Sobral Pinto sob a ótica de um brasilianista

5 de junho de 2002

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John W. F. Dulles escreve primeira biografia sobre advogado que foi uma espécie de consciência moral do país

Pode-se dizer tudo dos Estados Unidos – que, por exemplo, neste mo mento eles tiram a mascara, e exercem um poder imperial. Mas também de lá vem coisas boas.

É incrível, por exemplo, que precisemos de um brasilianista – John W.F. Dulles – para ter, em português, a primeira biografia do Dr. Sobral Pinto.

Num país sem memória, este é um nome que aos mais jovens talvez não diga muita coisa. Também já não sabemos quem foi D. João VI.

Mas, tanto quanto o velho rei, o Dr. Sobral marcou uma época. Quem o viu com o seu terno preto, movimentos rápidos, não o terá esquecido. Num certo momento, de foi uma espécie de consciência moral do Brasil. Sua voz se fez ouvir pela última vez, com muita força, no comício pelas Diretas. Ele falava por uma multidão.

Defensor de Luis Carlos Prestes e Graciliano Ramos

Também foi o homem das cartas ­Otto Lara Resende chamou-o de “A Carta Magna Brasileira”. Ele era, por definição, um participante: não queria se omitir, não admitia que as pessoas se omitissem. Do modo mais cristão, achava que qualquer pessoa estaria ao alcance de um apelo, de uma advertência; e assim saiam as suas cartas, inumeráveis, dirigidas a quem quer que pudesse influir na vida brasileira – co­brando, incentivando, exortando, exprobrando.

Por trás disso tudo estava o grande advogado – o homem que tinha o senso mais exacerbado da Justiça e do Direito. Ele ficou famoso, no período Vargas, quando defendeu LUIS Carlos Prestes (sem ter qualquer afinidade intelectual ou ideológica com ele) num momento em que Prestes parecia um bicho acuado – logo em seguida a famosa Intentona comunista de 1935.

O levante fracassara, o governo Vargas aproveitava-se daquilo para preparar o seu próprio bote autoritário, o comunismo era um bordão de campanha – e Prestes acabou preso, junto com parceiros como o alemão Harry Berger.

Este, agente comunista infiltrado no Brasil, foi torturado barbaramente, ao lado de sua mulher, pela Policia Especial de Felinto Muller. Sobral tomou a sua defesa; invocou, em seu benefício, a lei de proteção aos animais – de novo, não porque simpatizasse com Berger, mas por achar que qualquer um tinha direito a um julgamento direito.

Fez o mesmo com Prestes, que passou anos na prisão. Tentou, por todos os modos, garantir ao prisioneiro alguns direitos básicos – como o de receber advogado. O curioso é que, no início, nem o próprio defendido entendia isso, e tratava o Dr. Sobral com agressividade.

Outro que caiu sob sua proteção foi Graciliano Ramos, também prisioneiro, que também não entendeu – e deixou sobre isso paginas imortais em “Memó­rias do cárcere”.

O que as vezes se esquece é que, por trás dessas ações mais retumbantes, Sobral Pinto exercia a oposição ao autoritarismo varguista numa época em que estava literalmente sozinho. Ele era, sozinho, toda uma oposição – não porque Fosse um anti-getulista visceral, mas por achar que o regime de Vargas distorcia e corrompia o estado de direito. Católico apaixonado, não poupou das suas censuras nem a própria Igreja a que prestava total obediência – por achar que, em diversas circunstancias, a Igreja era leniente com o varguismo.

Por tudo isso, pagou um preço alto em desgastes e prejuízos materiais. Vargas não se descuidava de tornar difícil a vida dos que se lhe opunham. Sobral perdia causas; seus amigos eram afastados de posições publicas.

Nesse caso, valia-lhe uma indiferenças quase total a questões pecuniárias. Foi o mais famoso advogado brasileiro do seu tempo; mas praticamente não auferia lucros com isso.

E não era só por ser perseguido: simplesmente não aceitava dinheiro de que não se julgasse merecedor – como foi o caso de nos atrasados que Guilherme de Figueiredo, em anos recentes, quis pagar-lhe por serviços prestados a universidade pública. Sobral achava que não lhe deviam esse dinheiro – e não foi receber.

Ele tinha o senso exacerbado da honra – como um cavaleiro antigo, espécie hoje extinta. Seu código moral não admitia brechas – e de sofreu mais que o normal por conta de um adultério em que se envolveu na juventude. Seus inimigos sabiam disso, coçavam-lhe a ferida. Ele reagia entre compungido e in­dignado: sabia que tinha tropeçado, mas não admitia que isso Fosse usado em manobras torpes.

Cristão, Sobral acreditava na regeneração da sociedade

Era uma luta cavalheiresca – Sobral contra os maus democratas. O outro lado era o Sobral Pinto dedicado de corpo e alma as causas em que acreditava – e por causa disso, sua maquina de escrever espalhava cartas em todas as direções. Da maneira mais crista, de acreditava na capacidade de as pessoas se regenerarem.

Foi incompreendido por isso, chamado de intrometido, vaidoso; foi ridicularizado. Também nisto de se pareceria com aquele grande cavaleiro antigo Dom Quixote, que não levava desaforo para casa, e estava sempre disposto a comprar uma boa briga.

Sobral passou a vida comprando boas brigas, muito pouco atento ao seu próprio interesse – o que, para a família, acabou representando um problema. Foi um varão de Plutarco numa época em que os valores antigos e eternos já não tinham muita audiência: mas, de algum modo, quem o via passar e viver sabia que estava assistindo a um espetáculo extraordinário.

Feliz a época que tem um Sobral Pinto para cobrar dela um mínimo de consistência moral e de dignidade. Pelo menos, podemos agora reler as suas aventuras no livro de Dulles. Duro de texto, quase um relatório; mas repleto da substância inesgotável daquele fenômeno humano.