Análise poliédrica do princípio do contraditório

1 de fevereiro de 2021

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O período posterior à II Guerra Mundial (1939-1945) foi marcado pelo movimento da constitucionalização do processo civil em sintonia com o neoconstitucionalismo. A propósito, a constitucionalização se consubstancia na elevação de normas infraconstitucionais à hierarquia constitucional (constitucionalização-inclusão) e na releitura das normas infraconstitucionais sob a ótica da Constituição (constitucionalização-releitura), valendo mencionar que o art. 1º do novo Código de Processo Civil (NCPC), abaixo transcrito, está em consonância com esse movimento:

“Art. 1º – O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.” (BRASIL, 2015)

Nesse contexto, a superação da concepção meramente formal do devido processo legal (processo como simples conjunto de formalidades sem vistas à efetiva transformação da realidade social) despontou como essencial à efetiva consolidação do Estado Democrático de Direito, uma vez que o processo proporciona a tutela da Constituição e dos direitos fundamentais.

Assim, o devido processo legal passou a ser concebido sob uma perspectiva material de justeza processual, como bem aponta Marcelo Veiga Franco no seu artigo “Dimensão dinâmica do contraditório, fundamentação decisória e conotação ética do processo justo: breve reflexão sobre o art. 489, § 1.º, IV, do NCPC”.

O princípio do contraditório, que decorre do superprincípio do devido processo legal no seu aspecto formal, teve, então, que ser reformulado em consonância com a teoria do processo justo. Segundo tal teoria, no processo deve haver a aplicação harmônica dos diversos princípios processuais e o seu escopo deve ser a prestação de tutela jurisdicional pautada pela legitimidade, efetividade, adequação e notadamente justiça, no sentido da concretização dos direitos fundamentais e das garantias processuais constitucionais.

Para tanto é fundamental o princípio do efetivo contraditório, positivado no art. 5º, LV, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) e nos artigos 7º, 9º e 10 do NCPC, in verbis, como garantidor não apenas do direito de informação quanto a todos os eventos processuais e do direito de se manifestar no processo, como também do direito da parte de que as suas alegações de fato e de direito e as provas por ela produzidas sejam efetivamente consideradas pelo julgador ao decidir, conferindo, assim, à parte poder de efetivamente influenciar na decisão, sendo que a proteção contra decisão-surpresa também integra o efetivo contraditório:

“Art. 5º (…)

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;” (BRASIL, 1988)

“Art. 7º – É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.

Art. 9º – Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.

Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica:

I – à tutela provisória de urgência;

II – às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III;

III – à decisão prevista no art. 701.

Art. 10 – O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.” (BRASIL, 2015)

A propósito, em consonância com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), pautada na doutrina alemã e na doutrina de Pontes de Miranda, notadamente o MS 24.268/MG, o MS 25.787/DF e mais recentemente o RE 636.553/RS, extrai-se da pretensão à tutela jurídica (correspondente ao art. 5º, LV, da CRFB – Anspruch auf rechtliches Gehör) a dupla faceta do princípio do efetivo contraditório: formal (somatório do direito de informação – Recht auf Information,  com o direito de manifestação – Recht auf Äusserung) e material/substancial (poder das partes de efetiva influência na construção da decisão judicial como decorrência do seu direito de ver seus argumentos considerados pelo órgão julgador – Recht auf Berücksichtigung).

No que tange ao direito de ver seus argumentos considerados, é imperioso esclarecer que o julgador, ao decidir, tem o dever de efetivamente considerar todos os argumentos fáticos e jurídicos deduzidos no processo que sejam pertinentes ao deslinde do caso.

Por outro lado, o julgador não tem a obrigação de enfrentar os argumentos impertinentes à resolução da causa, uma vez que, de acordo com a teoria do processo justo, as partes devem atuar em consonância com os princípios da cooperação (art. 6º do NCPC), da ética, da boa-fé objetiva (art. 5º do NCPC) e da lealdade processual, que rechaçam argumentos e provas impertinentes.

É exatamente por isso que o art. 489, § 1º, IV, do NCPC prevê que é carente de fundamentação toda decisão judicial, seja interlocutória, sentença ou acórdão, que não tenha enfrentado todos os argumentos deduzidos no processo com capacidade de, em tese, infirmar a conclusão do julgador.

Em adicional, como se extrai do art. 10 do NCPC, o efetivo contraditório resguarda a parte de decisão-surpresa, ou seja, decisão que adote fundamento de fato ou de direito cujo debate não tenha sido oportunizado às partes, sendo que esse resguardo se aplica, inclusive, no tocante a matérias conhecíveis de ofício pelo julgador, a exemplo da prescrição e da decadência, como se depreende do art. 487, p.u., do NCPC, a seguir transcrito:

“Art. 487 (…)

Parágrafo único – Ressalvada a hipótese do § 1º do art. 332, a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se.” (BRASIL, 2015)

Daí se infere que o efetivo contraditório é intrínseco ao modelo processual cooperativo, adotado pelo art. 6º do NCPC, segundo o qual, a decisão de mérito justa e efetiva é construída a partir da cooperação entre todos os sujeitos processuais, em especial o juiz e as partes, sendo necessário para tanto que seja dada às partes oportunidade prévia e isonômica de ampla e efetiva participação no processo, garantindo-lhes real poder de influência sobre a construção da decisão judicial.

Por oportuno, cita-se lição doutrinária de Marcelo Veiga Franco que, à luz do modelo processual cooperativo, complementa a dupla faceta do princípio do efetivo contraditório, analisando o princípio em tela sob três dimensões:

“Em seu aspecto tridimensional, o contraditório é integrado pelos seguintes elementos: (a) direito das partes à ciência, informação e participação no processo em simétrica paridade (dimensão estática ou formal); (b) prerrogativa de influência das partes na construção do conteúdo da decisão judicial (dimensão dinâmica ou material); (c) direito das partes a terem analisados e considerados pelo juiz os seus argumentos e provas pertinentes à solução da causa, de maneira que o caso concreto seja resolvido unicamente com base nos resultados decorrentes da atividade dos interessados ao provimento (dimensão comparticipativa, na qual a motivação decisória é atrelada ao contraditório).” (FRANCO, 2015)

Ademais, vale lembrar que o princípio do contraditório não se aplica somente no processo civil, mas também no processo penal, no processo administrativo e na seara privada, como determina o art. 5º, LV, da CRFB e dispositivos do Código de Processo Penal, valendo, ainda, citar o recente Enunciado 20 da I Jornada de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal (CJF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e trecho da obra “Curso de Direito Constitucional” do Ministro Gilmar Mendes e de Paulo Branco a respeito do RE 201.819/RJ, precedente paradigmático do STF na linha da eficácia horizontal dos direitos e das garantias fundamentais, isto é, sua eficácia nas relações entre particulares:

“Enunciado 20 da I Jornada de Direito Administrativo – CJF/STJ: O exercício da autotutela administrativa, para o desfazimento do ato administrativo que produza efeitos concretos favoráveis aos seus destinatários, está condicionado à prévia intimação e oportunidade de contraditório aos beneficiários do ato.” (BRASIL, 2020)

“Em julgado de notável relevância doutrinária, o STF alinhou-se, com minuciosa argumentação, a esse e a outros precedentes, em que se admitiu a incidência de direitos fundamentais nas relações entre particulares. No RE 201.819, o redator para o acórdão, Ministro Gilmar Mendes, conduziu a maioria da 2ª Turma ao entendimento de que, diante de uma associação com finalidades de defesa de interesses econômicos – ainda que ela própria não tivesse fins de lucro – a expulsão de associado não pode prescindir da observância de garantias constitucionais, já que “a exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras.” (MENDES; BRANCO, 2018)

Pelo exposto, conclui-se que o princípio do efetivo contraditório, à luz da teoria do processo justo e do modelo processual cooperativo, é fundamental para a concretização do Estado Democrático de Direito, despontando como corolário do regime democrático, na medida em que garante a efetiva participação no processo, que, por sua vez, proporciona a tutela da Constituição e dos direitos fundamentais, de forma que a inobservância do contraditório enseja nulidade processual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS_____________________________

BRASIL. Congresso Nacional. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 jan. 2021.

__. Congresso Nacional. Lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 10 jan. 2021.

__. Conselho da Justiça Federal. Enunciado 20 da I Jornada de Direito Administrativo, de 07 de agosto de 2020. Disponível em: <https://www.cjf.jus.br/cjf/noticias/2020/08-agosto/i-jornada-de-direito-administrativo-aprova-40-enunciados/Enunciados_Aprovados_IJDA.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2021.

__. Supremo Tribunal Federal. MS 24.268/MG. Rel. Min. Ellen Gracie, Red. do acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 05.02.2004, p. 17.09.2004. Disponível em: <redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=86111>. Acesso em: 10 jan. 2021.

__. Supremo Tribunal Federal. MS 25.787/DF. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 08.11.2006, p. 14.09.2007. Disponível em: <redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=486706>. Acesso em: 10 jan. 2021.

__. Supremo Tribunal Federal. RE 636553. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 19.02.2020, Tema 445 da repercussão geral. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4043019&numeroProcesso=636553&classeProcesso=RE&numeroTema=445>. Acesso em: 10 jan. 2021.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, parte geral e processo de conhecimento. 19. ed. Salvador: Juspodivm, 2017.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Volume I. 59. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

FRANCO, Marcelo Veiga. Dimensão dinâmica do contraditório, fundamentação decisória e conotação ética do processo justo: breve reflexão sobre o art. 489, §1º, IV, do novo CPC. Revista de Processo, v. 247, p. 105-136, 2015.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.