Precatório, no veneno está o antídoto

1 de fevereiro de 2021

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Precatório é ordem de pagamento de créditos oriundos de decisão judicial transitada em julgado em desfavor da União, estados ou municípios. Em outras palavras, é a obrigação do Poder Público em pagar ao cidadão o que lhe é devido, corrigido monetariamente de forma integral e baseado em índice que reflita a inflação, por força de sentença judicial.

O cumprimento de ordem judicial é, pois, prerrogativa máxima definida pela Carta Política de 1988, de sorte que não se pode entender minimamente razoável ou legítimo qualquer ato ou movimento que se oponha à tal direito, especialmente quando o devedor é, nada mais nada menos, que o ente público.

Vale lembrar que o regular processamento e quitação dos precatórios pelos entes devedores tem sido uma preocupação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, tanto que ao longo dos mais de 30 anos de vigência da Carta Cidadã esse regime passou por uma série de mudanças, com objetivo de contornar as dificuldades financeiras dos entes públicos.

O atual regime de precatórios teve seus alicerces firmados pelas recentes mudanças constitucionais, que se fundamentaram no julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) nº 4.357 e nº 4.425, quando a Suprema Corte considerou que a moratória dos precatórios violaria, a um só turno, “a cláusula constitucional do Estado de Direito (Constituição Federal/CF, art. 1º, caput), o princípio da separação de poderes (CF, art. 2º), o postulado da isonomia (CF, art. 5º), a garantia do acesso à Justiça e a efetividade da tutela jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV), o direito adquirido e à coisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI)”.

Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade e permitiu uma sobrevida do regime da Emenda Constitucional (EC) nº 62/2009 para evitar um retorno à situação anterior de inadimplência generalizada, bem como indicar um caminho de transição que fosse compatível com os regramentos constitucionais. Em substituição ao regime declarado inconstitucional, foi aprovado um novo regime pela EC nº 94, de 2016.

A EC nº 94/2016 alterou o art. 101 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) e adotou modelo de amortização que definia a quitação dos débitos em atraso até o final de 2020, por meio de pagamentos mensais que correspondessem a um percentual da receita corrente líquida (RCL) suficiente para a quitação dentro do prazo e não inferior à média do comprometimento entre 2012 e 2014.

Posteriormente, a EC nº 99/2017 manteve a sistemática geral de pagamento, mas alterou o art. 101 do ADCT para ampliar o prazo de quitação para o final do ano de 2024 e para prever a exigência de que o percentual de comprometimento da RCL não seja inferior àquele praticado até 2017, quando entrou em vigor a nova regra.

A EC nº 99/2017 definiu uma série de ações capazes de viabilizar a quitação dos precatórios. Além de permitir a compensação fiscal, a utilização de depósitos judiciais, a celebração de acordos e a contratação de empréstimos, também disponibilizou uma linha de financiamento do Governo Federal aos estados e municípios para o pagamento dos precatórios em atraso, nos termos do art. 101, § 4º, do ADCT.

Não obstante o esforço jurídico e político traçado nos últimos anos, lamentavelmente, o que se observa atualmente no Brasil é a tentativa incessante e espúria de pequena parte dos gestores públicos em dar descumprimento à Constituição Federal. Contudo, é preciso frisar que o pagamento dos precatórios não é ato discricionário da administração pública e não se condiciona a “entendimento”, “interpretação” ou “conveniência”, mas obrigação decorrente de lei.

Sob o inócuo argumento de escassez de recursos para o pagamento dos precatórios, o famigerado “calote” há tanto tempo pleiteado pelos estados e municípios somente reflete a intenção de continuidade de um sistema perverso de violação dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Reitera-se que todas as soluções para a quitação dos precatórios estão descritas na Constituição Federal. Há, no entanto, outras tantas possibilidades juridicamente viáveis de estabelecer uma negociação entre credores e devedores, de forma que não fulmine os valores a serem recebidos por uns em detrimento da capacidade de pagamento de outros, como, por exemplo, (i) financiamento da dívida por bancos públicos e privados, que garante a liquidez imediata dos créditos judiciais sem comprometer o equilíbrio financeiro dos estados e municípios, uma vez os entes devedores não estarão contraindo novas dívidas, mas, tão somente, financiando dívida já existente com a possibilidade de diluição dos prazos de pagamento; (ii) Fundos de investimento em direitos creditórios que permitam a antecipação pelos bancos públicos e privados, bem como de fundos de infraestrutura com lastro em precatórios; (iii) Aval da União para empréstimos vinculado somente para financiamentos de passivos de precatórios que não configurariam novo endividamento; (iv) Criação do Certificado de Recebíveis Judiciais (CRJ), que permita aos credores a liquidez de seus créditos junto ao mercado.

Estes são apenas exemplos de ações, dentre tantas outras, que podem ser elaboradas em benefício de todos os envolvidos, desde que construídas sobre os sólidos alicerces do diálogo transparente e justo entre os Poderes.

Mais do que em qualquer outro momento do País, se faz necessária a ruptura do antiquado modelo de cumprimento das decisões judiciais pelo Poder Público.

É imperativo, portanto, reavaliar de maneira responsável e justa, as formas inovadoras e possíveis de pagamento dos precatórios, pois que representam, a um só tempo, ganhos para credores (cidadãos e empresas), devedores e, por conseguinte, para toda a sociedade.

Milton Erickson (1901-1980), o pai da hipnose moderna, usou uma célebre frase para falar sobre os benefícios da hipnose: “No veneno está o antídoto”. Esta analogia simples se aplica bem aos precatórios, porque seu pagamento não precisa representar para o ente público necessariamente um dinheiro “mal utilizado”, mas, ao contrário, a possibilidade de retorno imediato de capital à economia.

Em primeira análise, é preciso romper com o estigma dos precatórios, invertendo a lógica que permeia os bastidores dos entes públicos devedores, porque o pagamento dos precatórios significa, invariavelmente, a injeção imediata dos valores na economia e não o desbalanceamento das contas públicas. 

Porém, se de um lado a sociedade ganha, por outro lado granjeia também o próprio ente devedor, porque o pagamento dos precatórios importa em receita direta e indireta aos cofres públicos. De forma direta, em razão do recolhimento dos impostos e da contribuição previdenciária incidentes no momento do pagamento dos precatórios. E, de forma indireta, em decorrência do incremento no consumo de produtos e serviços.

Lado outro, os efeitos deletérios do inadimplemento dos precatórios pelos entes devedores acarretam graves prejuízos a milhares de credores, já tão sacrificados pela longa espera ao recebimento dos valores devidos, e representam grave descompasso com os preceitos fundamentais expostos na Constituição Federal, em afronta direta e letífera ao Estado Democrático de Direito.

A suspensão ou fixação de limitação para pagamento dos precatórios, ou mesmo a prorrogação do prazo para quitação dos estoques pelos entes devedores, como pretendido por considerável número de governadores e prefeitos, configura ato inconstitucional porque viola direitos fundamentais, em especial os direitos de propriedade, da garantia do acesso à Justiça, o direito adquirido e à coisa julgada, desatendendo aos cidadãos em situação de maior vulnerabilidade.

Abandonar os credores dos precatórios, em sua maioria idosos, pensionistas e aposentados, muitos acometidos de doenças graves que se encontram fragilizados e expostos a riscos, inclusive de vida, é uma decisão política imponderável para um País minimamente civilizado e que se autoproclama solidário.

Notadamente, o cenário atual dos precatórios no Brasil contribui com uma insegurança jurídica, que trava a economia de forma global e afugenta investidores.  E, como se sabe, a insegurança jurídica destrói a reputação de um país e reputação, tanto no mercado interno quanto no externo, se paga com juros!

Daí a necessidade crucial de um ponto final naquilo que se convencionou chamar de “jabuticaba”. É preciso repensar o sistema de forma à composição justa entre interesses jurídicos distintos e de extrema relevância: de um lado, garantir a capacidade de pagamento de estados e municípios, sem comprometer o funcionamento da máquina administrativa, e, de outro lado, assegurar o direito constitucional de propriedade dos credores ao recebimento dos valores devidos.