Temos de acabar com a fraude

5 de março de 2005

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Entrevista Ministro Carlos Mário Velloso

O Tribunal Superior Eleitoral é formado por três ministros do Supremo Tribunal Federal, dois do Superior Tribunal de Justiça e dois advogados indicados pelo STF. O ministro Carlos Velloso, há quase 15 anos no Supremo, assume pela segunda vez a presidência do TSE, no sistema de rodízio entre os integrantes do tribunal oriundos do STF, com base no critério da antigüidade. No primeiro mandato (dezembro de 1994 a maio de 1996), Velloso diplomou Fernando Henrique Cardoso na Presidência da República, como sucessor de Itamar Franco, e criou uma “Comissão de notáveis” que propôs uma profunda reforma do sistema eleitoral. Desta vez, Carlos Velloso terá um mandato inferior a um ano, já que, em janeiro de 2006 completa 70 anos, e tem de se aposentar compulsoriamente. Mas acha que vai ter tempo de dar o “pontapé inicial” para rever a questão da identificação do eleitor, que se habituou à urna eletrônica, mas usa até hoje um título sem foto, sem números de carteira de identidade e de CPF. Quer também rediscutir os trabalhos da comissão de 1995, sobretudo no que diz respeito à reforma partidária e ao financiamento das campanhas. Velloso acha que parlamentar que muda de partido deve perder o mandato, e que o país estaria muito melhor com cinco ou seis partidos realmente fortes, acabando-se com os de “aluguel”. A seguir, os principais pontos de entrevista concedida pelo novo presidente do TSE ao jornalista Orlando Carneiro.

No início deste seu curto segundo mandato na presidência do TSE qual será a sua prioridade?

– Na verdade, são duas prioridades. A primeira é começar a rever para valer a questão da identificação do eleitor. Vai ser um pontapé inicial, porque a revisão que imagino vai levar alguns anos. Temos um sistema de voto eletrônico infenso à fraude, já que afasta a mão do homem da apuração. O “mapismo’’ já foi enterrado. Mas quanto à identificação do votante, há ainda muito a fazer. Os atuais títulos eleitorais não têm fotos e outros dados de identificação. Nem os números da carteira de identidade, nem os do CPF. Há sempre o risco de uma pessoa votar por outra. Essa eventual fraude não é significativa num universo de mais de 100 milhões de eleitores. Vale dizer, não influiria nos resultados das eleições em geral. Mas temos de acabar com qualquer possibilidade de fraude, por menor que seja.

Seria um título eleitoral semelhante a uma carteira de identidade? É possível fazer essa revisão num prazo relativamente curto, ou pelo menos em médio prazo?

– Penso num novo título que contenha impressão digital e até tipo sangüíneo, além dos números do RG e do CPF. Todas essas informações estariam num chip. Ao passar o “cartão’’ por uma máquina acoplada à urna eletrônica, uma tela mostraria a foto do cidadão e os demais dados de identificação. Mas é claro que, para isso, é preciso fazer um novo recadastramento do eleitorado. Podemos pensar já numa primeira fase, em que seriam recadastrados entre 10 e 15 milhões de eleitores. Pretendo deixar tudo pronto para que o recadastramento possa começar em um Estado com grande eleitorado, como São Paulo, Minas Gerais ou Rio Grande do Sul. O processo tem de ser em fases, como foi o das urnas eletrônicas. Nas eleições de 1996, um terço do eleitorado teve acesso à novidade. Em 1998, foram dois terços dos votantes. Em 2000, o pleito já foi todo informatizado.

E qual é a segunda prioridade?

– Rediscutir os trabalhos daquela comissão de juristas que reuni em 1995 para propor uma profunda reforma eleitoral no país. A comissão foi integrada, entre outros, por Miguel Reale, Celso Bandeira de Melo, Camen Lúcia Antunes Rocha e Orlando Vaz Filho. A mídia chamou-a de “comissão de notáveis’’. Dividimos o grupo em subcomissões, e os temas eram as reformas partidária, do Código e do sistema eleitoral, o financiamento das campanhas, a adoção de uma lei eleitoral permanente e do voto informatizado.

Quatro eleições depois, a única grande meta alcançada foi a urna eletrônica?

– Foi. As outras conclusões da comissão não chegaram a vingar, embora a atual Lei Eleitoral, de 1997, que tem um caráter praticamente permanente, seja em grande parte fruto do trabalho daqueles juristas.

A reforma partidária está cada vez mais na ordem do dia, com o troca-troca constante de partidos promovido pelos deputados. Sobretudo neste início do ano, com a eleição surpreendente do novo presidente da Câmara, pertencente a um partido menor, e às vésperas de uma reforma ministerial. O senhor acha possível uma reforma partidária séria na atual conjuntura política? Não é algo meio utópico?

– A reforma partidária inclui-se, é claro, no âmbito maior das reformas políticas. Tendo em vista o panorama atual, acho que tem muito de sonho, sim. Mas quanta coisa grande não se realiza a partir de um sonho? Acho que é preciso fortalecer os partidos, acabar com as legendas de aluguel e estabelecer um mínimo de fidelidade partidária. Quem trocar de partido tem de perder o mandato.

Mas não é uma medida muito drástica? Afinal, um parlamentar pode até mudar de linha ideológica no curso de uma Legislatura…

– Deve-se tomar essa medida drástica para evitar o troca-troca e acostumar o povo a votar não apenas em pessoas, mas também em programas. Temos de ter poucos partidos. Mas partidos fortes, com programas consistentes. Penso que poderíamos ter cinco ou seis partidos políticos no Brasil. Não mais do que isso.

Aquela “comissão de notáveis’’ tratou também da questão do financiamento das campanhas eleitorais. Qual é a sua posição a respeito do assunto?

– Já temos financiamento público das campanhas com o horário eleitoral gratuito na televisão e no rádio. Todos têm acesso a essa campanha, e a exposição depende, evidentemente, da representação partidária. A propaganda é gratuita para os partidos e os candidatos, mas não para a União, que compensa as emissoras com incentivos fiscais. É preciso que esses incentivos sejam também destinados ao financiamento geral. Como? Mediante a concessão de incentivos fiscais àqueles que fizerem doações para um fundo dos partidos políticos. Esse fundo seria empregado no financiamento das candidaturas, sob gestão dos partidos. As entidades doadoras teriam interesse em declarar as doações, para receber incentivos fiscais.

O Estado não contribuiria para esse fundo?

– Sou contra o despejo de dinheiro público nas campanhas eleitorais. É desperdício, porque o Estado tem outras prioridades muito mais importantes, como educação, saúde, crianças abandonadas, brasileiros sem teto, urbanização de favelas.

O senhor considera adequado o dispositivo constitucional que permite a reeleição do presidente da República, de governadores e prefeitos?

– Eu seria mais favorável a um mandato mais longo, seis anos, sem possibilidade de reeleição. Seria mais adequado a um país como o Brasil. A tradição republicana não é a da reeleição. A meu ver, deveria ser mantida a reeleição para quem está no cargo e promover-se nova emenda constitucional restaurando a proibição para o sucessor.

E a idéia de se realizar eleições para todos os níveis de uma vez só?

– Seria ideal, a meu ver, até em termos de custos. Mas é difícil que se consiga isso, a não ser com a prorrogação dos mandatos. Mas é menos pior prorrogar mandatos do que reduzi-los.

Quatro meses depois das eleições municipais, ainda há uma dezena de cidades em que não se sabe ainda se os prefeitos eleitos serão confirmados. Em Novo Hamburgo (RS), cidade de mais de 250 mil habitantes, por exemplo, vai haver novo pleito no próximo dia 6, porque os registros dos dois candidatos mais votados foram anulados, por prática de crimes eleitorais. Não há como evitar situações desse tipo, que se repetem em todas as eleições municipais?

– Essas situações são inevitáveis por causa dos recursos de decisões dos tribunais regionais eleitorais ao TSE e, às vezes, até ao Supremo. Temos mais de 5.500 municípios. Se apenas pouco mais de dez desses municípios ainda estão sem prefeitos eleitos, o percentual é ínfimo, acho que 0,25%. Esse percentual mostra que a Justiça eleitoral está funcionando.

Mas os recursos não são demasiados e geralmente de natureza protelatória?

– Os recursos propriamente eleitorais, não. O que há é uma tentativa de levar para o processo eleitoral aquela ‘’processualização’’ típica do Direito Civil. Daí o número exagerado de medidas cautelares, de embargos, de agravos etc., que acabam mesmo por protelar e tumultuar o processo eleitoral. Mas o processo eleitoral propriamente dito, puro, deve servir de exemplo para os demais ramos do Poder Judiciário.

O senhor tem no horizonte uma possibilidade de ter o mandato normal de dois anos como presidente do TSE. Basta que o Congresso aprove, até o fim do ano, o projeto de emenda constitucional que aumenta de 70 para 75 anos a idade-limite para a aposentadoria compulsória dos servidores públicos. Qual é a sua expectativa? O projeto – que já está na Comissão de Constituição e Justiça do Senado – tem chance de ser aprovado?

– Dou-me por impedido de responder a essa pergunta, porque teria interesse direto no assunto. Mas sinto-me com muita disposição, com saúde física e mental para o trabalho. Tanto que, se aposentado compulsoriamente em janeiro de 2006, vou dedicar-me à vida acadêmica e a palestras. Tenho até um convite para lecionar no exterior. Mas estou mais disposto a ficar por aqui, na área acadêmica, e dedicar-me também à consultoria jurídica.