Edição 217
A verdade sobre o distrato e suas consequências: desconstruindo a equivocada interpretação e aplicação automática da Súmula 543 do STJ
10 de setembro de 2018
Advogado
No mês de abril de 2018, foi realizado o terceiro evento no auditório do Superior Tribunal de Justiça, versando sobre “A Incorporação imobiliária na Perspectiva do STJ”, para debater como principal tema o grande número de desistência das aquisições de unidades imobiliárias pelos compradores, vulgarmente denominadas no mercado por distratos.
Ao final do evento, restou unânime o entendimento no sentido de que a apreciação de processos em grau de recurso nos Tribunais de todo o país vem aumentando gradativamente, permitindo verificar o crescimento exponencial das demandas que visam à extinção de contratos de compra e venda de unidade imobiliária em construção a partir de um entendimento, equivocado a nossa sentir, de que a Súmula no 543 do Superior Tribunal de Justiça autoriza todo e qualquer distrato, embora nela esteja escrito apenas que, no caso de resolução do contrato de promessa de compra e venda de imóveis integrantes de incorporação imobiliária, os valores
pagos pelo desistente devem ser restituídos imediatamente.
Embora um consenso comum quanto eventual solução para os distratos imotivados não tenha se estabelecido nos eventos realizados, a necessária distinção entre o “distrato necessidade” do “distrato especulação” tornou-se voz comum, sendo talvez a melhor interpretação que deve ser feita nos tempos atuais do sinalagma contratual, mostrando-se fundamental distinguir a resilição unilateral, por simples manifestação de vontade, de uma ou de ambas as partes, da resolução unilateral advindo de outras situações supervenientes à relação contratual com eficácia extintiva.
Para tanto, nas ações de resilição unilateral, impõe-se identificar de plano, quem é consumidor e quem é investidor. Para os precursores do consumerismo, consumidor seria aquele que retira o bem do mercado para uso próprio, seja ele pessoa física ou jurídica, não utilizando o bem em uma cadeia de produção. Em se tratando de compra de imóvel, consumidor seria aquele que adquire o imóvel para moradia. Em outra senda, investidor é aquele que adquire o bem imóvel, atraído pelo mercado promissor da construção civil, com o fito único de obter lucro.
Como sabido, não há óbices pelo mercado da construção civil e das entidades do consumidor, da resolução acontecer em favor do consumidor que comprove fatos supervenientes ocorridos após a assinatura do contrato (como por exemplo: perda de emprego, doença, diminuição de renda, aumento dos gastos com o núcleo familiar, superendividamento e outros). Para este, há a proteção do CDC, do artigo 478 do CC, da súmula no 543 e do precedente originário que estabeleceu o primeiro material jurisprudencial sobre o qual se debruçaram os intérpretes dos casos subsequentes, conferindo-lhe estabilidade.
Há hoje uma conceituação unânime de que a maior parte da judicialização dos distratos, com pedido de desfazimento do compromisso de compra e por parte de investidores, que não buscam o judiciário pedindo a resilição do negócio quando o mercado está aquecido, porque preferem revender a sua unidade no mercado secundário, mas fazem isso quando o mercado deixa de apresentar a valorização no curto prazo que eles irrazoavelmente esperavam.
Na prática, o investidor resolve “sacar” o seu dinheiro através da rescisão de contrato, como se as incorporadoras fossem bancos de investimento. É como se ele pudesse fazer dois contratos e, ao final do prazo de entrega da obra, escolhesse se quer o imóvel ou a devolução do dinheiro com juros e correção monetária.
Optando por “sacar” o dinheiro, rompe a legítima expectativa que a incorporadora possuía de recebimento do preço nas condições pactuadas e desequilibra a relação econômica do negócio, ameaçando a todos que integram aquela cadeia econômica, impactando diretamente os financiamentos imobiliários, na revisão do preço, na conclusão da obra e prejudicando o consumidor de fato, que a duras penas vem honrando o contrato para receber a tão sonhada
casa própria.
Se à incorporadora pudesse ser dado o direito de aumentar o preço, depois do contrato feito e da evidente valorização monetária do imóvel, talvez pudesse ser legítima a pretensão do comprador-especulador de fazer da incorporação imobiliária um contrato de investimento com várias portas de saída
Acontece que essa não é a realidade. Se o imóvel valoriza, a incorporadora não cobra diferença e o comprador investidor fica com as vantagens; se o imóvel desvaloriza, a incorporadora não tem obrigação de reduzir o preço e o comprador, que optou por um investimento, deve arcar com o resultado do negócio, já que esse fenômeno econômico é o que constitui a base axiológica dos contratos bilaterais, através da imposição da cláusula geral da boa-fé objetiva prevista no art. 422 do CC/2002, que se destina a restringir a prerrogativa jurídica de imposição unilateral de situações evidentemente abusivas – já que o “dever recíproco de lealdade e cumprimento das obrigações” é o ponto basilar dessa relação jurídica.
E justamente nesse cenário de minguada atividade econômica, incentivar a potestatividade (sem qualquer justificativa) desorganiza os investimentos e prejudica a gestão dos empreendimentos, inclusive perante os demais compradores/consumidores, tornando fundamental a diferenciação entre o consumidor e o investidor/especulador, aplicando-se ao caso concreto a teoria dinâmica das provas previsto no §1o do artigo 373 do novo CPC, para que sempre seja comprovado se o pedido de rescisão unilateral é baseada em meras alegações e potestatividade (resilição) ou motivada por fatos supervenientes ou onerosidade excessiva (resolução).
Por certo, se é o promitente comprador quem enfrenta dificuldades financeiras, ainda que a inversão do ônus da prova seja uma faculdade conferida ao magistrado, configura prova diabólica a transferência desse ônus probatório ao incorporador, que não detém meios de investigar a saúde econômica do comprador que alega impossibilidade de arcar com o contrato – este, sim, que poderá fazê-lo por diversos e variados meios.
E é justamente com essa verificação e prova que poderá/deverá ser feita a distinção entre consumidor e investidor, quando eventual ação de rescisão do contrato de promessa de compra e venda de imóvel na planta ocorrer com base, exclusivamente, na afirmação de que há dificuldades financeiras em honrar o contrato em virtude da mudança nas condições econômicas do país.
Essa diferenciação se torna ainda mais necessária quando rememora-se como o tema chegou ao STJ ainda no século passado. Ao julgar o REsp no 115.671/RS, DJ de 2/10/00, prevaleceu o voto do eminente Ministro Waldemar Zveiter, no sentido de poder o comprador inadimplente “pleitear em juízo a devolução das prestações pagas e a rescisão do pacto, em face do desequilíbrio financeiro resultante da aplicação dos sucessivos planos econômicos, presentes os artigos 51 e 53 do Código de Defesa do Consumidor”. Neste julgamento houve necessidade de desempate, proferindo voto o Senhor Ministro Barros Monteiro, o qual consolidou a jurisprudência da 4a Turma no sentido de que “o devedor inadimplente não tem em princípio, o direito de pedir a resolução do contrato. Porém, se surgir fato superveniente, suficientemente, forte para justificar aquele inadimplemento, a parte que sofreu o efeito dessa alteração objetiva da base em que foi celebrado o negócio pode vir a juízo para provocar a extinção do contrato”.
Assentada tal premissa, posteriormente no REsp no 200.019/SP, DJ de 27/8/2001 que teve como Relator o Ministro Waldemar Zveiter e voto-vista do Ministro Ari Pargendler, e no REsp no 293.214/SP, DJ de 20/08/2001 que teve como Relatora a Ministra Nancy Andrighi, a 4a Turma acompanhou a orientação que se firmou majoritária, no sentido de admitir o pedido de rescisão do promitente comprador quando COMPROVADAS as circunstâncias da impossibilidade de pagamento por fatos supervenientes e/ou onerosidade excessiva, tornando inviável a manutenção do contrato.
Com o passar do tempo, sem menção de qualquer mudança na jurisprudência que restou absolutamente consolidada no ano de 2000 pela Corte Superior, os Tribunais inferiores passaram a aceitar o pedido de resilição unilateral sem que fosse feita qualquer prova da incapacidade econômica, destoando do que inicialmente foi decidido e abrindo um leque muito maior, para que eventuais investidores transvestidos de consumidores, fizessem do contrato de compra e venda de bem imóvel um contrato de investimento: a parte compra o bem, inicia o pagamento e depois, não mais podendo pagar, pleiteia a devolução integral do que pagou. O sistema assim alicerçado criaria um verdadeiro impasse econômico e alteraria a própria substância do contrato de compra e venda de bem imóvel, acabando à força com a preservação dos contratos e com a segurança jurídica.
E nesse sentido, criou-se um distanciamento nos julgados das instâncias inferiores, gerando uma ruptura explícita, quando deu-se tratamento igualitário a casos substancialmente distintos, como se fossem (mas não são) objetos subsumíveis à mesma regra geral, já que o que fez pacificar o entendimento da possível resolução contratual por parte do comprador inadimplente é a sua comprovação de impossibilidade de arcar com os valores devidos.
Mais do que se afastar do precedente originário, colocou-se em risco a validade, a eficácia, a legitimidade e a segurança jurídica contidas no precedente trazido pelo tribunal que o formou, já que as milhares de demandas de distrato são consubstanciadas na alegação de impossibilidade do pagamento, inexistindo comprovação mínima de tal alegação.
Desta feita, prudente seria um novo pronunciamento sobre a ratio decidendi pelo STJ, uma vez que a matéria é unicamente de direito, limitando-se a determinar se a inversão do ônus da prova, para que o incorporador comprove a alegada perda superveniente de capacidade econômica do consumidor, é ou não cabível nos casos em que o promitente comprador pleiteia a rescisão do contrato de promessa de compra e venda de imóvel na planta com base, exclusivamente, na afirmação de que enfrenta dificuldades financeiras não podendo honrar com o contrato, não havendo, assim, qualquer controvérsia fática a ser analisada, mas apenas sua consequência jurídica, razão por que sequer incidiria o óbice do verbete 7 da Súmula da jurisprudência do Tribunal Superior.
Dessa forma, chegar-se-à a conclusão lógica – como chegaram os Ministros que enfrentaram e sedimentaram a tese originária – de que cabe ao promitente comprador fazer prova da afirmação de que enfrenta dificuldades financeiras, como consequência prática, na distinção do consumidor hipossuficiente do investidor oportunista, conseguindo separar o joio do trigo e automaticamente, proibindo que o contrato de compra e venda de bem imóvel seja transformado em um vantajoso contrato de investimento em que o investidor compra o bem, inicia o pagamento e depois, não mais querendo pagar, pleiteia a devolução do que pagou com juros e correção, vindo a receber muito mais do que aportou inicialmente, lesando aqueles que legitimamente utilizaram seus rendimentos em um sonho.
Se nem na sua origem a Súmula 543 do STJ pretendeu ser uma porta aberta para o descumprimento contratual, muito mais injusto que, agora, as cortes estaduais a invoquem, pois, inaugurada e consolidada pelo próprio STJ a discussão sobre o impacto econômico das decisões judiciais, não seria ele próprio o responsável por uma decisão tão contrária a esse conceito.
A verdade é que não se pode cogitar um Estado Democrático de Direito sem um ordenamento jurídico coerente, e esse é um pensamento relevante para que passemos a ter decisões equânimes e mais justas.
Notas______________________
1 Desfazimento de um contrato por simples manifestação de vontade do promitente comprador.
2 O conceito de valorização no curto prazo no mercado imobiliário foi desenvolvido em um determinado momento e depois aproveitado por especuladores, sendo uma subversão absoluta – e arriscada – da regra de que imóveis representam investimento de longo prazo.
3 Aquele que quer comprar o imóvel, mas não pode ou não tem como pagar por razões alheias a sua vontade.
4 Aquele que pode e tem como pagar, mas não quer.
5 Onerosidade Excessiva – Resolução Contratual.
6 “regra jurídica utilizada pelo Judiciário para justificar a decisão do caso”, devendo ser, necessariamente, analisada à luz do (caso concreto) que ela solucionou. STRECK, Lenio Luiz. ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 2a ed., rev., atual., Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2014, p. 46.