Um vezo de Ruy Barbosa

30 de abril de 2011

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O maior orador de seu tempo, talvez o mais erudito dos nossos intelectuais, Ruy Barbosa representava, ao lado de Euclides da Cunha, o mais original lidador da língua portuguesa nesses albores do século XX. Rico em vocabulário, supremo mago da sintaxe e extraordinário construtor das arquiteturas estruturais do vernáculo, Ruy quando falava encarnava uma verdadeira catarata linguística, que mais ainda se valorizava com a forma eloquente de sua oratória inexcedível. Nisso conseguiu superar Euclides, o outro monumento expressional da língua pátria, que, como ele, escrevia com apuro, mas ao falar, fazia-o sem calor, nem arte.
As maiores alegrias de Ruy estavam nos calorosos aplausos com que as plateias, sempre cultas e participantes, o agraciavam onde quer que deitasse fala. Sua campanha eleitoral para a disputa com Hermes da Fonseca da Presidência da República, testemunha à saciedade o que acima dissemos, a ponto de, à inexistência naquela época de meios eletrônicos de comunicação, terem os competidores que depender de comícios e de falas intermináveis para conquistar a confiança do eleitorado. Nisso Ruy foi insuperável e só não se elegeu dadas as tramoias eleitorais da época da Primeira República.
Tanto em praça pública, quanto em auditórios fechados, suas falas, além do barroquismo de estilo, alongavam-se por horas de duração o que as tornava sempre uma rara vitrine de exuberância cultural, e seus inimigos, que não eram poucos, nem bisonhos, acusaram-no de boquirroto, de prolixo, de maçador, e cousas pela rama, como ele mesmo reconhece e se queixa em suas obras. Daí que passa a utilizar-se de suas quilométricas conferências para, excedendo o palavrório do tema central, abrir largo e, quiçá, excessivo espaço, em sua fala, para defender-se das acusações que se lhe assacavam.
Foi da releitura recente de um de seus mais importantes pronunciamentos, “A imprensa e o dever da verdade”, que nos veio à tona a percepção desse seu artifício para defender-se: aproveitando-se da abordagem de temas diversos, para, sem mais aquela, inserir nos prolegomenos, os mais variados argumentos de suas explicações pessoais. Tornou-se isso um vezo do nosso querido e admirado personagem, vezo inteiramente perceptível no texto referido e do qual tiraremos alguns exemplos interessantes.
Primeiro, o reconhecimento por ele mesmo registrado, de que suas conferências “largas e derramadas”, impingiam ao auditório uma espécie de “maçadura”, que normalmente deveria espantar ouvintes. Contrariamente a isso, era comum juntarem-se centenas de admiradores, que num exercício de “autoflagelo” e de “tormento”, lá permaneciam por três ou quatro horas seguidas, a participar, como assegura o próprio mestre, de todo o evoluir do tema, numa demonstração de “espaço e aplauso”. Como testemunha, ao defender-se das picuinhas dos adversários: “(…) me têm elas (as pessoas) sempre escutado a pé quedo, não a se espreguiçarem, não cochilando, bocejando ou sussurrando, mas atento comovendo-se, exaltando-se. Ao acabar de cada um dos meus estirões, que a incansável acrimônia dos meus desafetos pinta como chorros de palavreado, o recinto contém ainda a mesma concorrência do começo, não aumentando porque já de princípio não mais comportava. Auditórios pé de boi e couros de anta, quanto mais sovados, mais agradecidos pela sovadeira, mais entusiasmados com o sovador”.
Como se vê, em vez de preocupar-se com o risco de tornar-se cansativo e chato, apostava em seu carisma e, de discurso a discurso, esticava o falejar sem fim. Era uma aposta sua em seu carisma. Não se conhece um só episódio em que tenha conseguido dividir aplausos com vaias.
Nas numerosas tentativas de justificar seus abusivos estirões, citaria os clássicos, para com eles imodestamente comparar-se, na tentativa de comprovar terem sido muito mais oceânicos em suas obras. Ressalta haver Homero escrito a “Ilíada” e a “Odisséia”, com vinte e quatro longas rapsódias cada; de Virgílio, na “Eneida” doze livros para registrar sua inspiração poética; sobre Dante, assinalou o fato de haver se valido de cem cantos para expressar, na “Divina Comédia”, todo o seu pensamento poético. E sem nenhuma preocupação com as possíveis críticas endereçadas à sua arrogância, fez esta reflexão: “Quem, por isso irrogaria ao Dante, a nota do perluxo? O florentino responderia com vantagem, que, onde couberam os heróis de Homero, Vergílio (e outros) não caberia o inferno, o purgatório, o paraíso, Deus e a eternidade”.
Dava a entender que assim como Dante, não teria ele abusado da sobejidão, razão pela qual não poderia ser condenado pelas horas a mais que acrescentava a seus discursos, só para manter incólume a inteireza de sua genialidade.