Sem uma justiça independente impera o arbítrio e o caos

5 de janeiro de 2005

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Como é da tradição deste Tribunal, no Dia da Justiça, após a realização da missa onde reverenciamos a data dedicada a Nossa Senhora da Conceição, quando agradecemos a Deus as benesses recebidas e colocamos em suas mãos sagradas a nossa justiça, implorando-lhe que seus membros sejam temperados com a angústia criadora dos apóstolos e dotados de discernimento para que possam enxergar além das aparências e para que todos os magistrados sejam fiéis aos valores éticos e morais e possam, sem remorsos, cumprindo a sua missão, abominar qualquer sentimento que pretenda sujeitá-los a interesses escusos e mesquinhos, aqui nos reunimos para homenagear ilustres personalidades, conferindo-lhes o Colar do Mérito Judiciário pelos relevantes serviços prestados à vida pública e, em especial, ao Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro.

A comenda máxima outorgada por este Tribunal, após rigorosa apreciação do Conselho da Magistratura e aprovação do Órgão Especial, expressa o reconhecimento da justiça fluminense a cada um dos homenageados, pelos exemplos disseminados e por tudo o que realizaram e realizam pela justiça, em seu conceito mais amplo.

Muito embora a ilustre Ministra Ellen Gracie não esteja hoje presente a esta solenidade, em decorrência de compromissos anteriormente assumidos, como Vice Presidente do Supremo Tribunal Federal, permitam-me, senhores e senhoras agraciados, que em seu nome, eu faça uma breve saudação a todos.

Primeira mulher a ocupar uma cadeira no Supremo Tribunal Federal é carioca de nascimento, a Ministra Ellen reúne todas as qualidades necessárias ao exercício de tão difícil missão: comprometida com a vida pública, dignifica a profissão e a classe através da firmeza de suas decisões, da delicadeza de seus gestos e da transparência de seu caráter.

Senhores homenageados recebam todos nossos tributos através desta solenidade, ainda que singela, objetiva ressaltar a figura de integrantes da intelectualidade e da sociedade brasileira que, no exercício digno de suas funções e profissões, durante toda uma vida, expressaram, em suas ações, a tradução do sentimento de justiça. Não aquela justiça que se aplica pelo direito positivo e pela utilização objetiva das leis, mas sim uma justiça cotidiana, valor absoluto e essencial, transcendente ao próprio homem e fundamental para a vida em sociedade.

Quis o destino que, nesta mesma data, há poucas horas, se reunisse o Congresso para promulgar após 13 anos, a tão propalada reforma do Judiciário. Gostaríamos de poder, por este motivo, comemorar os avanços alcançados em prol da celeridade, do acesso e da eficiência, problemas crônicos do sistema judicial e apontados como responsáveis pelo desgaste da nossa imagem. Não temos, entretanto, diante do texto aprovado, qualquer razão para celebrar. Ao contrário, esperava-se uma reforma que resultasse no aprimoramento funcional do Poder, dotando-lhe de maiores recursos e investimentos que propiciassem à população um atendimento mais eficiente e rápido, que -como já tive oportunidade de mencionar – escancarasse as portas da justiça à cidadania.

Lamentavelmente, o arremedo de reforma constitucional hoje promulgada reduz a importância do Judiciário, notadamente da Justiça Estadual.

Com a criação do Conselho Nacional de Justiça, órgão de constitucionalidade duvidosa, pretende-se mutilar o Poder e impor aos magistrados limitações inadmissíveis ao exercício da jurisdição. Apresentado como panacéia a todos os males que acometem o sistema judicial, longe de apontar para uma solução efetiva, resulta na fragilização do próprio poder, confrontando-o com a população. Esquecem os que defendem esta anomalia que sem uma justiça independente impera o arbítrio e o caos, predomina o mais forte e assim perdemos todos.

Afirma-se que, em certos países, inclusive parlamentaristas, existe um controle externo, mas o certo é que no regime parlamentar de governo não há independência entre os três poderes, como ocorre nos presidenciais. A justificativa é, pois, extremamente frágil.

Veja-se que naquele regime, os Poderes não são autônomos nem independentes.

O Executivo depende do Legislativo, eis que este pode, até, derrubá-lo. O Legislativo, por sua vez, depende do Chefe de Estado e pode ser dissolvido com a convocação de novas eleições.

Na França, em modelo referido pelos que defendem o controle, o Poder Judiciário é uma repartição da administração pública, ou seja, do Executivo, estando sujeito mais ao Ministro da Justiça do que às Cortes Superiores, o que levou o ilustre jurista Ives Gandra a corretamente afirmar: “Assim, quando criado nesses países, o controle externo, seu objetivo foi ofertar independência ao Poder Judiciário, retirando-o do controle direto do Executivo e, mais particularmente, do Ministério da Justiça, não foi para controlá-lo, mas para libertá-lo do controle do Executivo”.

Não é isto que se está iniciando a fazer no Brasil, onde o objetivo é o de retirar a autonomia e a independência do Poder Judiciário, por ser aquele que mais incomoda quando reconhece que muitas leis são elaboradas em desconformidade com a Constituição e as declara inconstitucionais, ou quando julga contra os governantes ou interesses ditados, não pela justiça, mas pela vontade de conglomerados econômicos, cujo objetivo principal é o lucro em detrimento dos valores centrais da humanidade.

Repito hoje, o que afirmei em solenidade idêntica a esta no ano passado. Citando o ilustre professor de filosofia, Emmanuel Carneiro Leão que, em artigo publicado, assim afirmou:

“Por toda a parte se esboroou a força do direito e só restou mesmo o direito da força, tanto na tecnologia como na ideologia. No lugar da ética, entrou a economia, ocupando todos os postos e funções e substituindo qualquer valor. E não apenas a ética foi tragada pela economia. A política também, a religião também, a arte também, a filosofia também o foram. Os valores humanos e o homem, como princípio e fim de toda ordem, foram afundando e se rendendo aos poderes do mercado. Só há sensores para o lucro, só se busca globalizar investimentos, só preocupam rendimentos em expansão.”

Meus senhores, ouso afirmar que nesta submissão à economia, fertiliza-se o terreno adequado para que se instale uma crise de valores sem precedentes e se estabeleça uma confusão entre moralidade pública e privada. Ao se desconstruir a consciência de cidadania e ao se adotar o discurso do estado mínimo sucatea-se  o sentimento da vida em grupo, do bem coletivo e associa-se o conceito de que tudo o que é público é ineficiente, corrupto e ultrapassado.

Com controle, ou sem ele, o nosso Poder Judiciário é constituído, graças a Deus, por homens e mulheres que sustentam que a ciência jurídica é construção da racionalidade humana e continuarão a denunciar ou buscar soluções para que o homem, e não o lucro, volte a ser a medida de todas as ações políticas, para que o balizamento de qualquer projeto seja a liberdade e o respeito às garantias constitucionais.Outra infeliz providência foi o deslocamento da competência para julgamento dos crimes contra os direitos humanos pela Justiça Federal. Longe de significar a efetividade desejada, constitui-se tal medida como um abalo ao pacto federativo, reduzindo a importância dos estados e dos municípios frente à União. Não é esta medida um tópico isolado. As sucessivas alterações do sistema tributário resultaram no déficit da arrecadação dos estados e municípios que amargam ínfimas taxas de crescimento, ao contrário do fortalecimento da capacidade financeira da União. Os entes federativos, cada vez mais combalidos e enfraquecidos, tornam-se servis ao poder central.

Neste cenário, é urgente a implantação de uma nova ordem institucional. As tentativas de se desqualificar a justiça estadual com o esvaziamento de suas competências atingem o cerne da federação idealizada por nossos constituintes e resultado de um longo processo histórico e cultural que se pretende, sem qualquer debate, alterar.

Garantir a manutenção do nosso sistema político, com a necessária autonomia dos entes federados é um desafio que deve ser assumido pelo Judiciário. A conclusão é inevitável: as mesmas forças que buscam o sucateamento da federação almejam o enfraquecimento da justiça estadual. Não seremos tolerantes com este projeto e, em nossa área de atuação, continuaremos combatendo o golpe que se pretende desferir contra a Constituição.

Vivemos um período ímpar na história da humanidade. Nunca se viveu de forma tão explícita o tênue encontro da civilização e da barbárie. Rompeu-se com o passado, perdeu-se o futuro de vista e, neste cenário, o pensamento patina às cegas. Há um desprezo generalizado pela política, um descrédito pela ética e pelas normas, uma obscuridade na formação e na cultura. O filósofo Paul Valery afirma que “o mundo moderno aboliu as duas maiores invenções da humanidade: o passado e o futuro”.

O Poder Judiciário, guardião dos valores que constituem os pilares da civilização, deve reafirmar sempre no sentido da preservação da memória. Sem a memória e sem uma história rompe-se com as possibilidades de projetos.

Devemos, entretanto, em momentos de crise, não optar pelo caminho mais fácil da acomodação indignada. O momento é de assumir responsabilidades e conseqüências.

O cenário do Estado do Rio não difere do resto do planeta. Vivemos tempos difíceis, onde a violência transborda e se entranha no tecido social provocando medo, intranqüilidade e, o mais grave, apatia.

Recentemente, numa cena dantesca, assistimos uma mulher tentando ingressar no presídio usando seus filhos para transportar drogas nos seus calçados. Efetuada a prisão, a reação das crianças era de terror. Queriam saber quem cuidaria delas, uma vez que o pai já se encontrava condenado cumprindo pena.

Rapidamente, acusações brotaram de todos os lados para que o “culpado” por tamanho terror fosse exemplarmente punido. Falta de saúde, educação, moradia, políticas públicas, autoridade, justiça, enfim, uma série de algozes para aplacar a indiferença que se abateu sobre todos nós diante da banalização de situações como aquela.

Sim, somos todos responsáveis por aquela cena de horror. Montaigne dizia que “cada homem leva em si a forma inteira da condição humana” e “nossa humanidade só se afirma como condição compartilhada: ser um homem é ter muita coisa em comum com todos os outros homens”.

Nestes dois anos à frente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio, temos reafirmado a nossa condição de agentes pró-ativos em busca da inclusão social e da cidadania.

Temos, no Estado, uma justiça transparente, ética, moralizada, e buscando cada vez mais, seu aprimoramento e inserção. Só seremos reconhecidos como um Poder indispensável quando a sociedade puder reconhecer em nós, parceiros e garantidores da paz e da estabilidade social. Este tem sido o nosso desafio e ouso dizer, com a segurança de quem combateu o bom combate, que estamos avançando.

Participo, pela última vez como presidente e desembargador em atividade desta solenidade. Espero ter cometido mais acertos do que equívocos. Rogo a Nossa Senhora da Conceição que continue a proteger a justiça, aos homens que a garantem e também aos que dela necessitam.

Deixo, como desejo, o sonho manifestado por George Orwell, em seu cada vez mais atual 1984:

“Ao futuro ou ao passado, a uma época em que os pensamentos sejam livres, em que os homens sejam diferentes uns dos outros e que não vivam sós -a uma época em que a verdade existir e o que for feito não puder ser desfeito”.