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Um retrocesso inaceitável

5 de maio de 2004

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Com exceção da Carta da ditadura getulista de 1937, todos os diplomas constitucionais brasileiros rejeitaram o princípio da reeleição, em qualquer instância. Em 1891, 1934, 1946, 1967 e 1969, a recondução aos cargos do Executivo e do Legislativo não era prevista, nos diversos textos, justamente por ser considerada instrumento concentrador de poder e por ir contra as normas que norteavam a democracia já naqueles tempos. Somente em 1988, os legisladores tiveram a preocupação de vedar expressamente a reeleição, inclusive — e principalmente — para as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Agora, durante o jogo, querem mudar as regras por meio de uma emenda constitucional que tramita na Câmara.

Mas, como ensina o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, em países onde a consciência de cidadania e dos valores democráticos esteja ainda em processo de evolução, o poder conferido pela reeleição potencializa enormemente o poder: “… propicia aliciar, cooptar ou submeter indivíduos, instituições, segmentos sociais ou poderes da República, seduzidos por vantagens ou subjugados por pressões diversas …”. Em artigo intitulado “Reeleição e Moralidade Política”, o professor ainda lembra que é dever dos dirigentes da Nação, manter, defender e cumprir a Constituição (art.78), “… sob pena de qualificar-se como um perjuro, seu poder de iniciativa para emendas constitucionais (art. 60, 2º) jamais poderá ser exercido em proveito próprio …”.

As regras atuais para as eleições para as presidências da Câmara e Senado são baseadas em princípios democráticos, que têm como pilares a alternância de poder, a renovação das lideranças políticas e a reoxigenação do comando do Legislativo, entre outros. Toda reeleição fora de época transmite a impressão de que o mandato foi ampliado artificialmente para favorecer determinado cenário e perpetuar o poder nas mãos de poucos. Além disso, não faz parte da tradição do Congresso a reeleição no meio da legislatura. Isto certamente irá passar para a opinião pública a impressão de casuísmo. Uma reeleição a fórceps pode gerar um verdadeiro curto circuito nas relações entre os partidos. Outro aspecto que deve ser levado em conta é a polêmica que o assunto gera em todos os partidos, sejam eles da base ou da oposição. Muitos já se posicionaram contrariamente, sejam através de suas executivas, sejam através de suas bancadas.

A reeleição para as Presidências do Senado e da Câmara no meio da legislatura – o STF já considerou que a eleição das Mesas no início da legislatura não caracteriza reelegibilidade — afeta a ordem política vigente. Há, ainda, um outro motivo para a inconstitucionalidade da emenda da reeleição. O art. 37, caput, da Constituição determina que a administração obedecerá a alguns princípios inafastáveis, entre eles o da moralidade pública e administrativa. É óbvio que o princípio da moralidade se aplica no momento da aprovação das leis, tanto que o art. 55, 1º, estipula que perderá o mandato o representante que perceber vantagens indevidas. O professor Michel Temer, em sua obra “Elementos de Direito Constitucional”, reforça: “Trata-se de obediência a princípios, não de obediência à literalidade das normas”.

A extrema insensibilidade diante de fato político tão grave e censurável pode gerar ainda outro efeito lastimável em estados e municípios, permitindo que se perpetue os comandos das Assembléias Estaduais e Câmaras de Vereadores indefinidamente. O momento exige ações firmes não somente de nós congressistas, mas de toda a sociedade, para impedir que sejam enfraquecidas nossas frágeis instituições democráticas.