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Vargas: a justificativa de 1937

11 de setembro de 2014

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Orpheu Santos Sallesdia 24 de agosto de 1954 marcou um dos momentos mais relevantes da história política do Brasil. O então presidente da República, Getúlio Vargas, em um ato de verdadeiro e nítido desespero, resolveu premeditadamente se suicidar. O ato foi um protesto contra a deposição militar que lhe fora imposta pelas forças políticas que se organizaram em oposição. Ele renunciou à vida e evitou, com a sua morte, a possível e quase certa deflagração de uma guerra civil no País.

O presidente Getúlio vinha, desde a revolução de 1930, com a intenção premonitória, que se repetiu em 1932 e 1945, de resistir no governo e morrer em defesa da dignidade do cargo.

O memorável e histórico discurso que pronunciou no Plenário do Senado Federal, na sessão de 13 de dezembro de 1946, perante a silente plateia de parlamentares e sem a mínima contestação da totalidade de seus opositores, deixou evidente, com fatos e razões, os motivos que justificaram o seu modus operandi para garantir a segurança e a tranquilidade pública, à medida que ocorria a instauração do Estado Novo e a implantação da ditadura.

Do importante e longo pronunciamento de duas horas e 40 minutos extraímos o essencial para compreendermosãos do propósito do Presidente Getúlio ao instituir a ditadura com a decretação do ESTADO NOVO, em 10 de novembro de 1937:

“Não é segredo para ninguém que os elementos de esquerda e de direita estavam sendo manipulados para a luta armada. Que as formações militares de que dispunham os governadores do Sul e do Norte estavam na iminência de um choque. As forças armadas do Brasil me apresentaram uma solução. Aceitei o dever de conduzir os destinos do Brasil no momento de maior gravidade de sua história.

Poucos meses antes, na Câmara, se discutira a questão japonesa. Dividiram-se as opiniões. O Brasil naquela época tinha a maior colônia japonesa do mundo fora do oriente. O embaixador do Japão acompanhara da tribuna os debates. A propaganda japonesa era ativa e poderosa. Eu não poderia vetar a lei se fosse aprovada, sob pena de criar graves conflitos internos e provocar reclamações diplomáticas. Foi a palavra do nobre espírito de Miguel Couto e a campanha do Jornal do Comércio que salvaram a situação.

Naquela época se organizavam no Sul, como forças econômicas e políticas, os elementos de origem alemã e polonesa. Estrangeiros e brasileiros natos vestiram as camisas dos partidos nazista e fascista. Especialistas vindos da Europa organizavam a luta para o dia em que se tornasse necessário fazer pressão sobre o governo, em política interna, para forçar diretrizes internacionais. No Rio Grande, em Santa Catarina, no Paraná e em São Paulo as colônias estrangeiras se arregimentavam. Nós, brasileiros, como sempre sonhadores, dispersávamos nossas energias em choques políticos ou em ilusões. E a realidade nos ameaçava com o sangue da guerra civil.

(…)

Em 1937, 300 mil japoneses ocupavam posições estratégicas no litoral de São Paulo e em todo o interior. Funcionavam legalmente, no Brasil, as seções dos Partidos Nazista e Fascista. Organizavam-se a infância e a juventude brasileiras no culto racial a seus antepassados estrangeiros e incutia-se em seu espírito a ligação à pátria de seus paíis e não à pátria brasileira. Como poderia qualquer governo enfrentar esse problema, que tinha desafiado todos os governos anteriores, já me havia desafiado, e dominava numa crise política as estruturas municipais? Quem iria correr o risco de perder eleições por motivos que pareciam de menor importância?

As zonas coloniais forneciam fortes contingentes eleitorais aos que defendiam sua política. Eram ricas e poderosas. Organizadas e disciplinadas. E nós, como sempre, puros e ingênuos, “‘deitados no berço esplêndido”’.

A decisão
Duas vezes em minha vida fui obrigado, pela razão de Estado, a quebrar a harmonia entre os Poderes Executivo e Legislativo. A primeira, quando dissolvi o Congresso como chefe da Revolução de 1930. Prestei contas à nação desse ato do governo provisório por mim chefiado. A segunda vez, quando reassumi a chefia da revolução brasileira e, em defesa da pátria, para garantir e assegurar a defesa continental, fechei o Parlamento em 1937. Eu não quis o poder, não pratiquei esse ato para impor minha vontade ou para desrespeitar a soberania popular ou ferir seus representantes. Era indispensável enfrentar com um governo forte todas as influências internacionais que nos lançavam a uma guerra civil . Era indispensável unir, com a disciplina, todas as energias nacionais, que nosso temperamento vibrante separava. Não pratiquei o ato que poderia ser considerado como golpe de Estado por motivos de política nacional. Tinha necessidade de tornar possível a defesa do continente. E eu sabia qual o destino das nações fracas  e confiantes. Precisava agir antes que fosse demasiado tarde.

A esta Casa presto minha homenagem, como expressão sincera de meu respeito à sua tradição. Posso ter errado na forma. Mas a história provou que cumpri meu dever.

Os primeiros atos do meu governo, em dezembro de 1937, foram o fechamento de todos os partidos e a nacionalização do ensino.

E devemos o êxito dessas medidas principalmente à cooperação de todos os estrangeiros e descendentes dos que emigraram para o Brasil. O sentimento de cooperação e de integração em nossa vida que eles manifestaram merece especial relevo. Afastados os emissários perturbadores que os inquietavam, os estrangeiros residentes no Brasil e seus filhos deram grandes exemplos de civismo e de amor à nossa terra. E precisamente por isso a pressão dos interesses políticos internacionais feridos manifestou-se violenta. No princípio de 1938, o Brasil, por minha determinação, deixava de considerar persona grata o embaixador de Hitler, Sr. Karl Von Ritter, que exigia do governo brasileiro o funcionamento das seções do Partido Nazista em nossa terra. Num gesto de violência, a que estava acostumado, o governo do Reich enviou ao Brasil, de regresso do Congresso de Nurenberg, o mesmo embaixador. Fiz comunicar que não seria permitido o seu desembarque e, ao mesmo tempo, retirei o embaixador do Brasil em Berlim. Foi o Brasil a primeira nação do mundo a enfrentar o poderio de Hitler.

(…)

Consagrado ao sacrifício
Fui destinado a sofrer o mesmo fim de Dolfuss, sangrado no palácio do governo. Pouco antes se realizara a anexação da Áustria à Alemanha. Compreendi que precisava contemporizar. Em todos os países do mundo, as nações do eEixo e o Japão articulavam uma intensa propaganda e organizavam forças para a desagregação. Em outubro a Inglaterra e a França capitulavam em Munique, oferecendo o holocausto da Tchecoslováquia, cortando as possibilidades de defesa dessa nação com a entrega da região dos sudetos. Em março de 1939, a Alemanha ocupava definitivamente a Tchecoslováquia, cortando as possibilidades de defesa dessa nação com a entrega da região dos sudetos. O mundo sentia a guerra. Mas todos recuavam perante o poder agressivo do Eixo. Em março chegava a vez de Memel, na Lituânia. Nos Estados Unidos se desencadeava uma violenta campanha política contra Roosevelt. Em Londres, Churchill clamava num deserto. Em agosto de 1939 realizava-se o pacto de amizade entre a Rússia e a Alemanha. Em 1o de Setembro a Polônia iniciava o seu martírio.

Durante meses a Inglaterra e a França dirigiram apelos de angústia ao presidente Roosevelt, e o grande chefe da nação norte-americana se achava bloqueado pela oposição política. O Brasil, numa das posições estratégicas mais delicadas da guerra que se alastrava pelo mundo, era o campo de batalha da mais furiosa de todas as campanhas de publicidade estrangeira e ação subterrânea. Cercado por todos os lados, conseguia, porém, manter a nossa posição internacional. Enquanto não se conseguia a evolução da política interna dos Estados Unidos, meu compromisso pessoal com o presidente Roosevelt era contemporizar, assegurar a ordem interna no Brasil e manter a unidade continental. Por isso o Brasil cedeu sempre em Lima e Havana; por isso mantive o governo em rigorosa neutralidade, ferindo muitas vezes os entusiasmos precipitados e exibicionismos mercenários que perturbavam o ambiente, prejudicando o que se precisava do Brasil para a vitória.

Graves e dolorosos foram esses dias de ação silenciosa e esquiva, esperando todas as noites a morte, enfrentando todas os dias as investidas dos que imaginavam desviar o Brasil do seu destino continental, e sofrendo as injustiças de campanhas que o desconhecimento da realidade fomentava contra a diretriz, que devia ser prudente e cautelosa, sábia e sutil.

(…)

O grande momento
Quando as tropas britânicas foram jogadas pelo furacão de Rommel até El Alamein, dependeu quase que exclusivamente do Brasil a defesa do último reduto no Mediterrâneo. Os socorros militares, material bélico e outros meios de luta, que os Estados Unidos enviavam para a Inglaterra, passavam por Natal. Sem esse ponto de apoio, Montgomery não teria o material de que necessitava. E eu precisava a todo custo garantir essa passagem. Não dispunha de outras forças materiais além das que minha inteligência me oferecia e às vezes tinha de recorrer a astúcia. A Inglaterra, segundo reconheceu publicamente o herói de sua resistência, Winston Churchill, contraiu uma grande dívida de gratidão para com o Brasil. Ninguém me arrebatará esse serviço.

Nestes termos me telegrafou Roosevelt:

‘Sei, como o sabe todo o povo do continente, quanto é grande a dívida de gratidão de todos nós à esclarecida  visão e diretivas de V. Exa.
A amizade pessoal de V. Exa. neste período crítico é uma fonte de constante inspiração para mim e a sua atuação muito encoraja o povo dos Estados Unidos, mostrando a determinação e a visão com que V. Exa. enfrenta a emergência diante da qual estão colocados os povos livres em todo o mundo.’

Cordell Hull e Sumner já testemunharam também como o Brasil foi fiel a seus compromissos. Não estávamos fazendo política internacional. Fortalecíamos a ação genial de Roosevelt, que precisava da união da América para salvar a Europa. Cobrimos o flanco dos Estados Unidos política e militarmente. Esta a razão, esta a ação da ditadura.

Nenhum país cujo território era ou podia ser posição estratégica vital foi poupado aos horrores da guerra civil, da invasão, ou dos putschs. Os fatos demonstraram o acerto de minha previsão. Mesmo nos Estados Unidos o poder dos inimigos foi tão forte que conseguiu impossibilitar uma ação mais rápida de Roosevelt. Só depois da infame agressão de Pearl Harbour, quando toda a Europa já tinha sido sacrificada, é que o povo americano se desintoxicou da ação interna e enfrentou com heroísmo e tenacidade o inimigo. Na Inglaterra, só depois da realidade da vitória continental alemã e sobre as ruínas de Londres é que Churchill recebeu o poder político.

Mas eu tinha e tenho a confiança do povo. Podia utilizar em benefício do próprio povo, da nossa pátria, da América e da humanidade essa confiança. Podia e devia. E foi o que fiz. E a prova de que o povo me conforta com a generosidade de sua confiança está na minha presença nesta nobre Casa.
(…)
Após a promulgação da Constituição de 10 de novembro de 1937, que fora utilizada como um instrumento de governo, eu me apoiaria nas forças armadas para a realização de três objetivos principais: 1o) defender o Brasil; 2o) levar a termo um programa administrativo de grande envergadura; 3o) ampliar o desenvolvimento e a aplicação da justiça social, em benefício dos trabalhadores. Desde que me faltou o apoio da forças armadas, não poderia continuar no governo e dava por finda minha missão no exercício do cargo.

Não guardo ressentimentos, nem tenho outro desejo que não seja o bem-estar do povo. Muito já sofremos, no Brasil, pelo ódio e pelo rancor dos homens. Durante anos procurei sempre esquecer os agravos e comigo colaboraram antigos adversários e até inimigos. Sempre me esforcei para alcançar a harmonia nacional, apesar da intolerância de alguns espíritos e da intransigência de muitos interesses. Minha palavra é, portanto, um apelo a todos, amigos e inimigos, companheiros e adversários, para que tenhamos sempre presente a necessidade de paz e de equilíbrio social.”

Passados 77 anos da promulgação da Carta de 1937 e rememorando o significado do histórico ato face a justificativa da sua necessidade no tempo, como explicitado pelo presidente Getúlio, inclusive ao citar o pronunciamento do presidente Franklin Roosevelt, que reconheceu a dívida de gratidão do povo do continente pela efetiva participação do Brasil, assim como a esclarecida visão e ingerência de Vargas nos acontecimentos que propiciaram o apoio e a participação do Brasil na guerra contra a Alemanha, a Itália e o Japão.

Os históricos acontecimentos, como relatados pelo Presidente Getúlio no Senado Federal, que tanta celeuma política desperta até os dias de hoje – face principalmente ao período e àas ações ditatoriais que se seguiram após a entrada em vigor da Polaca, como chegou a ser qualificada a Constituição de 1937 –, servem de reflexão e análise das razões justas ou erradas, próprias ou impróprias, que levaram o presidente Getúlio Vargas naqueles tempos tumultuosos a adotar e instituir no Brasil o regime do Estado Novo.