Crise e desafios à Constituição reflexões acerca da relação entre Constituição, Povo e Estado a partir da discussão de uma Constituição para a Europa

31 de julho de 2010

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A proposta de uma Constituição para a Europa acendeu um intenso debate que possibilitou o levantamento de questões centrais não só para a Teoria da Constituição e para os especialistas em Direito Constitucional, mas para a vida cotidiana de todo aquele que se veja ou pretenda se ver como cidadão de uma comunidade política institucionalizada com base no respeito aos direitos de igualdade e liberdade recíproca e respectivamente reconhecidos a todos e a cada um de seus membros. Seria possível hoje uma Constituição sem povo ou um povo sem Constituição? Seria possível hoje uma Constituição sem Estado ou um Estado sem Constituição? Essas questões exigem que nos aprofundemos na relação entre a Constituição, a institucionalização da política e a efetivação dos direitos fundamentais.

Viveríamos em uma época de tamanha complexidade que a ideia mesma que compartilhamos de Constituição encontrar-se-ia em xeque, em crise, por não mais dar conta de articular recíproca e institucionalmente o Direito com a Política; ou, na verdade, não haveria nada de errado com o conceito por nós compartilhado de Constituição e, portanto, seria de se requerer precisamente uma férrea imposição judicial que sempre determinasse o cumprimento coercitivo da literalidade do texto constitucional como a única resposta capaz de coibir a recorrência de práticas inconstitucionais desafiadoras que acabariam por (des)qualificar a Constituição.

Será que, de fato, estaríamos diante de enfoques alterna­tivos excludentes entre si e que apenas um deles poderia ser produtivo e o outro necessariamente enganoso? Ou haveria uma outra forma de abordar o problema da efetividade das normas constitucionais, mais complexa, que ultrapassasse a simplicidade dessas duas perspectivas dicotômicas e excludentes, revelando que ambos os enfoques originalmente propostos seriam por demais estreitos e limitados e a própria dicotomia uma armadilha conceitual a ser superada para que novos horizontes possam se abrir?

Iniciemos, portanto, por trabalhar um pouco a hipótese da crise. Contra aqueles que caracterizam a nossa época como um tempo de crise, acredito perfeitamente cabível pedir-lhes que se indaguem se são capazes de se recordar de qualquer período de suas vidas que não fosse marcado pelo reconhecimento de crises em curso.

Devemos ter presente que vivemos em uma sociedade moderna, uma sociedade complexa e em permanente crise; pois, ao lidar racionalmente com os riscos da sua instabilidade, ela faz da própria mutabilidade o seu moto propulsor. A crise, para esse tipo de organização social, para essa móvel estrutura societária, é a normalidade. Ao contrário das sociedades antigas e medievais, rígidas e estáticas, a sociedade moderna é uma sociedade que se alimenta de sua própria transformação. E é somente assim que ela se reproduz. Em termos de futuro, a única certeza que dessa sociedade podemos ter é a sua sempre crescente complexidade.

Portanto, a primeira alternativa, para ser aceitável, requer matizes, pois tudo o que é permanente em uma sociedade como a nossa é mutável; ou seja, é capaz de incorporar mudanças para garantir a sua permanência, de adquirir novos sentidos no devir de gramáticas de práticas sociais cada vez mais complexas. E esse processo é sempre doloroso para nós, visualizado como crise, instabilidade. Desse modo é que a crise da Constituição pode e deve ser enfocada, mais precisa e rigorosamente, não como uma crise da Constituição tout court, mas como uma crise dos excessos de expectativas nela depositadas como integrantes de uma determinada concepção histórica de Constituição não mais sustentável em face da comprovação vivencial de suas implausibilidades.

Do outro lado da dicotomia inicial, a segunda alternativa é, na verdade, ao meu ver, apenas a reação emocional e magoada à árdua lição que o excesso de expectativas depositadas no Estado Social e em sua Constituição programática vivencialmente nos ensinou. Se o Direito não é capaz de regular nem a sua própria aplicação, ou seja, se uma norma não se autoaplica e, ao contrário, sempre requererá a mediação do intérprete e a cuidadosa análise da situação concreta em que se pretende a sua aplicação,[1] a tentativa do Direito de colonizar a vida, de regular através de leis gerais e abstratas, de antemão, toda a complexidade da vida, fragiliza ainda mais o Direito.

A Constituição canaliza e viabiliza a democracia, mas se espera-se que ela, unicamente por seu texto normativo, possa substituir, apenas a título de exemplo, o tratamento político dos problemas políticos e o cuidado econômico das questões econômicas por imperativos constitucionais cogentes que dispensem o jogo democrático e a condução concreta de políticas econômicas e sociais, terminar-se-á por pagar o preço do incremento da desestima constitucional a corroer toda a sua potencial força normativa e a gerar a ineficácia de suas normas, produzindo, na prática, efeitos opostos aos almejados.

Maurizio Fioravanti, ao reconstruir a história semântico-institucional do termo “Constituição”, verifica que, ao contrário do que fez a tradição, não mais podemos opor como domínios antitéticos a ideia de “Constituição” à de “democracia” ou “soberania popular”, pois o constitucionalismo  só é efetivamente constitucional se institucionaliza a democracia, o pluralismo, a cidadania de todos, se não o fizer é despotismo, autoritarismo; bem como a democracia só é democrática se impõe limites constitucionais à vontade popular, à vontade da maioria. Se assim não for, estaremos diante de uma ditadura, do despotismo, do autoritarismo.[2]

Certamente a manipulação estratégica do arcabouço constitu­cional é sempre possível. Na Teoria da Constituição clássica, foi exatamente para enquadrar esse tipo de embuste histórico que Karl Loewenstein, na sua classificação ontológica, criou a categoria das constituições por ele qualificadas como “semânticas”. Essa categoria foi pensada por Loewenstein para agrupar as constituições que traíssem o sentido originariamente atribuído a essa invenção moderna ao se instituírem e funcionarem não mais como uma garantia dos cidadãos contra os eventuais ocupantes do poder institu­cionalizado; mas, ao contrário, como uma garantia dos deten­tores do poder contra os cidadãos.[3]

Para a atual Teoria da Constituição, essas experiências históricas traem o próprio constitucionalismo e dele buscam abusar em proveito próprio, por isso mesmo, de modo algum podem ser consideradas experiências constitucionais.

O atual debate acerca da adoção de uma Constituição para a Europa é diretamente afeto ao problema do deficit de legitimidade da organização jurídico-política da União Europeia. Por isso mesmo, iniciaremos a nossa abordagem da questão pelo aspecto da possibilidade de uma Constituição sem Estado, para, em seguida, discutirmos a também necessária relação entre Constituição e povo, muito embora, no processo de apronfundamento do tema, já tenhamos que proceder à reflexão sobre a desnaturalização dos conceitos de povo, de nação e de Estado, vendo-os em sua profunda correlação política interna.

Essa é uma discussão que já não é mais tão nova e sobre a qual se pode contar hoje com uma significativa literatura acumulada. Ela vai encontrar densificação doutrinária pela primeira vez em um sofisticado artigo escrito por Dieter Grimm, em que ele busca desenvolver os fundamentos do parecer da Corte Constitucional Federal da Alemanha a favor da ratificação do Tratado de Maastricht.[4]

Em síntese, a Corte Constitucional, enquanto guardiã dos direitos fundamentais dos cidadãos alemães, somente opinara favoravelmente à ratificação do Tratado porque ele não significaria de modo algum a adoção de uma Constituição para a Europa, não colocando em risco, assim, a cidadania do povo alemão.

Dieter Grimm inicia seu artigo recuperando a distinção clássica entre as constituições e os tratados internacionais. As constituições fornecem  fundamento jurídico aos Estados, juridicizam a política; as organizações internacionais, por sua vez, encontram seu fundamento jurídico nos tratados de direito internacional. Essa distinção, antes pacífica, agora passa a ser problemática diante de instituições como a União Europeia, uma organização internacional fundada em um tratado internacional celebrado por Estados soberanos que delegaram parcelas de soberania à União. Como afirma Grimm, nem por isso ninguém afirma existir um Estado europeu. Ao contrário, tema recorrente é o da crise dos estados nacionais. No entanto, a todo o momento fala-se da Constituição da União Europeia, muito embora ninguém pense que a União seja um Estado. Por um lado, a doutrina de Direito Internacional, ao comentar os tratados internacionais sobre os quais a existência da União se assenta, considera-os a Constituição da UE. Também a Corte de Justiça Europeia toma as suas decisões fundando-se no que denomina “Constituição da União Europeia”. Por “Constituição da União”, o Tribunal entendia precisamente o tratado que dava base àquela organização supranacional de Estados nacionais, nele fundamentando suas decisões sobre o Direito europeu. Por outro lado, percebia-se a insuficiência em termos de legitimidade da base pactual e lamentava-se a ausência de uma Constituição europeia. Assim é que, bem antes da celebração do Tratado de Maastricht, vamos encontrar um movimento forte em prol da adoção de uma Constituição Federal para a União Europeia.[5] Como salienta Dieter Grimm, havia assim duas perspectivas diversas; ou a Constituição preexistiria na forma de tratado ou esse tratado não seria capaz de satisfazer as pretensões passíveis de serem levantadas diante de uma Constituição. No entanto, para as duas perspectivas, em que pese a divergência teórica quanto à existência da Constituição, estavam de acordo com a hipótese fundamental de que a União Europeia, embora não sendo um Estado, seria capaz e precisaria de adotar uma Constituição.

Ao ver de Dieter Grimm, é no debate político sobre o tratado de Maastricht que se descobre, a um só tempo, por um lado, o quanto a integração europeia já avançara e era, ainda que não houvesse sido totalmente percebida pela política e pela opinião pública, determinando as políticas nacionais e consolidando o direito comunitário e a jurisprudência da Corte de Justiça Europeia; e, de outro lado, o deficit de democracia presente na arquitetura institucional da União, que a  partir de então domina o debate europeu. Muito embora os cidadãos dos Estados membros tenham os seus interesses afetados pelos da União Europeia e se encontrem submetidos às suas normas jurídicas, a influência do Parlamento Europeu, por eles diretamente eleito, sobre essas normas é muito pequena. O órgão denominado Parlamento Europeu quase nada tem a ver com a visão que o europeu em geral tem do parlamento enquanto órgão legislativo e de controle político do Executivo, do governo.

Dieter Grimm ressalta que, na arquitetura institucional da União Europeia, o Parlamento é, de longe, o órgão de menor peso específico, as decisões europeias, inclusive as de tipo legislativo, são determinadas pelo Executivo; mesmo depois do tratado de Maastrichtt, o Parlamento continua limitado ao direito de veto. Nesse quadro institucional, a legitimidade democrática das normas europeias é indireta; ela é devida à legitimação democrática dos governos nacionais. Pois são esses governos nacionais que compõem o Conselho, o verdadeiro centro decisório da União Europeia. Desse modo é que essa discussão perpassou também a aprovação dos tratados de Amsterdã e de Nice.

Revelados os termos do dilema, Dieter Grimm faz um estudo em profundidade do constitucionalismo, contrapondo-o ao direito internacional, demarcando a distinção entre a Constituição e o tratado internacional exatamente na capaci­dade da primeira de produzir legitimidade. O cerne do constitu­­cionalismo, portanto, seria essa afirmação básica e implausível segundo a qual constituímos uma comunidade de pessoas reciprocamente livres e iguais, regidas por leis de nossa própria autoria. A ideia de uma cidadania, de um povo. Um povo que assume o seu próprio governo, a sua própria organização. A ideia de povo é uma ideia básica à Constituição. É claro que Grimm é um autor sofisticado e não vai trabalhar essa questão como Carl Schmitt o faz, por exemplo. O povo, para Grimm, não é um dado, é um constructo, uma construção social, que possibilita, inclusive, pessoas diferentes, formas de vida diferentes, através dos mecanismos constitucionais, conviverem, serem iguais na sua diferença, se respeitarem.

A Constituição, distinguindo-se das demais normas do ordenamento que nela encontram fundamento, estabelece o consenso fundamental de uma sociedade acerca dos princípios de sua convivência e da regência de seus conflitos; obrigando sujeitos heterogêneos em termos de convicções e de interesses, possibilitando assim a resolução pacífica dos conflitos e facilitando-lhes a aceitação das derrotas. Assim é que, ao dilatar no tempo a validade a longo prazo dos fundamentos do agir político e das decisões públicas necessárias a curto prazo, ela confere ao processo político uma estrutura de direção, de orientação, para os atores e a opinião pública, garante estabilidade na mudança e libera a política da constante necessidade de discutir seus fins e procedimentos de integração. Paradoxalmente, no entanto, a Constituição não gera por si só essas prestações; para realizá-las, ela também se alimenta de pressupostos sociais que ela mesma, no entanto, não tem como garantir, que dependem, em última instância, do próprio bom funcionamento da política como democracia, por um lado e, por outro, do Direito, enquanto efetividade do pluralismo e aberturas inerentes aos direitos fundamentais.

Todo esse trabalho de profunda argumentação a respeito da distinção atualmente viável entre tratados e constituições que Grimm vem desenvolvendo ao longo do artigo o conduz a produzir uma sólida defesa do parecer da Corte Constitucional Federal da Alemanha a favor do Tratado de Maastricht. No cerne da argumentação encontra-se o risco de um Parlamento com as competências próprias do órgão para os europeus, ou seja, aquelas típicas de legislação e de controle do governo no regime parlamentarista, se tornar autônomo em relação àqueles que deveria representar, colocando também em risco a soberania, os direitos fundamentais, do cidadão alemão. Na Europa ainda não haveria uma esfera pública em que um debate público acerca das decisões sobre a vida em comum do europeu abrisse a circulação de um fluxo comunicativo de sorte a possibilitar a formação de uma opinião pública consistente sobre as leis acolhidas e os direitos reconhecidos que permitisse reconhecer a existência de um povo europeu. Ainda não haveria uma arena comunicativa europeia de solidariedade cidadã que possibilitasse a adoção de uma Constituição.

A Constituição, exatamente em razão desse aspecto de mediação recíproca entre a autonomia privada e a autonomia pública dos cidadãos, requeria a pré-existência das mediações necessárias à representação da vontade popular, de tal sorte que aqueles que a defesa da adoção de uma Constituição representaria um risco para a cidadania dos estados nacionais.

Para Grimm, portanto, o Tratado seria constitucional, na leitura da própria Corte Constitucional Federal Alemã, já que mantinha a estrutura originária daquela organização política decorrente de um tratado, não instituía um Estado, exatamente por não possibilitar a produção direta de legitimidade nas suas próprias instituições. A legitimidade dessa organização política decorreria dos estados nacionais dela integrantes, como em qualquer outro tratado. O Conselho, responsável pela condução dos negócios da Europa, exerce também competências legislativas. O Parlamento Europeu, votado pelos cidadãos integrantes dos estados europeus, tem apenas um poder de restrição, de veto.

Na medida em que não existe um povo europeu, haveria o risco de órgãos autenticamente constitucionais se autonomizarem, de forma incontrolável, correndo-se o risco de os graves problemas burocráticos já existentes nos estados europeus se reproduzirem em escala muito maior na Europa como um todo. Por isso, a Corte Constitucional Alemã defendeu o Tratado de Maastricht contra a ideia de uma Constituição, sob o argumento de que a soberania do povo alemão poderia ser ameaçada pela possibilidade de autonomização desses órgãos supranacionais.

A função da Constituição é precisamente possibilitar a legitimação da Política e a efetividade das normas gerais e abstratas do Direito, ou seja, a articulação entre a política e o Direito. Através dos procedimentos jurídicos, a tomada de decisão, a política, é canalizada por procedimentos jurídicos, adquirindo assim legitimidade. Por outro lado, o Direito moderno, enquanto conjunto de normas gerais e abstratas, através da imposição de sua observância coercitiva pelo aparato estatal, ou seja, pela política na sua forma moderna, ganha efetividade.

Jürgen Habermas, acolhendo todo o profundo estudo de Dieter Grimm, formula a indagação se, precisamente em razão de toda a distinção trabalhada por Grimm, que aponta para a necessidade de uma constituição para a instituição de um povo, a Europa não deveria acolher uma estrutura organizativa para a União, capaz de articular política e direito, capaz de produzir legitimidade, de gerar um povo europeu? Habermas defende que as condições objetivas para tanto se encontrariam em condições de maturação, faltando o reforço institucional. Para Habermas, a Europa, por se fazer, precisa se transformar em um Estado federal supranacional e se dotar de uma constituição legitimada pelo pronunciamento popular. Para ele, construir a Europa, forjar um povo europeu, significa contrapor um modelo de civilização fundado na política ao modelo ancorado exclusivamente no mercado que vem se impondo em todo o mundo como se a sociedade hipercomplexa de hoje pudesse ignorar a dimensão dos direitos e da cidadania.[6]

Na mesma linha de argumentação, Etienne Balibar havia escri­to, em colaboração com Immanuel Wallerstein, e publi­cado já em 1988 a obra “Race, nation, classe: les identités ambiguës”, em que, contra os discursos neonazistas, promove a deseontologização do conceito de nação, demonstrando seu vínculo na modernidade com o projeto político-estatal, com o projeto de dominação político-juridica. O povo aparece aqui como o resultado de um projeto político bem sucedido ou como a aspiração à autonomia político-jurídica, como um projeto de Estado. Balibar tem contribuído para a discussão aplicando seus desenvolvimentos teoréticos acerca do conceito de nação diretamente ao debate inaugurado pela posição eurocética de Dieter Grimm, de um lado, e pelo europeísmo convicto de Habermas, de outro, com uma série de artigos mais recentes, agora reunidos em um volume.[7] A reflexão sobre a questão hoje é imensa, envolvendo a contribuição de autores do porte de Alain Touraine, Claus Offe, Luigi Ferrajoli, Giacomo Marramao, Alessandro Pizzorno e Philippe Schmitter e tantos outros.

O mais relevante é que no cerne da discussão acerca de uma Constituição para a Europa, ou da possibilidade de uma Constituição sem Estado ou de uma Constituição sem povo, abre-se um amplo espectro de possibilidades que delineiam não somente uma Europa possível, mas a reescrita de muitos dos vocábulos centrais do léxico político-constitucional da modernidade: soberania e Estado, Constituição e poder constituinte, Direito e direitos.

Além, é claro, do impacto doutrinário que uma revisão conceitual do significado da que se encontra em curso exerce sobre o direito constitucional em todos os lugares, o que essa discussão poderia ter a ver diretamente conosco e com a nossa história constitucional?

Nossa própria história institucional e como nação, como povo, é bastante peculiar. Tivemos formalmente uma Constituição muito antes de sermos ou de nos constituírmos como uma nação. A história do Brasil revela isso claramente. Há um autor, extremamente interessante, Ilmar Rohloff de Mattos, que escreveu uma obra intitulada “O Tempo Saquarema”, de leitura obrigatória para quem pretende conhecer um pouco mais nossa história constitucional no sentido mais profundo da expressão. Como demonstra Rohloff de Mattos, foi somente no Segundo Reinado, após a maioridade de Pedro II, que conseguimos internalizar a ideia de pertinência a uma nacionalidade, a brasileira.[8]

A fragilidade institucional de órgãos constitucionais de cúpula em face da hipertrofia do Executivo é recorrente em nossa história jurídico-política. A autonomização funcional desses órgãos de cúpula é um risco concreto que temos que enfrentar. E a atual doutrina constitucional, precisamente em razão de revisões como as que vimos, nos habilita a enfrentá-lo.

Apenas a institucionalização de espaços públicos, media­tizados pelo reconhecimento da igualdade e da liberdade de todos os co-cidadãos, pode contribuir para a formação dessa identidade constitucional, a um só tempo, abstrata e solidária. Abstrata posto que universal, aberta, pois ela deve ser capaz de permanentemente incorporar as diferenças existentes e que venham a se tornar visíveis a partir das lutas por reconhecimento dos mais distintos grupos, reconhecendo-as como expressões constitucionalmente garantidas de liberdade na igualdade solidária da cidadania. Como Habermas bem argumenta, isso se torna mais factível no terreno institucional que as constituições possibilitam. No entanto, o aparato institucional por si só, como salienta Dieter Grimm, não basta, há o risco de sua autonomização. Temos que resgatar nossas melhores tradições constitucionais, repensá-las e mesmo reinventá-las, ou, para dizer como Giácomo Marramao, referindo-se à democracia, arrancá-las do desvio em que são reduzidas a “um sistema de reprodução das oligarquias separado das formas de vida”  dos dois lados do Atlântico.

Certamente, o raciocínio de Grimm não é simplista, é rico e complexo; mas, em razão dos seus próprios fundamentos, podemos pensar e analisar a conclusão a que chega, somente um espaço institucional constitucionalmente mediatizado pode gerar cidadania, gestar povo. Como essa tensão entre o respeito a todos e a um governo que é das leis, que é da Constituição. Um Presidente que se submeta às leis, que não ocupe o lugar da soberania popular, como se pudesse encarná-la, que reforce as instituições como o Congresso e próprio Supremo, deles cobrando que exerçam seus papéis constitucionais. Esse é o desafio posto a todos nós. Um Presidente que não infrinja recorrentemente seus limites constitucionais. Um Congresso que efetivamente não desconheça a centralidade de suas competências constitucionais, buscando ocupar exatamente o centro do processo de formação da opinião pública, de sorte a permitir a todos nós nos considerarmos co-autores das leis que nos regem. Um Supremo Tribunal Federal que não continue a permitir, por exemplo, a privatização do processo legislativo, tomado como prerrogativa pessoal do parlamentar e não como garantia do próprio regime democrático. Imagine, qual o significado do seu voto nessa eleição que acabou de passar, se você votou na minoria e a minoria pode ser tratorada pela maioria? Se as normas regimentais não impedem a ditadura da maioria, se são apenas normas interna corporis, ou seja, da eventual maioria? Elas não interessam a nós como povo. Esse é o risco que o direito constitucional tem que enfrentar hoje. Palavras gordas como povo, democracia, sabemos, hoje, são manipuladas, são manipuláveis, e é preciso preservar a pluralidade e a abertura da identidade constitucional.[9]

Na verdade, um debate como esse certamente desperta a nossa responsabilidade para com a construção de nossa própria cidadania, porque, ao contrário da Europa, não temos que discutir se temos ou não uma Constituição. Temos uma Constituição e, inegavelmente, temos Estado.

O problema continua a ser, portanto, o do reforço institucional, o da conquista de credibilidade institucional, o da não-autonomização privatizante do público, sobretudo nas esferas mais altas dos órgãos constitucionais.

O risco tornou-se claro, há a possibilidade permanente de que os detentores do poder usem-no em proveito próprio, de eles se tornarem autônomos em relação àqueles a quem deveriam prestar contas e de contra eles operarem, por isso mesmo as constituições e o direito constitucional foram inventados.

As constituições, no entanto, como bem salienta Dieter Grimm, não têm como garantir a si próprias, elas não podem obrigar à cidadania.

No próprio Brasil, portanto, pode haver o risco recorrente de autonomização dos órgãos constitucionais máximos. Pode haver, sim, uma Constituição sem povo!

O preço é o da redução da Constituição a uma simples fachada, o da sua incapacidade de produzir legitimidade, gerando, ao contrário, descrédito institucional e anomia.

A meu ver, o grande desafio que a nossa época nos coloca, tanto no Brasil quanto na Europa, é o da reconstrução de uma Teoria da Constituição que seja capaz de enfrentar esses
riscos de forma consistente, sem aniquilar a própria conquista evolutiva consubstanciada na invenção da constituição formal,
ou seja, apta a superar a pequenez da doutrina privatista do Estado Liberal e a pretensão excessiva da doutrina constitucional do Estado Social, ao não acolher um conceito de Constituição como uma simples barreira ao Estado e ao recusar igualmente a pretensão abusiva de que a Constituição possa nos dispensar da Política ao invés de canalizá-la, juridicizando a Política.

É preciso, para dizer com Luhmann, procedermos ao iluminismo do iluminismo, ou, com Habermas, assumirmos levar adiante o projeto inacabado da modernidade no âmbito da doutrina e da prática do Direito Constitucional. Para esse projeto, a possibilidade de se ver os riscos é a primeira condição para o seu enfrenta­mento consistente e racional desses mesmos riscos.

Este artigo é basicamente a republicação daquele que, sob o título “A Constituição da Europa”, integrou a obra organizada por SAMPAIO, José Adércio Leite. “Crise e Desafios da Constituição”. Belo Horizonte, Del Rey, 2003, págs. 281 a 289.

__________________________

[1] Ver a esse propósito CARVALHO NETTO, Menelick. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. “Revista de Direito Comparado”, Belo Horizonte, v. 3, p.473-86, maio,1999. _______. A interpretação das leis: um problema metajurídico ou uma questão essencial do Direito? De Hans Kelsen a Ronald Dworkin.
“Cadernos da Escola do Legislativo”, Belo Horizonte, n. 5, p. 27-30, 1997.

[2] FIORAVANTI, Maurizio. “Constitución: de la antigüedad a nuestros dias”. Madrid: Editorial Trotta, 2001.

[3] LOEWENSTEIN, Karl. “Teoria de la Constitución”. Barcelona: Ariel, 1964.

[4] GRIMM, Dieter. “Una costituzione per l’Europa?” In: ZAGREBELSKY, Pier Paolo (org.). Il Futuro della costituzione. Turin: Einaudi, 1996..

[5] Cfr. O primeiro “Projeto de uma Constituição da União Europeia”, de 9 de setembro de 1993, é apresentado pelo Comitê Institucional do Parlamento Europeu e revisto em 10 de fevereiro de 1994, e, sob essa forma, objeto no mesmo dia de um debate parlamentar que culminou na “Resolução para a constituição da União Europeia”.

[6] HABERMAS, Jürgen. “Uma constituição para a Europa? Observações sobre Dieter Grimm” in A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São Paulo: Ed. Littera Mundi , 2001. _________ “A Europa em transição” in Era das transições. Rio de Janeiro: Ed. Tempo Brasileiro, 2003. _________ A inclusão do outro. São Paulo: Edições Loyola, 2002. Capítulo IV.

[7] BALIBAR, Etienne. Nous, citoyens d´Europe? Les frontières, l´État, le peuple. Paris: Éditions La Découverte, 2001.

[8] MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. São Paulo: Uciel, 1987.

[9] Ver a propósito ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.