.

 

A análise do crime

A análise dos crimes e sua distribuição pelo espaço territorial sempre foram objeto de estudos pelas Ciências Sociais. Uma das primeiras incursões nesta área é encontrada em Durkheim (1977), e o trabalho clássico enfocando esta questão é de Shaw e McKey (1942), realizado na cidade de Chicago, onde mostram, por meio de taxas de delinqüência juvenil, a gradativa diminuição de sua incidência, à medida que se desloca do centro da cidade em direção às áreas de subúrbio. Na opinião dos autores, a taxa de delinqüência está relacionada à posição geográfica no interior da cidade e àquela correspondiam posições socioeconômicas bem definidas.

Wagner Cinelli de Paula Freitas, em seu livro “Espaço Urbano e Criminalidade – Lições da Escola de Chicago”, Editora Método, 2004, discorre sobre o assunto de forma didática.

Vários autores concluíram que o aumento da criminalidade durante certo período se deveu, majoritariamente, ao aumento da população masculina compreendida entre 13 e 19 anos.

Estudos enfatizam que a questão dos crimes urbanos perpassa a análise geográfica do crime, considerando as circunstâncias físicas e ambientais imediatas, em conjunto com avaliação de outros níveis do processo social.

A análise criminal é cada vez mais importante no gerenciamento da polícia moderna e eficiente. A metodologia se vale da organização inteligente de banco de dados a partir de cuidadosa coleta e registro dos dados criminais.

Vale lembrar que o Estado do Rio de Janeiro adota a metodologia apropriada quanto à origem da coleta para a formação do banco de dados, visto que sua construção é feita a partir dos Registros de Ocorrências e de Aditamentos. Tal trabalho informatizado da PCERJ teve início embrionário na zona sul da cidade, em 1995, culminando, atualmente, com o moderno Sistema das Delegacias Legais em rede. Os dados oriundos de Unidades Convencionais (não Legais) são inseridos no Sistema a partir de digitadores.

Os dados primários possuem inquestionável credibilidade em razão da única fonte de entrada, visto que todas as ocorrências policiais são encaminhadas às Delegacias de Polícia, podendo a comunicação ser efetuada pelas Polícias Militar, Federal, Rodoviária Federal, Guardas Municipais, pela vítima, pela testemunha, pelo Judiciário, pelo Ministério Público, etc.

Os Aditamentos efetuados nos Registros de Ocorrência e a inclusão dos Institutos de Perícia no Sistema mantêm o banco atualizado.

 

Conceito analítico do ambiente – Favela – comunidade carente – área de risco

 Favela – ”Conjunto de habitações populares, toscamente construídas e desprovidas de recursos higiênicos”, Dicionário Aurélio. Sabemos que, atualmente, muitas comunidades que ainda citamos como favelas não possuem tais características, em razão da urbanização e relativas condições de higiene e acessibilidade.

Os registros contam que a primeira favela na cidade do Rio de Janeiro, no extinto morro de Santo Antônio, surgiu em meados de 1897, com cerca de 41 barracos. Há relatos de que ela seria habitada por soldados da Guerra de Canudos, oriundos do sertão nordestino.

No mesmo ano, nascia também a favela da Providência, situada entre o Centro e o Porto do Rio. A favela ainda existe no mesmo local e está comemorando os seus 110 anos de existência.

Como o Rio tornou-se um dos centros econômicos do país, a migração foi ficando cada vez mais intensa, assim como a dificuldade de receber essas pessoas.

Como ainda ocorre, o Estado lato sensu não possuía uma estrutura organizada e uma divisão de espaços planejados para ocupações especializadas. A omissão dos governos em relação a um planejamento sério sobre a ocupação dos territórios urbanos permeou a evolução de nossa cidade, culminando na absoluta confusão habitacional que enfrentamos hoje.

Em 1907, a zona sul, principalmente os morros de Copacabana, já estavam tomados por barracos. Assim como os morros do Salgueiro e Mangueira, por volta de 1910. Após 1930, entretanto, a procura por esses locais de moradia aumentou bastante. Segundo a Estatística Predial de 1933, os casebres das favelas, nesse ano, representavam 20,58% (46.192) do total de prédios da cidade.

Na década de 40, as favelas já tinham se proliferado e começaram a ser reconhecidas pelo governo. Em 1947, foi realizado o primeiro Censo oficial nas favelas.

A falta de rigorosa fiscalização sobre a ocupação irregular do espaço urbano resultou na condição de desordem hoje diagnosticada, onde encontramos, nesta cidade, mais de setecentas comunidades do gênero e mais de outras trezentas sob o domínio de facções criminosas.

 

Contextualização da violência urbana e as percepções da população e da mídia

Na obra do autor Marcos Alvito Pereira de Souza, em “As cores de Acari: uma favela carioca”, Editora Fundação Getúlio Vargas, 2001, é enfocada a interrupção do tráfico ostensivo, o desaparecimento dos “meninos” em armas das ruas, o patrulhamento incessante das localidades por policiais, poupando os sobressaltos causados pelas antes diárias “batidas” e afastando o fantasma de uma possível “tomada da favela” por um bando inimigo, causaram outras mudanças além da já referida.

“A paz levou a uma reconquista do espaço ‘público’ pelas crianças e os mais velhos: saíram os walkie-talkies e os fuzis automáticos, voltaram o carteado à sombra da árvore, a mesa de pingue-pongue improvisada, o jogo de futebol no meio da rua, as meninas pulando corda”, conforme o autor.

Vale registrar, porém, que mesmo os que sofreram dificuldades financeiras por causa da brusca diminuição da atividade econômica ilícita em Acari jamais demonstraram sentir saudades do que ocorria antes. Com cautela natural dos que se sentem permanentemente vigiados, após certificarem-se de que não havia ninguém suspeito por perto, abriram um vasto sorriso e afirmavam: “a favela está uma uva”.

Todavia, meses após a ocupação daquela comunidade, em 1996, o policiamento especial foi retirado e os equipamentos estatais básicos não chegaram. Isso foi o bastante para que a criminalidade voltasse a “comandar” o local.

Com relação à percepção midiática, devemos observar a abordagem acerca do tema em matérias jornalísticas, tais como: ”Veja – Editora Abril – Nº 644 – 7 de Janeiro de 1981 – A GUERRA CIVIL NO RIO2000 mortos na Baixada Fluminense em 1980 – População obedece à ‘Lei do Silêncio’ para não morrer.”

Como também: ”Um prédio inteiro assaltado em Ipanema – Milionário diz que o governo perdeu o controle da situação” E, na mesma linha: “Comércio clandestino de armas bate recordes no Rio de Janeiro”. “O Rio de Janeiro torna-se, aos poucos, o quintal do crime numa cidade despoliciada”.

Percebe-se que, já na década de 80, a imprensa fluminense pautava as notícias dos crimes como principal produto para chamar a atenção de seus consumidores, provocando a denominada retroalimentação da violência através do noticiário. Analogamente à dependência química do viciado em drogas, fala-se da dependência editorial e comercial da mídia em relação à violência.

 

A utilização da tecnologia é fundamental, mas a falta de permanência policial nas comunidades cria uma lacuna no planejamento

Tecnologias da informação e investigativa existem com grande qualidade em muitos países do mundo. O sistema de visualização do planeta através de satélites também é um importante instrumento de prevenção e repressão criminal, estando, atualmente, seus preços bem mais acessíveis que na época que essa tecnologia passou a ser disponibilizada.

O próprio Exército Brasileiro tem acesso a ferramentas tecnológicas de alto nível, que poderiam ser acessadas pelos órgãos de segurança pública lato sensu através de atos e protocolos de reciprocidade, como Convênios, etc.

Já assistimos a demonstrações nos EUA e em Brasília de tecnologias que possibilitam localização de aparelhos eletrônicos e pessoas com incrível grau de aproximação. Os mecanismos de tecnologia da informação aplicada à análise de vínculos na atividade policial também tiveram um impressionante desenvolvimento.

Todo esse aparato atinge um elevado percentual em termos de prevenção e repressão às infrações praticadas, desde que o acesso dos órgãos auxiliares e parceiros da Justiça aos locais de crime ocorra de forma natural.

Todavia, essa lógica não pode ser aplicada às comunidades onde a acessibilidade dos órgãos de segurança pública é inversamente proporcional à petulância e ao armamento utilizado pelos criminosos, que representam ínfimo percentual da população da região. Para uma diligência qualquer indispensável ao andamento de uma apuração policial, às vezes, faz-se necessária uma operação com várias equipes e blindados.

Não podemos permitir que a inversão de valores defendida por alguns segmentos se pacifique no inconsciente social. É um absurdo admitir que o acesso dos órgãos estatais a algumas comunidades desprovidas de assistência social dependa de relativismos.

 

Propostas concretas na busca da melhor gestão das rotinas policiais

 

  • Privilegiar a pessoa do servidor policial como base fundamental do processo;
    • Incluir no Sistema das Delegacias Legais todas as Delegacias de Polícia do Estado, finalizando disponibilizar a todas as ferramentas tecnológicas possíveis;
    • Evitar a criação de Unidades de Polícia Administrativa e Judiciária (UPAJ), a não ser aquelas cuja demanda demonstre serem absolutamente urgentes, como, por exemplo, uma para o bairro do Recreio, enquanto não forem equacionados pontos estratégicos fundamentais do tipo: salário, horas de trabalho, autonomia administrativa com disponibilidade orçamentária através de duodécimos, etc;
    • Diminuir ao quantitativo absolutamente necessário às Delegacias Especializadas (não Territoriais), visando otimizar o atendimento e a produtividade das congêneres de bairro, que atendem à população durante as 24 horas do dia;
    • Aumentar ao máximo possível a velocidade de acesso e resposta do Sistema informatizado empregado nas UPAJ’s já transformadas em Delegacias Legais, visando otimizar as apurações criminais e atender ao público com maior celeridade;
    • A Polícia Civil precisa investir de forma incisiva nos Institutos de Perícia, tanto no viés tecnológico quanto na pessoa do Perito;
    • Regularizar a questão salarial antes de contratar novos policiais. O aumento do quantitativo do quadro sem salários dignos é diretamente proporcional à evolução dos problemas causados pelos próprios servidores à sociedade. É fácil verificar isso, basta atentar para os policiais presos nos últimos dias pela prática de tráfico de drogas e de armas, extorsões, homicídios, roubos, etc. A fórmula deve ser inversa: primeiro multiplicar, pelo menos, por 3 ou 4 vezes os atuais salários dos policiais, depois formar um novo diagnóstico com o aumento da quantidade e da qualidade individuais do trabalho e, finalmente, avaliar quantos policiais deverão ser contratados através de uma seleção de alta qualidade. O servidor policial deve ter orgulho de representar o Estado com seu distintivo, uniforme ou farda. O policial desvalorizado serve de combustível ao mercado privado das seguranças informais ou não. A quem isso interessa?
    • Designar um grupo de oficiais da PM para monitorar in loco se o policiamento preventivo está sendo executado nos locais e horários determinados pelo Comando, conforme planejamento baseado nas planilhas de incidências criminais próprias, além de incutir nos policiais que a concentração no serviço é a base de uma vigilância urbana bem executada;
    • Criar mecanismos de monitoramento e punição para os policiais civis e militares que não tiverem o devido cuidado de preservar o local do crime;
    • Reverter a lógica de apreender o armamento de alto poder de letalidade no interior das comunidades, aumentando as parcerias com as Polícias Federal, Rodoviária Federal e de outros países, bem como as Forças Armadas, com o objetivo de impedir que cheguem às facções criminosas;
    • A PCERJ deverá intensificar as parcerias com o Judiciário e o Ministério Público no tocante a troca de informações, a fim de aumentar a credibilidade recíproca e proporcionar melhores respostas à sociedade na esfera criminal;
    • A Polícia Civil deverá implantar um arquivo confidencial para testemunhas que devam permanecer com a identificação preservada, sendo estas vinculadas no Inquérito Policial apenas a um número ou senha. O controle de tal arquivo ficaria sob a responsabilidade direta do Corregedor da PCERJ e, posteriormente, do Juízo e órgão ministerial competentes;
    • Produzir de forma mais freqüente o recurso jurídico da produção antecipada de prova;
    • Intensificar os mecanismos de tecnologia da informação aplicada à análise de vínculos na atividade policial, entre outras.

 

Finalizando

Por derradeiro, não podemos poupar mais os três níveis de governo no tocante à desordem na esfera da ocupação do espaço urbano.

Não é admissível que tais operadores finjam ser grutas ocas dos vales, que repetem palavras que não compreendem. Deve ocorrer uma definição urgente sobre a reengenharia e monitoramento das questões urbanas, finalizando a contenção de novas ocupações irregulares e planejar a remoção de parte da comunidade naqueles locais que estejam com a qualidade mínima de vida comprometida, visando proporcionar novas moradias em bairros com infra-estrutura adequada, onde existam equipamentos de Segurança, Educação, Saúde, Transporte público e Lazer, dispondo as pessoas de oportunidade de trabalho lícito e do direito de ir e vir sem a opressão dos criminosos. Essa é uma forma de começarmos a valorizar todas as nossas infâncias.