A lei da ficha limpa e a presunção de inocência

31 de julho de 2010

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Acaba de entrar no ordenamento jurídico a Lei Comple­mentar 135, tendo como pano de fundo os casos de inelegibilidade a que alude o parágrafo 9º, do artigo 14, da Constituição da República. Objetiva-se proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato. Editada com amplo respaldo da opinião pública, até porque resulta de projeto de lei de iniciativa popular com mais de dois milhões de assinaturas, e maciço apoio dos meios de comunicação, traduziu-se num exemplo inimaginável na história política brasileira e digna de todos os aplausos. Uma verdadeira mudança de paradigma, em que o Congresso Nacional, às vésperas de uma eleição, “corta a própria carne”. Trata-se de valoroso esforço daqueles que buscam a ética na política, a transparência e a melhora da qualidade da representação do poder popular em todas as esferas governamentais e legislativas.

A grande novidade introduzida pela LC 135, sem dúvida, é a inelegibilidade daqueles que tenham contra si determinadas condenações, não apenas na seara criminal, mas em várias outras, desde que proferidas por órgão judicial colegiado e independentemente de trânsito em julgado. A ideia central dessa diretriz consiste no fato de que, diante de uma decisão qualificada, emanada de um coletivo de juízes, já não se poderia invocar, na plenitude, a presunção de inocência. Eis o ponto controvertido que desaguará a partir desta semana nos Tribunais Regionais Eleitorais, por força do início do julgamento de milhares de impugnações aos registros de candidaturas de “Fichas-Sujas”.

Registre-se que as consultas formuladas ao TSE versando sobre a imediata aplicação do novo diploma às eleições de 2010, a incidência retroativa em face daqueles candidatos condenados por um colegiado antes da edição da lei etc. ainda não foram disponibilizadas, sendo certo que nenhum operador do Direito teve acesso aos votos, por força, inclusive, do recesso vigente naquele tribunal superior durante o presente mês. O que se tem são 8 medidas liminares, algumas deferidas, todavia focadas em questões processuais, peculiares dos respectivos casos concretos.

Pois bem. Para o STF, o princípio da presunção de inocência é uma cláusula pétrea (art. 60, §4º, IV c/c art. 5º, §2º, da CF), como salientou o Ministro Celso de Mello, em magistral voto proferido há cerca de dois anos por ocasião do julgamento da ADPF 144-7/DF, proposta pela AMB, através do seu combativo e corajoso Presidente Mozart Valladares, o primeiro a levantar a bandeira de afastar-se a exigência do trânsito em julgado para fins de inelegibilidade. Restou assente no voto condutor que “não existe qualquer possibilidade do Poder Público, sem prévia decisão condenatória irrecorrível, resultar a suspensão temporária da cidadania, em especial o direito de ser votado.” A exigência da coisa julgada é de grande importância para a preservação da segurança jurídica, mormente quando o próprio STF reconheceu no citado precedente que um terço das condenações colegiadas é, por ele, invertido em absolvições. O respeito a este direito fundamental não transgride a exigência de probidade administrativa e moralidade para o exercício do mandato eletivo. Bobbio assevera que, quando dois princípios são igualmente aplicáveis ou conflitantes, ocorre uma antinomia de valores, que in casu é meramente aparente, posto que sanável mediante ponderação. A Suprema Corte, ponderando, optou por privilegiar a segurança jurídica, que é inegavelmente valor constitucional a ser preservado. Segundo o STF, o princípio da presunção de inocência “serve como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou que restrinjam, seja no domínio civil, seja no âmbito político, a esfera jurídica das pessoas em geral”. Poder-se-ia argumentar que à época do julgamento da ADPF inexistia lei própria dispondo acerca da decretação de inelegibilidade antes do trânsito em julgado, todavia tal argumento não resiste a uma análise constitucional. Com efeito, no leading case julgado pelo STF sobre a constitucionalidade do IPMF, ficou assentado que todos os demais princípios constitucionais dispostos fora do art. 5º, da CF, que trata dos direitos e garantias individuais, não podem ser abolidos nem por emenda constitucional superveniente, o que implica afirmar que toda e qualquer modificação à Carta Magna que pretendesse afastar ou, até mesmo mitigar progressivamente — à medida que se sucedem os graus de jurisdição — a presunção de inocência deveria ser considerada inconstitucional por ofensa a uma cláusula pétrea. Logo, se a emenda constitucional poderia ser, em tese, inconstitucional, o que o STF dirá em relação a uma lei complementar?

Impõe-se considerar que seria um grande equívoco remediar a falta de ética na política com a supressão de garantias fundamentais, o que conduz à conclusão, parafraseando o Ministro Dias Toffoli, na recentíssima liminar por ele concedida, de que “a matéria exige reflexão, porquanto a Lei da Ficha Limpa apresenta elementos jurídicos passíveis de questionamentos absolutamente relevantes no plano hierárquico e axiológico”. Por outro ângulo, não se pode olvidar que, diante da busca de critérios para assegurar ao processo eleitoral e ao próprio sistema representativo a transparência e a probidade indispensáveis à permanente construção de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, o grande e soberano juiz, em última análise, há de ser… o eleitor. É a ele, e a ninguém mais, que deve ser assegurado o direito de escolher aqueles que, em seu nome, exercerão o poder popular de que trata o parágrafo único do artigo 1º da Carta Republicana. E a esse direito de escolha deve estar atrelado, indissoluvelmente, um outro que lhe é complementar e não menos importante: o da informação plena sobre a vida pregressa dos candidatos. Com efeito, aquele que postula cargo eletivo de representação não pode se furtar de ter integralmente submetido à exposição pública seu comportamento individual, profissional e social. E é dever da Justiça Eleitoral buscar os mecanismos necessários para que, no momento do voto, o eleitor possa ter à disposição todos os elementos de informação necessários ao exercício pleno, responsável e consciente de sua manifestação de vontade. Tendo o eleitor ciência da conduta pregressa daqueles que lhe disputam o voto, vale dizer, sabendo quais deles se mostraram ímprobos, aéticos, desonestos, já não mais haverá que se falar em restrições, a tal título, ao registro de candidaturas, porque a inelegibilidade acabará sendo decretada pelo próprio cidadão. Não há forma mais legítima de censura do que o voto. Entretanto, enquanto esse amadurecimento eleitoral não vem, enquanto não se vislumbra a possibilidade de inserir na tela de votação a lista de processos a que o candidato responde, outra alternativa não restará senão o enfrentamento da constitucionalidade da LC 135 pelos tribunais, especialmente o STF, reforçando o predominante (e preocupante) ativismo judicial, fruto do vácuo do nosso sistema representativo, que faz com que o Poder Judiciário fique, cada vez mais, no centro do sistema político. Esta ampliação de competências superlativas, tão bem conceituada por Oscar Vilhena como supremocracia, colocará, mais uma vez, o guardião-intérprete da Constituição no centro das tensões entre a vontade popular originária e a derivada. Que Deus o ilumine.