Edição

Setor Postal na iminência de uma grande decisão

5 de maio de 2005

Compartilhe:

A realidade do mercado postal mundial modificou-se em função, basicamente, de inovações tecnológicas. Pode-se identificar hoje 5 grandes segmentos no setor postal: o tradicional; o de encomendas; o correio híbrido; o de atendimento; e o financeiro. Além destes, existem os segmentos de remessas expressas internacionais e nacionais, o de marketing, dentre outros. Esta diversidade de segmentos deveria implicar uma mudança na forma como devem os Tribunais analisar cada caso concreto. Tal não é o que vem ocorrendo. Muitas das decisões parecem simplesmente ignorar as modificações ocorridas no setor e parecem originar de uma análise pura e simples da lei infraconstitucional regedora da matéria, sem a adequada interpretação da CF na conjuntura atual do setor postal. Cumpre esclarecer, neste sentido, que não se pretende aqui rechaçar o fato de que as leis ordinárias repercutem sobre os dispositivos constitucionais. Diferentemente, as normas constitucionais podem ser interpretadas por preceptivos de grau inferior, desde que lhe sejam harmônicos. Tal harmonia existia à época da promulgação da CF/67, com EC/69, uma vez que era possível a criação de monopólios por lei infraconstitucional. Faticamente, e em comunhão com a “permissão jurídica” de outrora, não havia espaço para a prestação dos serviços postais de forma diversa e nem havia outros serviços que não o tradicional (entrega de cartas). Acresça-se que somente a ECT era, à época, capaz de prestar tais serviços.

Grande parte da polêmica existente no setor postal gira em torno da interpretação do inciso X, do art. 21 da Constituição Federal vigente. Entendemos que a mais adequada interpretação do texto constitucional aponta para a total desnecessidade de emenda do texto da CF, uma vez considerada ocorrida uma mutação constitucional do conteúdo do inc. X do art. 21 da CF/88. Ao incluir o serviço postal (tradicional) dentre as atividades inerentes à esfera federal de repartição de competências, pretendeu o constituinte precisar simplesmente que este ônus é da União, não havendo qualquer vedação constitucional à exploração descentralizada do serviço. Mas o art. 21 não explicita como deverá a União assegurar a manutenção à coletividade do serviço postal.

Muitas decisões dos Tribunais atinentes à matéria postal demonstram que, ainda hoje, a discussão acerca da existência ou não de um “monopólio” da União para a prestação dos serviços postais está restrita à recepção ou não do art. 9º da Lei nº 6.538/78 (que expressamente estabelece o monopólio) pela atual CF, ou pela aplicabilidade dos arts. 173 e 177. Outrossim, constatamos que poucas são as decisões que se ocupam de efetivamente interpretar ou concretizar a norma constitucional do art. 21, X, como o fizeram as decisões a seguir mencionadas.

Veja-se trecho da interessante decisão do Des. Fed. Daniel Paes Ribeiro do TRF/ 1ª Região, no AI nº 2004.01.00.036195-0/MG interposto pela Companhia Força e Luz Cataguazes-Leopoldina contra o deferimento do pedido da ECT de antecipação de tutela: “(…) mesmo diante de contexto favorável à pretensão autoral, tenho que o provimento antecipatório deferido repercute nos custos da agravante, afetando o equilíbrio econômico-financeiro do seu contrato de concessão, valendo considerar, ainda, o expressivo valor da multa arbitrada, fazendo despontar a possibilidade de ocorrência de dano de difícil e incerta reparação; assim, neste contexto, impõe-se preservar a prática centenária de apresentação das faturas quando da medição, pelos seus empregados, do consumo de energia elétrica dos seus usuários, até o julgamento de mérito do presente recurso. Defiro, pois, o pedido (…)” (d. de julg. 18/08/2004)

O grande mérito da decisão está justamente no deslocamento do enfoque dado à questão e no aprofundamento da análise. É forçoso constatar que o Julgador deveria – mas em grande parte das decisões não o faz – se ater ao fato de que as empresas processadas pela ECT são, normalmente, regularmente constituídas e vêm atuando no mercado durante algum período de tempo, isso sem contar no grande número de empregos diretos que geram. Além disso, uma decisão desfavorável à empresa processada poderia, dependendo de cada caso concreto, impor as seguintes situações: não faturar até o julgamento final da ação; deixar de remunerar-se até o julgamento final da ação; aumento de custos em função das tarifas praticadas pela ECT (na hipótese da empresa passar a ter que utilizar os serviços postais da ECT); e irreversibilidade da situação fática. Decisões como esta podem significar que, embora ainda timidamente, os Tribunais estão iniciando um processo de modificação de entendimento, desprendendo-se da interpretação literal da lei infraconstitucional e aproximando-se da atividade regulatória de ponderação de interesses, custos e benefícios nos casos concretos, o que é louvável e conveniente. Esta atividade de ponderação, aliás, foi também explicitada em acórdão do STJ (RO em MS nº 13.084-CE 2001/0047579-5, 1ª T., Rel. Min. José Delgado, data de julg. 28/05/2002, DJ de 01/07/2002), embora tratasse de assunto diverso, in verbis: “No sopesamento de valores, diante do caso concreto, o princípio do amparo aos deficientes físicos prevalece sobre o princípio do equilíbrio econômico-financeiro do contrato administrativo, consoante os ditames da proporcionalidade.” Relacionando estas decisões com as técnicas doutrinárias de interpretação da Constituição, notamos que é indiscutível a impossibilidade de aplicar-se a lei infraconstitucional independentemente do que dispõe a CF, até porque se são as normas constitucionais que fundam o ordenamento jurídico, submetendo as outras normas ao seu alvedrio, claro está que os preceitos constitucionais repercutem diretamente sobre o direito ordinário. Se o Estado Regulador traduz um fenômeno de mutação constitucional desencadeado pelas alterações estruturais por que passou a sociedade, em sustentando a mutação constitucional por via interpretativa do “monopólio postal” brasileiro, nada mais adequado do que introduzir neste setor o fenômeno da regulação. Importa frisar que a ponderação tornou-se necessária justamente em função da diversidade de interesses em jogo na conjuntura atual. A lógica do setor mudou.

Não se pode deixar de reconhecer um movimento de indignação em relação à insegurança jurídica que paira sobre o setor. É o que se depreende das ADPFs propostas pela ABRAED e pelo SineEx em face da ECT no STF. Deve-se utilizar a experiência e produção regulatória dos demais países para interpretar a legislação de que dispomos e dizermos o que nós, intérpretes, queremos que as normas digam em consonância com a realidade do setor postal que, acompanhando a tendência mundial, inequivocamente mudou, sem, obviamente, arrepiar os princípios e normas estabelecidas na CF. Com base no exposto, qual seria, enfim, um cenário possível para o ambiente postal nos próximos anos? Talvez seja o de “nuvens em dia ensolarado”. Isto porque, a insistência na análise dos serviços postais e do setor postal prescindindo da conjuntura atual do mercado postal contribui para a manutenção do status quo e dificulta a instauração regulada da competição. O setor postal está nas mãos do Supremo Tribunal Federal.