Técnica de sentença – língua e linguagem

15 de julho de 2011

Compartilhe:

(Artigo originalmente publicado na edição 92, 03/2008)

I – A Sentença: Técnica
Em ocasiões de estudo, revisitar conceitos é comportamento inevitável, imprescindível, para propósitos da permanente troca de experiência de que vive qualquer ramo científico.

Em linhas prévias e gerais, apesar das últimas alterações vindas a lume através de diplomas legislativos, como as da Lei nº 11.232/05, há consenso ainda quanto a se considerar a sentença o ato mais importante da função jurisdicional. Para o sempre atual Moacyr Amaral Santos:

“É este o ato culminante do processo. Proferindo-a, o juiz dá cumprimento à obrigação jurisdicional do Estado. Por ela se esgota a função.”

Ainda não está completamente assimilado o abandono da analogia entre sentença e silogismo, para a definição estrutural do mais significativo momento do processo. Para Moacyr Amaral Santos, ainda na década de 1960, este cotejo era de inegável serventia:

“Na formação da sentença, terá assim o juiz de estabelecer duas premissas: uma referente aos fatos, outra referente ao direito. São as premissas do silogismo.”

Eduardo J. Couture, embora reconhecendo que durante muito tempo a doutrina tenha concebido a sentença como um resultado das mesmas operações realizadas com premissas, na seqüência do pensamento de Calamandrei, em edição da década de 1990 de seu precioso “Fundamentos Del Derecho Procesal Civil”, assevera que esta concepção perde diariamente terreno frente à da doutrina mais recente, que resiste a ver na sentença uma pura operação lógica e no juiz um ser inanimado que não pode moderar nem a força nem o rigor da lei, segundo o apotegma de Montesquieu.

Esta forma de pensar do grande autor uruguaio não o dispensava de conceber que a sentença tem, por sem dúvida, uma lógica que lhe é particular e que dela não pode ficar ausente. Aliás, para as nossas finalidades, vale repetir que Couture, após chamar a atenção para o fato de que, na busca da verdade, o juiz atua como um verdadeiro historiador, investigador dos fatos históricos, admite que a legislação processual de muitos países das Américas descreve tão minuciosamente a forma da sentença, impondo aos juízes uma ordem tão presa ao formulismo, segundo modelos clássicos, que acaba por dar às decisões um estilo arcaico que não contribui para a compreensão do povo.

Diante dessas circunstâncias, era de se prever que, ao longo da evolução do processo, como ciência (matéria) autônoma, os teóricos emprestassem a este fator o conjunto de regras que o tornasse padronizado, disciplinado, organizado, limitado, dentro de critérios que os especialistas identificam como emanações de princípios, pressupostos e requisitos, que, como ensinou o mestre uruguaio, eleva-o ao resultado que se origina da operação a “que la doctrina llama formación o génesis lógica de la sentencia”.

Vale, a esta altura, recordar que a história do processo não dispensa a presença permanente de princípios e valores cujos contornos freqüentemente se lançam ao terreno da intangibilidade material. Assim, desde épocas não muito bem definidas no passado, para que razões filosóficas, religiosas, sociais, não tornassem o processo uma imensa biblioteca de largos e cansativos volumes, pedidos, respostas e decisões, passaram a ser parametrizados, com regras rígidas de elaboração, que, em resultado moderno, no caso da sentença penal, por exemplo, exigem até a indicação dos artigos de lei aplicados (art. 381, IV, do CPP).

Embora este não seja o momento oportuno, apenas para auxílio da exposição, rememoram-se as dificuldades pelas quais passaram os teóricos da processualística na tentativa de definir o real papel da sentença no tecido social. Liebman, em prefácio à segunda edição de seu “Eficácia e Autoridade da Sentença”, deixa bem claro que “a sentença é o ato pelo qual o Estado, titular do poder jurisdicional, cumpre sua função, distribuindo justiça entre os consociados”. Em complemento, revela, como corolário desta “descoberta” (a palavra é do cientista), que a sentença não pode ser equiparada a contrato,  circunstância a que o mestre destina o epíteto de relíquia histórica, mas sim, como ato jurisdicional, ao lado do ato legislativo, ou administrativo.

A frase inicial deste parágrafo é “os tempos mudaram…”, e, ousando embarcar no mesmo estilo, continuam a mudar – agora com mais velocidade do que nunca e com violência raramente observada antes. A configuração dos interesses muda a face do Direito. Coletivos, difusos, individuais, homogêneos, dessa ou daquela geração, lançam o juiz ao torvelinho da prática e à angústia da teoria. O juiz, como se apreendia da redação anterior do art. 463, do CPC, ao proferir a sentença, dava por cumprido o seu ofício. A despeito de não haver mudança dogmática, o magistrado, resolvendo o conflito, remanesce pondo fim a uma etapa de seu mister, mas, agora, dá prosseguimento, não mais com um novo processo de execução, mas perseguindo a realidade eficaz de seu trabalho, continuando seu ofício em direção ao cumprimento do que fora decidido, como o impõem os artigos 475-I e 475-R, do CPC.

Com este instrumental, fixa-se o propósito de estimular o raciocínio sobre o significado social de uma sentença como elemento que garante as relações e o equilíbrio da coletividade. Para o desavisado ou para o leigo, torna-se dificultoso entender que não se trata de uma determinada sentença, mas de milhares, milhares e milhares, em todo o território nacional, diariamente, elevando a função jurisdicional ao patamar de arcabouço, suporte para a segurança da existência jurídica de uma nação.
Há momentos em que esta missão se agiganta no desempenho de seu papel, corporificando a peça aglutinadora de atos e fatos jurídicos de tão amplo significado que a tornam um êmbolo dinamizador das funções sociais, alterando não apenas situações comportamentais particulares, mas impondo correção de rumo da própria história. Ficam neste patamar, por exemplo, as sentenças confirmadoras das condições humanas dos escravos; as que impuseram penalidades aos poderosos; as que, como a da condenação pelo assassínio de Vladimir Herzog, mudaram regimes e destinos.

II – Linguagem
Que nos seja permitido transitar a reboque do último pensamento de Liebman, centralizado no poder das palavras e na força da linguagem. Também este vetor, a exemplo do ar que se respira, em termos técnicos e dogmáticos, desempenha papel de importância solar no amálgama social.

Língua não é exatamente linguagem. Esta, em muitas circunstâncias, dispensa palavras. Talvez seja até mais útil e importante do que a língua no caminho do objetivo da comunicação.

Em elogiada conferência proferida na Emerj – Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro –, há dois anos, o ilustre Prof. Evanildo Bechara, falando sobre língua e linguagem, definiu esta última como o instrumento que se serve de qualquer sinal de comunicação para uma comunidade, nos termos do dicionário “Houaiss”:

“Linguagem. 1. Rubrica: lingüística. qualquer meio sistemático de comunicar idéias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais, etc.

Idioma. 1. a língua própria de um povo, de uma nação, com o léxico e as formas gramaticais e fonológicas que lhe são peculiares. Ex.: o belo i. dos filósofos gregos.

Língua. 5. Rubrica: lingüística. sistema de repre-sentação constituído por palavras e regras que as combinam em frases que os indivíduos de uma comunidade lingüística usam como principal meio de comunicação e de expressão, falado ou escrito.”

Criticando o deplorável estado das coisas, Palmer argumenta que poucas áreas de nossas experiências são tão próximas de nós ou estão mais freqüentemente conosco do que a nossa linguagem. Resumindo a importância de estudar gramática, o especialista assevera que a

“parte central da nossa linguagem (sua mecânica, seu cálculo –  qualquer outra metáfora serve) é a sua gramática. E este deve ser de interesse vital para qualquer pessoa inteligente educada. Se não houver este interesse, a culpa deve recair na forma como a matéria terá sido apresentada, ou no fracasso no reconhecimento da sua importância nesta atividade humana essencial, a linguagem.”

Estes conceitos devem ser considerados suficientes para o objetivo deste trabalho, porque, nem de longe, há a pretensão de se solver o problema científico que se aloja na definição entre língua e linguagem, o que, aliás, não nos impede de transitar pelos caminhos da correlação entre a sentença, sua técnica e os instrumentos vernaculares obrigatórios, através dos quais as decisões se materializam.

Em recente palestra apresentada na Emerj, Ives Gandra da Silva Martins, para assegurar o aspecto de perenidade que cerca o direito à vida, exaltou o uso do modo indicativo na expressão reproduzida da obra do Direito Fundamental à Vida, fazendo recordar o conceito deste modo para Napoleão de Almeida.

Assim, a própria ontologia da mecânica gramatical possi-bilita o esclarecimento de textos importantíssimos e lhes garante os resultados. Dificilmente se poderia conjecturar sobre melhor oportunidade para retratar o papel gramático intrínseca e extrinsecamente na peça da comunicação.

Em artigo sobre o idioma, colhe-se do “Jornal do Commercio”:

“A partir da Internet, houve uma revolução nos meios de comunicação. O uso do computador exige bom senso no ambiente de trabalho. Não é nada profissional receber uma mensagem de alguém que você nunca viu na vida com saudações do tipo “oi fofa” ou “oi gato”. Gafe maior é fazer gracinha, escrevendo como um teenager, por exemplo: “o evento foi tudooooo de bom”, e por aí afora.

Escrever de forma abreviada, como trocar você por vc, quando por qdo e hoje por hj, só se a pessoa tiver 15 anos.”

O episódio é ilustrativo de uma verdade lingüística inafastável: em sociedade, somos, natural e inevitavelmente, ao menos, bilíngües. Usamos um vocabulário para o ambiente de trabalho e outro na intimidade do lar. São reconhecidas outras modalidades de comunicação, dependentes da ambiência em que os interlocutores se encontram.

De acordo com a sistemática exposta por Bechara, a estruturação lingüística se estende através de três planos: universal, histórico e individual.

“O primeiro é o plano universal. Chama-se universal porque é o plano que está acessível a todas as pessoas que nascem com todas as suas faculdades psicofísicas e, portanto, estão devidamente preparadas para entrar neste domínio da universalidade da linguagem (…) é o plano do pensar, é o plano de trabalhar com as regras elementares do pensar.

O segundo plano da linguagem é o plano histórico, é o plano das línguas (…). Porque uma língua não é nada mais, nada menos, que o mergulho do homem na sua historicidade.

O terceiro plano é o plano individual e se chama individual porque falamos sempre com alguém. Falamos sempre em uma determinada circunstância. Falamos sempre a respeito de um tema. Este entorno do discurso nos leva sempre a adequar a nossa linguagem à pessoa que nos ouve, ou à pessoa que nos lê (…) é uma característica da linguagem que se chama alteridade.”

Seja qual for o enfoque oferecido à matéria, um ponto comum aproxima os fatos que parecem tão dispersos na linha científica: a necessidade de comunicação. Para este particular, cumpre trazer à tona diferenças inarredáveis da evolução lingüística: mesmo que não haja palavra adequada, através de sinais ou sons, alguém pode se comunicar com alguém, não raro criando termos e expressões populares, que, dependendo da aceitação, acabam por integrar o vocabulário oficial e até logrando promoção para os escalões superiores do falar culto. Este fenômeno tem sido descrito com a expressão do inglês upgrade.

A força da linguagem, que evolui velozmente, é de tal ordem que, em pouco tempo – não superior ao espaço de uma década –, muitos desses comentários deixarão de fazer sentido, porque, de forma gradual e lenta, expressões que nascem da necessidade de comunicação popular incrustam-se no idioma padronizado, abandonando o estado de gíria, passando a gozar de qualidade aceita no cabedal do linguajar comum, se impondo, como termos e vocábulos inevitáveis do falar cotidiano, a ponto de se tornarem indispensáveis à compreensão.

Numa leitura ocasional do Código de Trânsito Brasileiro, Lei no 9.503/97 – diploma de amplo espectro de interesse geral, atingindo a todas as camadas e níveis sociais –, em muitas passagens, o legislador foi obrigado a esclarecer, com tradução simultânea, o significado, por exemplo, de “guia de calçada”, lembrando tratar-se do comuníssimo “meio-fio”, art. 48; da mesma forma que, nas definições e conceitos do Anexo I, explica que catadióptrico quer simplesmente dizer “olho-de-gato”.

O uso de expressões específicas de um determinado momento em determinado local, nem sempre pode obedecer a controles rígidos de adequação.

Embora fosse inimaginável, como lembra Bechara, num deslize lingüístico em condolências pela morte do pai de alguém, se pudesse ouvir: “Meus pêsames por seu pai ter ‘batido as botas’”, o fato é que, descontado o exagero de tendência pedagógica, em alguma situação, os falantes podem adiantar o caso restrito de um determinado falar, empregando a linguagem coloquial em circunstâncias ainda não receptivas da modernidade. Tudo estruturalmente correto, mas lingüisticamente inadequado.
Navegar nesses mares não muito serenos da comunicação é apenas uma das dificuldades que tornam o exercício profissional do Direito, em qualquer de suas facetas, mais tormentoso e desafiante. A dependência direta da comuni-cação e do fiel resultado de seu recebimento, ou transmissão, impõe ao operador das mecânicas procedimentais, embora cingido aos termos dos instrumentos processuais, o redobro do poder criativo, para, sem desertar das exigências vetustas das regras e normas acumuladas ao correr dos tempos e sob domínio de fórmulas estruturais seculares – todas voltadas para os objetivos de clareza e segurança a que aludia o rei D. José, ao editar a Lei da Boa Razão –, cumprir o seu relevante papel no desenvolvimento social.

Como pensam os juízes que pensam
Este título, na verdade, é o subtítulo de uma obra que tenho utilizado exaustivamente em atividades intelectuais desta natureza: o senhor Herrendorf, professor de Direito, para abordar o difícil tema da fragilidade judicial no México, faz um trabalho de retrospectiva histórica e de comparação entre sistemas judiciais, examinando a ontologia da existência do cargo de magistrado, traçando um minucioso mapa da atividade – o que não dispensou a análise do estilo de pensamento dos juristas e da fenomenologia da sentença, com surpresa não investigado suficientemente.

Apesar disso, não há como se negar que a ciência jurídica se desenvolve através de um modo próprio, diverso do das outras ciências – o que é percebido pelas expressões que os juristas empregam para dar a conhecer suas idéias. As sentenças são as fórmulas mais peculiares de que se utilizam os juristas para expor sua maneira de pensar – nunca deixou de haver alguém, um sábio, um conselho de decanos ilustres, um príncipe, um oráculo, que fizesse o papel de julgador. Pode não ter havido doutrina, mas Direito e julgador jamais deixaram de se encontrar.
O juiz não deixa de ostentar sua condição humana para exercer suas funções. Como já se deixou lavrado, ser pensante que é, não pode se afastar de preceitos ideológicos, ainda mais que a axiologia – um dos pilares da filosofia jurídica, ao lado da ontologia, da lógica jurídica formal e da lógica jurídica transcendental – dirige as condutas que se desdobram em direção a valores, questão que se tornou o centro das atenções atuais do Direito.

De como não abandonar a técnica e ao mesmo tempo não desertar da criatividade. As fontes do Direito e os julgados
A despeito de conhecidas diatribes filosóficas sobre o que se considera fonte do Direito, a teoria que divide a matéria em dois significados parece ter aceitação genérica: fontes de criação e produção, e fontes de cognição. Para estas últimas, segundo a doutrina italiana, a tarefa está em reconhecer nos textos a norma jurídica. Já para as demais, o núcleo é a dinâmica que leva ao ordenamento, ressaltando-se o seu surgimento e dos preceitos jurídicos. O nosso sempre lembrado Caio Mário da Silva Pereira, com a visão de lince futurista, opta por considerar a jurisprudência como fonte informativa ou intelectual do Direito, descrevendo o papel dos tribunais na sua vivificação e adaptação às transformações sociais.

Aqui está o ponto mais importante para a reunião das três componentes do título do trabalho.

As razões históricas, geográficas, temporais, sociológicas, filosóficas e doutrinárias conduzem o julgador a um tipo de linguagem característica da profissão. Ainda assim, a inevitabilidade da arte de escrever, muitas vezes, se anuncia impingindo ao magistrado fórmulas pouco usuais de manifestação, mas justificáveis diante deste fenômeno técnico da produção científica humana.

Assim como a técnica jurídica prevista para a redação de sentenças é rígida, por outro lado, também a mecânica vernacular (verna – escravo nascido na casa do senhor, no original) exigiu sempre propriedade de termos (palavras), respeito à gramática (do contrário, sem um padrão gramatical, em muito pouco tempo, a comunicação estaria prejudicada, a necessitar de um novo Champollion) e a acertada disposição da frase (uma bela professora pode não ser uma professora bela). O conselho de Freire aos estudiosos da língua ainda prevalece:

“O difícil do escrever está em observar a pureza vernácula, que compreende não só, como entende Castilho Antônio, as palavras genuínas, tomadas na verdadeira acepção, e a correção gramatical no uso delas, mas ainda a disposição dos vocábulos e frases segundo os costumes, gosto e índole do idioma.”

A evolução científica e a lingüística – de como  atuar diante destes dois vetores que se desen-volvem em progresso de âmbito comum. De como contornar o formalismo, sem trair o idioma ou fracionar a função judiciária
A língua mantém um padrão que resiste ao tempo… “To be or not to be” já se aproxima de quatrocentos anos e mesmo quem não fala inglês (e até quem fala) não deixa de perceber o significado deste símbolo da dúvida existencial hamletiana.

Nem se há de censurar o juiz que se expressa em poesia ou se utiliza de expressões modernas de aceitação genérica. Há pouco tempo, um magistrado empregou “vou direto ao assunto” de forma a deixar bem claro que não ia perder tempo com circunlóquios. Entendi muito bem e todos que leram também. Pode não estar de acordo com o padrão mais ortodoxo da linguagem jurídica, mas dentro de uma década será expressão considerada erudita.

Aí vai a colaboração — intento único deste lembrete expositivo — para os que escrevem e para os que lêem, com a mensagem de otimismo no sentido de que a comunicação não será prejudicada pelas alterações evolutivas do linguajar, nem o universo dos operadores do Direito diminuído com a técnica da manutenção das regras mínimas da gramática, da retórica ou da dialética, exigindo apenas dos profissionais um pouco de atenção a estes parâmetros que protegem a clareza do que se diz ou se escreve.

Para um término de trabalho, não se pode deixar de trazer a exame o fato inegável de que o próprio Direito passa por transformações dogmáticas que, no dizer de Sanchís, se alojam entre crises de positivismo legalista e do descrédito da jurisprudência conceptual, com o perigo de prevalência do irracionalismo, que ameaçava apoderar-se de todo o processo de interpretação ou aplicação jurídica do Direito, em última instância. Para a empresa de resgate do controle sobre o reacionarismo jurídico e sobre a argumentação judicial, era necessário assumir o ensino da crítica antiformalista e reformular os termos da exegese para explicar a atuação dos tribunais na solução dos conflitos. Tratava-se de um postulado fundamental do sistema de legitimidade do Estado de Direito. O que se propunha era formar o processo de decisão judicial de acordo com certos critérios objetivos e ideologicamente plausíveis, de modo a não ceder passo à pura arbitrariedade subjetiva, inaugurando um novo horizonte completamente novo e aberto à ação transformadora e ideológica da judicatura. A parte central da interpretação, ao menos a que se mostra como mais relevante na análise jurídica, consiste na atribuição de um significado ao enunciado normativo previamente selecionado, o que não é uma mera questão de fato, visto que as leis estão formuladas com uma linguagem natural e, obviamente, todo enunciado de uma língua natural se acha, em certa medida, contaminado de indeterminação semântica. O juiz, que não forma parte de uma comunidade lingüística perfeita e homogênea, é chamado a eleger dentro do universo da determinação, sem praticar atos de asserção, mas sim, diretivos, não justificáveis com referência a fatos, e sim, a valores.

Neste exercício nada simples, os magistrados se deparam com fórmulas de comunicação variadas, não podendo se afastar da inevitabilidade de características próprias de todas — todas, vejam bem — as áreas de atuação (artes, ciência, filosofia, política), sendo que, a propósito de política, como alguém já disse com uma surpreendente franqueza, “a moral política não corresponde à moral jurídica”. Para ficar bem marcada a imensa dificuldade interpretativa da linguagem, ao menos no tocante a este último segmento, sirvo-me de uma assertiva que pode muito bem atuar como advertência conclusiva com respeito a tudo que quisemos expor no atinente à delicadeza do tema, visto que o juiz há de transpor os umbrais das vontades subjacentes no âmago psicológico para extrair, em muitas e muitas circunstâncias, o lírio do lodo: em nosso tempo, o discurso político e os textos são largamente a defesa do indefensável, porque, como incisivamente expõe Orwell, “a linguagem política é estruturada para fazer mentiras parecerem verdade; assassinatos, respeitáveis, e dar aparência sólida ao vento”.

Conjurar mentiras, condenar homicídios, revelar a realidade da vida trazendo a verdade ao proscênio, reduzindo os atentados contra a vida ao reles patamar de crime e concretizar as genuínas aspirações dos homens de bem, custe o que custar, através do uso desta maravilhosa ferramenta, a sua língua, é a missão ideológica com que o verdadeiro juiz materializa seu sacerdócio.

Antônio Carlos Esteves Torres
Desembargador do TJ/RJ