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Um manifesto de mobilização

5 de junho de 2001

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(Discurso de posse do Ministro Marco Aurelio Mello na Presidencia do STF)

A nova organização mundial das relações humanas exige do Poder Judiciario brasileiro o redimensionamento de seu próprio papel, compreendendo-se e, mais do que isso, comprometendo-se definitivamente como responsavel por prestação jurisdicional mais ampla e eficiente, mais afinada com uma realidade afeita a vertiginosas, surpreendentes e constantes mudanças. Ja muito distante esta a epoca em que incumbia precipuamente ao Judiciario dirimir conflitos de interesses individuais, em relações tipicas de direito civil. Num primeiro instante de transformações econômicas radicais, a sociedade brasileira, mormente a comunidade jurídica, reivindicou e conseguiu consolidar e efetivamente fazer valer os direitos sociais. Enorme foi, entao, o avanço promovido pela criação da Justiça do Trabalho, da qual sou egresso e de onde provem toda a minha formação humanistica e profissional. A repercussão desse fato foi sentida em todas as camadas da população, principalmente nas mais desprotegidas. Uma nova organização social foi aos poucos se delineando, ate se impor, definitivamente.

Pois bem, no alvissareiro inicio do terceiro milênio, ja passa da hora de enxergar que modificações se afiguram indispensáveis para que o Poder Judiciario cumpra o papel constitucional que lhe foi destinado: e tempo de acurar-se o olhar para a necessidade de a Justiça no Brasil ultrapassar uma nova fronteira, desta vez voltada a preservação das garantias dos direitos humanos, aqui considerados em significado mais amplo, a contemplar direitos coletivos, dos povos, da humanidade. Numa epoca em que o tecnicismo exacerbado, a quase obsessiva especialização das ciencias, a danosa impessoalidade das relações econômicas contemporaneas promovem desvirtuamento impar de valores, convém a toda a sociedade, sobretudo aos magistrados, restabelecer o enfoque no ser humano. Por dever de ofício, cabe a nós, magistrados e operadores do Direito, nao medir esforços para colocar o homem como cerne, principio e finalidade ultima de todas as ações, e nao o progresso vazio dos modelos econômicos importados, nao a produtividade cada vez maior, a transformar trabalhadores em maquinas robotizadas, nao os contratos tecnocratas, nao os interesses corporativos, nao a letra inerte de legislações muitas vezes obsoletas. Nao, de forma alguma. A ninguem mais escapa que o Poder Judiciario nao e um mero aplicador de lei, pois deve, acima de tudo, indicar e consagrar o que e justo.

E nao e justa a opressao do homem pelo homem. Ate aqui, a festejada evolução tecnológica nao serviu para beneficiar a maioria. No Brasil, pais que lamentavelmente disputa as primeiras colocações no rol dos grandes concentradores de riqueza, os abismos sociais aprofundam-se dia após dia. As garantias constitucionais a poucos alcançam – e ínfima a porcentagem dos brasileiros que tem acesso ao Judiciario. Nao obstante, a esta altura, a ninguem se perrnite ignorar que, principio basico elementar, sem o qual nao sobrevive a mais incipiente democracia, a Justiça deve ser acessivel a todos. Mais do que isso: a garantia de acesso e de exercicio de direitos e responsabilidade tambem do Executivo e do Legislativo. E tempo, assim, de contar-se com o Estado suficientemente estruturado e aparelhado para tanto; e tempo de proporcionar­se, aos menos afortunados, de maneira iniludivelmente eficaz, a assistencia juridica integral e gratuita; e tempo de a população ja poder dispor dos essenciais serviços da Defensoria Publica, nos Estados e no ambito da Uniao, em moldes satisfatórios; e tempo, afim, de as garantias constitucionais saírem do papel, revelando-se como instrumentos concretos e ao alcance de todo e qualquer cidadão. Ao Poder Judiciario cumpre, por sua vez, ao interpretar a lei, ato de vontade, assumir a cota de responsabilidade que lhe cabe na promoção da cidadania e da justiça social.

O juiz de 1° grau e o órgão revisor competente hão de ter sua jurisdição valorizada e fortalecida

As distorções que ora atingem o Poder Judiciario resultaram de antigos e conhecidos equivocos diuturnamente retroalimentados. Um deles, a instabilidade normativa, desaguou numa avalancha de processos, circunstancia que acabou por distrai-lo do papel ativo que lhe compete na imprescindivel preservação dos direitos humanos. E inegavel que a profusao de processos amesquinhou o papel do Supremo Tribunal Federal, que não pode ficar reduzido a simples condição de quarta instancia deliberativa. Urge que a atribuição constitucional a si destinada desde os primórdios da Republica seja melhor aquilatada, em beneficio do aprimoramento da prestação jurisdicional. A função da Suprema Corte não e julgar, caso a caso, milhares de demandas identicas, repetidas, como que a prestigiar, com sua intervenção, o que foi decidido nas outras importantes instancias judiciais. O juiz de primeiro grau e o órgão revisor competente hão de ter sua jurisdição valorizada e fortalecida. A atuação dos tribunais superiores deve ser reconhecida pela envergadura da causa, afastando-se a automaticidade na interposição do recurso. Cabe ao Supremo o papel de Corte constitucional, afirmadora de valores essenciais, inafastáveis, a serem reverberados por todo o Judiciario de maneira sintonizada com o tempo, com as necessidades da população, com o reequilíbrio das posições, de forma a fazer justiça social, sem a qual não ha Justiça nem, portanto, Estado Democratico de Direito pleno.

Eis um aspecto em que se esbarra sempre na velha e repisada questao, entrave que aborrece só a simples lembrança Rui afirmava que Justiça morosa não e Justiça. De fato, e lastimável que a lentidão da Justiça brasileira sirva ate mesmo de trampolim para o escárnio de autoridades constituídas, circunstancia que desgasta sobremaneira o Judiciario e enfraquece todas as instituições. O socorro a Justiça e possibilidade que muitas vezes soa para o cidadao comum como ameaça de nao-solução de conflitos, um caminho para nao prevalecer o direito, quando deveria ser precisamente o contrario. E, nesse ponto, a postura adotada pelo Estado e de molde a delimitar o cerne da questao. Infelizmente, nas ultimas decadas, o Estado brasileiro, ao inves de voltar-se ao atendimento dos interesses primarios coletivos, menospreza-os, resultando dessa inadmissível atitude a constatação de que hoje figura, como parte passiva, em numero desmedido de processos, o que vem a ser flagrante contra-senso, porquanto o Estado existe para viabilizar a almejada segurança jurídica, o bem-estar geral. E ja que o Estado tudo pode – legisla, executa as leis e julga as controvérsias surgidas das multiplas relações juridicas -, que o faça bem; que atue com os olhos voltados a certeza de que o cidadão comum tem como para metro a conduta das autoridades legitimamente constituidas. As estatisticas bem demonstram o esquecimento dessas premissas, no que revelam, por exemplo, a inusitada tramitação, nesta Corte, ante o descumprimento contumaz de senten~as judicia is, de cerca de tres mil processos que envolvem pedidos de intervenção nos Estados­membros, dos quais aproximadamente dois mil concernem ao maior deles, Sao Paulo, sem falar-se naqueles Ligados ao inadimplemento dos Municipios, porque da competencia originaria dos Tribunais de Justiça. Enquanto isso, proliferam os instrumentos normativos, como se o formal servisse ao conserto das mais caóticas situações, como se no Brasil precisássemos de mais e mais leis, e nao de uma mudança cultural, de homens de boa vontade, especialmente dirigentes cumpridores das normas vigentes. Em sintese, numa visao panoramica, percebe­se facilmente o Estado brasileiro, de um lado, como legislador excessivo que nao raras vezes ignora o metodo e a oportunidade, e, na outra ponta, como agente publico que nem sempre prima pelo rigoroso respeito a legislação em vigor. No meio deste emaranhado de funções mal interpretadas ou mal compreendidas, vê-se o Judiciário, hoje completamente engessado tanto pela inoperância de um sistema processual falido, como pela deficiência de recursos humanos, sobressaindo o reduzidíssimo numero de juízes em atividade.

Diversas soluções ja foram aventadas por destacados juristas e laboriosos legisladores para reverter tao embaraçoso quadro. Fala-se, por exemplo, na reforma do Judiciario, na institucionalização da arbitragem, na sumula vinculante, ferra­menta incompatível com a espontaneidade inerente ao ofício judicante, que, definitiva­mente, longe esta de ser mera tarefa burocratica, como que reduzida a simples aposição mecanica de carimbos oficiais, nos quais se converterão, sem nenhuma duvida, esses verbetes de nome pomposo. Ha tambem os que apontam para a valorização de ações coletivas como forma de racionalização dos trabalhos jurisdicionais e proteção de interesses que se irradiam e que, individualmente, encontram dificuldades para se tornarem prevalecentes. Tais ações, a luz muitas vezes de interpretação excessivamente formalista, acabam não se confirmando como instrumentos a disposição para fazer valer direitos ja consolidados, fenômeno que repercute em preocupante perda de balizas e, consequentemente, em crescente desrespeito a principios basicos norteadores de uma sociedade que se almeja democrática. Todos parecem concordar, porem, que e precise diminuir o extenso rol dos recursos ora existente, homenageando-se o principio da razoabilidade, a direcionar a presunção não do desacerto da decisão proferida, mas da plena harmonia com o direito posto; todos admitem que e necessário alterar normas processuais em vigor para simplificar os ritos hoje observados, desburocratizando o processo e fechando a porta aqueles que, de maneira distorcida e pouquíssimo etica, apostam na morosidade da Justiça, na postergação do desfecho das lides. Ha de buscar-se a conciliação dos valores “justiça” e “segurança juridica”, sem prejuízo, e certo, para o exercicio do direito de defesa. Todavia, a julgar pela rotina em que se tornou o ate de recorrer a uma instancia superior, as garantias processuais parecem sobrepor-se as de direito material. Nao ha mais como observar passivamente que a ineficiência na prestação jurisdicional venha a afastar a confiança no Judiciário, derradeira trincheira da própria democracia.

Para quem esperava um discurso de posse, longe aqui um manifesto de mobilização.

Cumpre ao Supremo Tribunal Federal discernir sobre o modo de aprimorar a forma de acesso de todos a prestação jurisdicional. Entretanto, para afastar definitivamente essas antigas mazelas, esse despropositado estorvo, a repercutir no desvirtuamento das atividades precípuas de cada Poder da Republica, e imprescindível, antes de tudo, que a sociedade brasileira mobilize-se junto com o Poder Judiciario para refletir sobre a maneira de resolver o problema com os instrumentos disponiveis, sem acenar-se com modificação que, a depender de tantas condicionantes, nao se torne factível a curto prazo.

Nesse ponto, convem estimular a mudança de atitude do Poder Judiciário que, em paralelo com a organização da sociedade civil, deve compreender a democracia participativa como o melhor e mais adequado meio para a definição de novas diretrizes. Impõe-se a reorientação do Judiciário nacional, para exercer ativa­mente atribuições que possibilitem a realização do objetivo principal e ultimo: a concretização inquestionável, e nao apenas teórica, virtual, da garantia de acesso a Justiça a todos, indistinta e eficazmente, sem o que qualquer democracia nao passa de caricato arremedo ou mera utopia.

Senhores, para quem esperava um discurso de posse, longe aqui um manifesto de mobilização dos operadores do direito e de todo o corpo social, em favor da alteração de mentalidade do Poder Judiciario e da própria comunidade juridica, para que participem conosco ativamente da reflexao sobre a urgencia desta tarefa, sobre o modo como podera ser realizada, bem como os valores nos quais se assentara. Cada um ha de agir no ambito do próprio mister: as faculdades de direito, na pesquisa e definição tecnica, no ensino da etica e da filosofia que deverão nortear, agora e no futuro, a aplicação do direito em novos tempos, para tanto contando com o entusiasmo, o idealismo e o labor incessante dos doutrinadores, verdadeiros artífices do conhecimento como condição intrínseca do progresso e, assim, do bem-estar geral; o combativo Ministerio Publico e a Defensoria Publica, na proteção da sociedade e dos hipossuficientes; a Ordem dos Advogados, na definição de causas em que possível incluir pleitos ainda inéditos no Judiciário; os juízes, materializando o ideal de Justiça e, desse modo, honrando a missão sagrada de julgar os conflitos de interesses postos ao seu discernimento, sem cuidados outros com ideologias de ocasião ou eventuais repercussões neste ou naquele segmento social, mas tendo em vista sobretudo o ministério que elegeu: dar a cada qual o que de direito.

Estejam certos os senhores dos desmedidos esforços da Presidência do Supremo Tribunal Federal no sentido, desde ja, da unidade cada vez maior do Judiciário, predicado indispensável a definitiva afirmação deste Poder como aquele que, a partir de nossa Lei Maior, a todos submete, a fim de bem desincumbir-se da precípua função constitucional a si reservada: a preservação inconteste da segurança na vida gregária. A política do Judiciário foge ao sectarismo; a política do Judiciário ha de ser, sempre e sempre, institucional, voltada aos interesses maiores do povo brasileiro.

Agradeço, em meu nome e no do Vice­Presidente – Ministro Ilmar Galvão -, as palavras estimulantes dos oradores desta tarde – do Ministro Celso de Mello, que buscou exprimir o sentimento da Corte; do Procurador-Geral da Republica, Professor Geraldo Brindeiro, e do Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Dr. Rubens Approbato Machado, expressões vivas da magistratura, do Ministério Publico e dos advogados. Agradeço, na pessoa do Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Professor Fernando Henrique Cardoso, a presença de todos que aqui estão, reafirmando, uma vez mais, a crença inabalável na supremacia da Constituição Federal.