Edição 109
O Petróleo e a Ilusão do Golpe de Sorte
31 de agosto de 2009
Fabricio do Rozario Valle Dantas Leite Procurador do Estado do Rio de Janeiro
O jornalista e escritor polaco Ryszard Kapuscinski dizia que o petróleo dá a ilusão de uma vida totalmente mudada, uma vida sem trabalho, uma vida sem graça, refletindo com perfeição o eterno sonho humano de riqueza conquistada com um golpe de sorte. E concluía que, neste sentido, o petróleo é um verdadeiro conto de fadas e, como todo conto de fadas, um pouco mentiroso.[1]
De fato, é um grande golpe de sorte, ainda mais quando se descobriu que a quantidade de energia contida em um barril de petróleo equivalia à de quase cinco quilos de carvão de qualidade superior, ou a mais de dez quilos de madeira, ou mesmo ao trabalho de um dia de cinquenta escravos bem alimentados.[2]
A descoberta desta equação no final do século XIX alterou definitivamente a matriz energética e a economia mundial, possibilitou o surgimento do primeiro milionário da história e transformou a geopolítica, com a divisão do mundo em países consumidores, países produtores e países estratégicos, em função do petróleo.
Mais de 100 anos depois, pouca coisa mudou neste cenário em termos absolutos. Talvez os métodos comparativos tenham evoluído, com a entrada em cena da energia elétrica e de outras fontes de energia. Certamente as formas de se aproveitar a energia dos hidrocarbonetos também se aprimoraram, com novos meios de transporte e novos usos industriais, como a petroquímica. Mas, com um sexto de toda a economia mundial atual dedicada às atividades de upstream, procurar e produzir petróleo ainda guardam a mesma importância econômica que possuíam há um século.
A dependência do petróleo como o principal elo da matriz energética mundial em nada difere do que se verificava em 1860, com o uso abundante da querosene na iluminação pública, ou em 1910, quando os norte-americanos se deliciavam com as primeiras corridas de automóveis e compravam o popular Modelo T, criado por Henri Ford, gerando um amplo consumo de gasolina.
A tríade quase lotérica de rocha geradora, rocha reservatório e rocha selante, vital para possibilitar a exploração e a explotação do petróleo, cuja existência simultânea é tão difícil quanto a possibilidade de se tirar um sete, jogando o dado por seis vezes consecutivas[3], convive com a velocidade voraz do uso do petróleo, ultrapassando em mais de 100 mil vezes o tempo necessário para que ocorra a sua acumulação natural[4].
Por estes fatores, a descoberta em solo brasileiro de reservas abaixo da camada de sal é motivo de comemoração para o país.
Já para os Estados e Municípios produtores de petróleo, poderá ser um enorme paradoxo. Se, por um lado, de seus territórios ou áreas litorâneas limítrofes pode jorrar óleo suficiente para colocar o Brasil em posição de destaque diante de uma das mais importantes indústrias do mundo, por outro lado, a população destes entes pode vir a sofrer problemas imediatos e futuros, caso haja, em pleno jogo, mudança das regras estabelecidas desde a Constituição de 1988.
Estas regras foram criadas justamente para reparar os danos regionais decorrentes, não só do claro impacto ambiental da exploração de petróleo e gás, mas também da alocação de recursos tendentes a prover somente a pesada e cara infraestrutura necessária às atividades petrolíferas.
O foco exclusivo de investimentos em unidades de processamento, terminais, oleodutos e plataformas promove verdadeiras distorções na economia local, que são sentidas a cada queda do preço do barril ou, de maneira mais profunda, quando as reservas começam a secar, e se percebe que atividades mais sustentáveis foram abandonadas totalmente ou deixadas de lado pela ilusão imediatista de se apostar apenas em uma indústria finita como única fonte de desenvolvimento regional.
Para citar um exemplo concreto, quando o petróleo começou a jorrar no Gabão, sua pequena população urbana começou a usufruir os confortos da importação: dos artigos de luxo aos alimentos de primeira necessidade. Um quarto de século mais tarde, depois de o pequeno país do centro-oeste da África ter chegado a se tornar o maior importador de champanhe per capta do mundo e a consumir produtos agrícolas europeus, quando os poços começaram a secar, a ressaca do petróleo[5] trouxe desespero para a população, que havia deixado de produzir seus próprios alimentos em prol da dedicação exclusiva a investimentos na indústria do petróleo.
É claro que não se pode desprezar o golpe de sorte de um país possuir jazidas de petróleo vultosas e muito menos o fato de ter desenvolvido tecnologia suficiente para tornar sua exploração economicamente viável, ainda que em condições extremamente hostis como as altas profundidades do pré-sal.
Porém, não se pode perder de vista o custo que o desenvolvimento desta indústria e, por via de consequência, do país, irá exigir regionalmente, ou seja, daqueles que conviverão diretamente com esta produção.
Neste caso, a necessidade imediata de desenvolvimento do país deve andar em paralelo com a preocupação mediata de desenvolvimento regional, preparando condições para que ao fim e ao cabo das atividades exploratórias, quando as reservas se tornarem economicamente inviáveis, as regiões produtoras não dependam apenas da política e dos recursos federais, que claramente terão privilegiado por décadas uma indústria com data marcada.
Por este motivo, a Constituição de 1988, no § 1o do artigo 20, garantiu expressamente aos Estados e Municípios, cuja exploração de petróleo ou gás natural ocorra no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, o verdadeiro “direito subjetivo da unidade federada”[6]de receber compensações financeiras por esta exploração ou participação direta no seu resultado, como consequência de suportar uma indústria economicamente predatória e com evidentes impactos ambientais.
Atualmente, adota-se no Brasil um modelo que vem dando certo desde a edição da Lei 9.478/97, que se baseia na previsão constitucional da compensação financeira. Por este modelo, denominado modelo de concessão, a concessionária fica com todo o resultado da produção e o pagamento à União e aos Entes produtores ocorre por via de tributos e compensações financeiras, como, por exemplo, os royalties e as participações especiais.
Trata-se do modelo conhecido internacionalmente como Royalty/Tax – R/T, que goza de ampla aceitação do mercado e vem retribuindo de forma justa, não só os Estados e Municípios produtores, como a própria União.
A mudança deste modelo para o de partilha da produção, que vem sendo aventada para as áreas de pré-sal, sofre fundada resistência técnica do próprio órgão regulador do setor, ou seja, da Agência Nacional de Petróleo[7], e causará incerteza jurídica e econômica no mercado.
Além disso, apresentará impacto negativo na arrecadação dos entes federativos, pois, no desenho que está sendo construído, a obrigação imposta à empresa contratante seria a de financiar por sua conta e risco o desenvolvimento da área contratada, bem como a de pagar remuneração governamental, através de uma parcela líquida da produção (profit oil), após a dedução dos custos da produção (cost oil), e esta parcela ficaria concentrada na União, retirando o demais entes federativos do regime de repasse direto de recursos.
A necessidade de se distribuir os benefícios do petróleo com toda a população do país e não apenas regionalmente e a alocação equivocada de recursos públicos decorrentes do petróleo, utilizados como principais argumentos para se desconsiderar o Texto Constitucional na futura regulamentação legal das reservas do pré-sal são certamente duas falácias.
Em primeiro lugar porque, hoje em dia, a maior parte do valor recolhido com as participações governamentais na indústria do petróleo já é destinada à União e, por via de consequência, passível de ser utilizada de forma nacional.
Sem contar que o government take petrolífero no Brasil é um dos mais baixos do mundo, equiparando-se a países desenvolvidos como o Reino Unido, mas bem abaixo de países subdesenvolvidos, como Angola[8]. Caso sejam insuficientes os recursos, tendo em vista as enormes reservas do pré-sal e a dificuldade crescente de se descobrir novos campos economicamente viáveis no mundo, basta aumentar o valor devido pela contrapartida governamental às atividades da indústria do petróleo, com base, inclusive, na atual legislação vigente, e não mudar um regime que vem funcionando bem há mais de uma década, responsável inclusive pela autossuficiência da produção, atingida depois de menos de uma década da implementação do modelo.
Por outro lado, equívocos na utilização de recursos públicos são motivos para se utilizar de garantias que a própria Constituição assegurou à sociedade, com a atuação de órgãos independentes e mecanismos eficazes de controle dos gastos públicos, e não para se desconsiderar norma constitucional explícita.
Retirar simplesmente os recursos da disposição dos Estados e Municípios produtores, além de solução que viola cláusula pétrea (princípio federativo) e o § 1o do artigo 20 da Constituição, causaria, em curto espaço de tempo, o direcionamento exclusivo de várias regiões do país a uma única atividade econômica de vida limitada, e, a médio e longo prazo, pobreza regional por falta de investimento e poder de estímulo dos governos locais a outras atividades econômicas com maior sustentabilidade temporal.
Seria como viver na ilusão de um grande golpe de sorte e acordar na realidade de uma vida totalmente mudada e efetivamente sem graça e sem trabalho.
[1] KAPUSCINSKI, Rysard. “Shah of Shahs”. Nova York: Harcourt,1983, p. 34-35
[2] DAVIDSON, Jon P. et al, “Exploring earth: An introduction to physical geology”. Prentice Hall: 2002. p. 389
[3] SHAH, Sonia. “Crude: The Story of Oil. Seven Story Press”. 2004. p. 21. Trecho da entrevista da autora com o professor aposentado de geologia da Princeton University, Kenneth Deffeyes
[4] PRICE, David. “Energy and Human Evolution”. Population and Evironment. Springer Netherlands: March 1995. pp. 301-319
[5] SHAH, Sonia. op. cit. p. 110
[6] Expressão utilizada pelo ministro Gilmar Mendes no julgamento do MS no 24.312-RJ
[7] Cf.: Nota Técnica no 021/2007-SCM
[8] Dados da consultoria Wood and Mackenzie, no estudo: “Government Take – A Worldwide comparison – 100 mmbbl model field”