Edição 100
1964 – A Malfadada Odisséia no navio presídio Raul Soares III (final)
30 de novembro de 2008
Orpheu Santos Salles Editor
Conseqüências da publicação da carta ao Presidente da Comissão Geral de Inquéritos
Como previa, após alguns dias da visita de minha mãe e filhos e a postagem da carta na agência dos Correios em Santos, fui levado perante o Comandante, responsável pelos inquéritos, Capitão de Mar e Guerra Júlio de Sá Bierrenbach, estando presentes todos os oficiais responsáveis pelos inquéritos em andamento, sendo logo interrogado pelo mesmo: “A carta que escrevestes foi publicada e eu quero saber a quem tu subornastes para postá-la no Correio”. Respondi que não havia subornado ninguém, mesmo porque o dinheiro que possuía havia sido acautelado na ocasião da minha chegada ao Navio, e quanto à carta ela foi uma das muitas por mim escritas e jogadas ao mar, acondicionadas nos vasilhames de refrigerante, e, por certo, por eu ser conhecido dos pescadores e profissionais que velejavam pelo canal – em razão de ter sido Delegado do Trabalho em Santos –, por solidariedade aos seus companheiros presos no Navio e, também, pelo conteúdo da carta, atenderam ao meu pedido colocando-a no Correio.
A resposta provocou um burburinho entre os presentes e logo um Tenente da Marinha se adiantou aos demais e me interpelou: “Você acha que nós somos imbecis e vamos acreditar nessa sua lorota?”.
Tentando manter a calma respondi: “Bem, Tenente, aceite ou não a minha verdade, essa é a que tenho”. O Tenente esbravejou e me ofendeu até ser interrompido pelo Comandante, que dirigiu-se a mim e disse: “É difícil acreditar na tua versão, mas como dizem os italianos em situações iguais: non è vero, ma è bene trovato e, virando-se para o seu subordinado, disse-lhe: “Pode continuar inquirindo-o se quiser, mas não quero violência”, e afastou-se.
O Tenente continuou me insultando, e inopinadamente me interpelou: “Você sabe que o seu líder prendeu meu pai?”, ao que respondi: “Não sei a quem o senhor se refere e também não vejo o que pode relacionar a prisão do seu pai com a minha prisão aqui”. Respondeu o Tenente: “Refiro-me ao seu líder Getulio Vargas, que prendeu meu pai no Dops do Rio de Janeiro, na Ditadura em 1944”, ao que respondi-lhe: “Vamos esclarecer, senhor Tenente. O presidente Getúlio Vargas já morreu, e eu não sou espírita para que ele seja meu líder. O meu líder, hoje, é o presidente João Goulart, que encontra-se exilado no Uruguai. Quanto à prisão do seu pai no Dops em 1944, saiba o senhor que também nesse tempo, em mês que não me ocorre, eu estive preso no Dops, em razão de uma manifestação estudantil feita em frente ao Teatro Municipal, mas recordo-me que, como aqui onde os senhores qualificam os presos de comunistas e ladrões, naquela ocasião os carcereiros qualificavam os detentos de comunistas, integralistas e facistas; o senhor sabe como o seu pai era qualificado?”.
Dentre os oficiais presentes houve novo burburinho e um deles falou: “Bem feito, avisei para não se meter, quem procura sarna só arranja coceira!”.
O Tenente ficou pálido, aproximou-se de mim e desferiu-me violenta bofetada, a qual retribuí de imediato com um bem dado soco no nariz, que, ao jorrar sangue, ensangüentou a blusa da sua farda. O Tenente, entre surpreso e espantado com o sangue a lhe escorrer do nariz, esbravejou, chamando-me de “bandido! comunista!”. No mesmo instante veio-me à lembrança as recomendações do professor Caio Prado Júnior, de não aceitar provocações e não perder a calma, quando, inesperadamente, recebi violenta cacetada nas costas dada por um Policial, o que me fez ajoelhar, momento em que o Tenente aproveitou para desferir-me uma série de pontapés na altura do estômago, no peito e nos braços, o que me deixou prostrado no chão.
O Comandante interveio, mandou que o Tenente se afastasse e deu ordens para que eu fosse levado à enfermaria do Navio, onde, examinado por um enfermeiro e feitas as radiografias necessárias, restaram constatadas fraturas em 3 costelas, ocasiando o enfaixamento de meu tórax.
Passadas 24 horas na enfermaria, voltei à cela.
Decorridos cerca de 15 dias fui levado novamente ao mesmo salão, estando presentes o comandante Júlio de Sá Bierrenbach, todos os oficiais presidentes dos IPMs, e, com surpresa, vi e reconheci o general Ernesto Geisel, que sabia ser o Chefe da Casa Militar da Presidência da República – que havia conhecido quando da transmissão da posse do presidente João Goulart para o presidente Ranieri Mazzilli.
O General mandou que eu me aproximasse e disse: “Estou aqui em razão da carta que enviastes fazendo denúncias de violências contra tua esposa. Tu as confirma? Ao que respondi: “Senhor General, confirmo a carta e todas as denúncias, mas não trata-se da minha esposa, que não tenho pois sou desquitado, e sim da esposa do sargento Argeu, que se encontra também preso aqui no Navio. O senhor mande buscá-lo e ele dirá o acontecido com ela”. “Tu tens certeza que o Sargento confirmará o que denunciastes? Ou isto é uma trampa que inventastes?”, inquiriu o General e ato contínuo, sem esperar por resposta, mandou que chamassem o Sargento.
O sargento Argeu foi trazido; estava pálido, quando normalmente tinha a tez avermelhada, tinha um físico forte e era mais alto que o General. Postou-se à sua frente, em posição de sentido, fez continência e assim permaneceu até o General dizer: “À vontade”, e logo começou a inquirição.
“Sargento, este civil, teu companheiro de prisão fez uma denúncia de que tua esposa teria sofrido violência por um militar, em sua residência, às altas horas da noite. Tu confirmas essa denúncia?”. Ao que o Sargento respondeu: “Confirmo!”. O General continuou perguntando: “Esse militar que foi à sua residência está presente no recinto? Se está, aponte-o”. Argeu não titubeou, avançou uns passos e apontou o dedo indicador na direção de um Tenente-Coronel da Aeronáutica e disse: “É este o canalha!”.
O Coronel estrebuchou, e gritou: “É mentira, é uma farsa, estive realmente na residência do Sargento, de madrugada, fazendo uma diligência em companhia de uma equipe, onde arrolei diversos documentos do Sargento e de outros companheiros seus, comprometidos com a subversão. Não cometi nenhum ato contra a esposa dele, apenas a empurrei porque ela não queria permitir que eu mexesse nos papéis que se encontravam no armário, nada mais”.
Argeu virou-se para o General e disse: “Senhor General, eu não sei o que vai acontecer comigo daqui para o futuro, mas eu espero sair desta porque eu não sou comunista e a minha participação foi ter ficado junto com os meus companheiros, solidário ao presidente João Goulart, e quando me livrar dessa enrascada eu vou pegar este canalha, que entrou na minha casa e no meu lar para abusar de minha esposa, passando as suas mãos sujas em seu corpo, e somente não a violentou porque ela gritou e meu sogro chegou para impedir que ela fosse estuprada. Eu juro senhor General, que, com estas mãos que o senhor está vendo, eu vou estraçalhar o peito deste patife, canalha, filho de uma égua e vou arrancar as entranhas desse miserável e vou dá-las aos cães”. Após o seu desabafo Argeu entrou em um choro convulsivo, seguido de soluços e dizia repetindo: “Canalha! Canalha!” enquanto o Coronel também bradava: “É mentira! É mentira!”.
Foi um espetáculo extremamente dramático!
A balbúrdia de todos falando ao mesmo tempo fez com que o General gritasse: “Silêncio!”, e em seguida ordenasse ao Comandante que retirasse o Coronel do local, dirigindo-se a Argeu e dizendo: “Sargento, eu vim ao Navio para saber das denúncias, que serão apuradas e esteja certo que providências serão tomadas. Tu estás liberado”, e saiu do salão.
Passou-se cerca de uma hora. No salão, os oficiais, surpreendidos com a presença do General e o ocorrido com as declarações de Argeu e a reação do Coronel, teciam os mais variados comentários; uns acreditando no Sargento, pela contundência da acusação, outros acreditando no Coronel, face o evidente corporativismo.
Decorrido algum tempo fui conduzido a uma sala onde se encontravam o comandante Bierrenbach e o general Geisel, que perguntou-me: “O Comandante estava me dizendo que tu mandastes a carta através de uma garrafa jogada ao mar, mas tu não achas que esta é uma alegação muito fantasiosa?”. Ao que respondi: “Senhor General, o Comandante usou o provérbio italiano non è vero ma è bene trovato que se aplica bem ao caso, mas asseguro ao senhor General que a carta seguiu sem que eu usasse de qualquer ato de corrupção, foi questão de inteligência e oportunidade, e ela, com a sua presença aqui no Navio, atingiu o objetivo esperado, que era a vinda de uma autoridade importante e do alto escalão para constatar ao vivo as condições de miserabilidade, sujeira e imundice que vivem as centenas de presos alojados nos porões infectos deste Navio, considerando ainda que a maioria são trabalhadores que sequer têm vinculação política, presos apenas por serem dirigentes sindicais”.
O General fez menção para que eu parasse e perguntou: “Eu te conheço mas não lembro de onde. Tu tens alguma referência de onde?”. “Claro, foi na posse do presidente João Goulart em Brasília. O senhor estava ao lado do presidente Ranieri Mazzilli e eu acompanhava o ex-presidente Jango desde Montevidéu, e, apesar da confusão havida, tive oportunidade de cumprimentá-lo”.
O General então perguntou: “Tu estás respondendo a que crime?”. Ao que respondi: “Por crime de subversão que não cometi, porque fui preso na noite do dia 31 de março, quando ao microfone da Rádio Marconi, em São Paulo, pregava e defendia o governo constituído de então, e como o presidente João Goulart só foi destituído pelo Congresso no dia 1º de abril eu não posso ser acusado de crime de subversão, tampouco de ser comunista, o que não sou. Pessoalmente, apesar da flagrante injustiça, não tenho nada a reclamar, mas, aproveito a oportunidade para pedir ao General que, se possível, dê uma descida aos porões para constatar a situação miserável que se encontram os pobres trabalhadores”.
O General me olhou fixamente e apenas disse: “Vim aqui para isso. A tua carta, apesar de impertinente e atrevida, serviu para alguma coisa. Tu estás dispensado, pode se retirar”.
Fui levado de volta à minha cela, conjeturando que a publicação da carta, com a vinda do general Geisel ao Navio, talvez trouxesse-nos algum resultado favorável.
Felizmente, em conseqüência de sua vinda, 20 dias após, os presos na sua maioria foram libertados, inclusive eu, mas alguns foram transferidos para outros presídios.
Foram 6 meses de cárcere naquele fétido e malfadado Navio Presídio, onde, ao contrário do tempo encarcerado no Dops de São Paulo, vivenciei o período mais dramático da minha vida, não no sentido pessoal, que sempre tive ânimo e energias para suportar as agruras e dificuldades que se apresentaram, mas pela impossibilidade de ajudar ou minorar as desgraças que se abateram injustificadas sobre pobres e desgraçadas pessoas que sofreram horrores, angústias e que quedaram-se pasmos, inertes e desesperançados pela tragédia que lhes acontecia e inclusive às suas famílias.
Lembrei então do medo quando cheguei ao convés do Navio, com a ostensiva atitude dos policiais apontando as metralhadoras em minha direção; da dura realidade quando fui ao sanitário e a atitude inamistosa do Policial; lembrei do choque ao descer no porão do Navio e constatar a situação infame de velhos conhecidos, aprisionados num local onde os excrementos dos presos corriam pelo chão e da triste cena do velho líder sindical Waldemar Guerra, que ao me ver agarrou meus braços entre as grades e soluçou, arrancando também minhas lágrimas de solidariedade e angústia; lembrei da conversa com o velho estivador de Santos, preso conjuntamente com seu filho e seu neto, por vários meses, devido ao comparecimento no comício de 13 de março, no Rio de Janeiro; lembrei dos depoimentos de sindicalistas presos, desesperados por terem deixado as famílias ao desamparo e passando fome; lembrei das denúncias sobre as infâmias cometidas por militares às esposas e filhas de presos; lembrei dos sofrimentos do jornalista Nelson Gato, dos sindicalistas Manoel de Almeida e Argeu Anacleto, do compositor Geraldo Vandré, todos eles espancados pelos esbirros da Polícia Marítima por reclamarem do tratamento que lhes era ministrado nos xadrezes dos porões; lembrei dos insetos que infestavam o Navio e as ratazanas que circulavam nos porões, tendo inclusive arrancado com mordidas orelhas e dedos de presos enquanto dormiam; lembrei do horror que representava a figura tétrica daquele negro navio, velho e enferrujado, vindo do Rio de Janeiro e fundeado propositadamente na enseada de Santos, para infundir e afligir medo aos trabalhadores portuários, com o objetivo de que se abstivessem de reivindicações salariais, greves ou paralisações; lembrei da infinita tristeza dos dias de visitas aos presos, com crianças e mulheres chorosas e famélicas, que sequer podiam abraçar seus entes queridos, afastados que ficavam por mesas e tabiques.
E foi com este pensamento que, ao ser solicitado pelo companheiro e jornalista Nelson Gato, autor do livro “Navio Presídio”, colaborei e escrevi seu prefácio, com o poema:
O NAVIO PRESÍDIO
E quando a noite pesada de silêncio
Chegou torturando as multidões aflitas,
O Torquemada indígena reeditou a sina
Que afligiu a terra ibérica latina.
E a Inquisição renasceu em nossa pátria
Ferindo forte com vingança e infâmia,
Como se este povo não fosse só de irmãos,
Trabalhadores, poetas, professores e cristãos.
Da Guanabara loira, radiosa e bela,
A opressão mandou o carcomido barco,
Com seu casco negro, infecto, apodrecido
Para encarcerar pais, irmãos, filhos e netos.
Oh! negro navio de triste sina!
Antes te houvera o mar tragado,
Quando navegavas impávido e imponente,
A te transformares no terror da tua gente!