31 de março de 1964 – Dia de vergonha nacional!

28 de abril de 2014

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Incendio da UNE 1964Especial: 50 anos do Golpe

1o de abril de 1964 – Opróbio do Regime Democrático!

Exercia na ocasião a direção de jornalismo na Rádio Marconi, que tinha seus estúdios no 22o andar do prédio da Rua Santa Tereza, no 20, esquina com a Praça da Sé, em São Paulo, posteriormente implodido. Na véspera, tivéramos uma reunião no Sindicato dos Metalúrgicos com o presidente e o vice da instituição, Afonso Delellis e Araújo Plácido, além de outros 50 sindicalistas, face os graves acontecimentos políticos que ocorriam. O encontro terminou por volta das 4h.

Na ocasião, eu residia no Hotel Lord, na Rua das Palmeiras, e por volta das 10h fui acordado pelo companheiro Dorival de Abreu, comunicando a rebelião comandada pelo general Mourão Filho, que vinha se deslocando com tropas do Exército de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro.

Face o acontecido, sugeri uma visita ao general Amaury Kruel, então comandante do III Exército, para pedir garantias para o funcionamento da emissora, em face da possibilidade de o governador Ademar de Barros cometer a arbitrariedade de intervir, mandar fechar a Rádio e interromper as transmissões, tendo em vista que, ostensivamente, ele já havia se posicionado contra o Governo Federal – conforme seus pronunciamentos públicos. O general Kruel nos recebeu, ouviu as nossas ponderações e deu garantia de que poderíamos ficar tranquilos e continuar transmitindo, pois, segundo suas palavras: “O Ademar é um fanfarrão e não vai fazer nada”. Diante de sua afirmativa, retiramo-nos e seguimos para a Rádio.

Na emissora, suspendemos a programação e passamos a entrevistar no Rio de Janeiro, onde o presidente João Goulart se encontrava, diversos amigos e companheiros, entre os quais, Bocayuva Cunha, Raul Riff, Abelardo Jurema, Lutero Vargas, Samuel Wainer, Yara Vargas, Eloi Dutra, Maria Aragão, Roberto Alves, Raimundo Eirado, Sebastião Nery e Adalgisa Nery, entremeando as entrevistas com as notícias que vínhamos recebendo. Fazíamos comentários sobre os acontecimentos, defendendo com veemência a manutenção da ordem e do regime democrático e consequentemente fazendo críticas acerbas e virulentas aos que se postavam contra o governo constituído.

Com a ida do presidente João Goulart para Brasília, passamos a entrevistar o Chefe da Casa Civil, Darcy Ribeiro, os deputados Almino Afonso, Doutel de Andrade, Mario Covas, Rubens Paiva e ministro Amaury Silva – todos recriminando a ação subversiva do general Mourão Filho e a participação alarmante, provocativa e golpista do governador Carlos Lacerda.

Às 19 horas, o governador Ademar de Barros fez um pronunciamento público através das emissoras de Rádio e Televisão, declarando-se contra o governo do presidente João Goulart, postulando a sua deposição e colocando a Polícia Militar do Estado em prontidão, a favor do golpe. Incontinentes, tentamos contato com o general Kruel, o que resultou inútil, recebendo informações de que ele se deslocara para Rezende a fim de encontrar o general Ancora, Comandante do I Exército, para preparar a resistência contra a subversão da ordem. Logo após, em menos de uma hora, recebemos telefonema de Brasília e Darcy Ribeiro nos informou que o general Kruel, em telefonema ao presidente João Goulart, não tendo conseguido que este atendesse ao seu pedido de colocar a UNE, a CGT e as associações de cabos e sargentos na ilegalidade, abandonou o Presidente, aderindo ao golpe militar. Diante desse fato, Jango decidiu voar para Porto Alegre.

Na Rádio continuamos defendendo com desbragado ânimo e firme propósito a legalidade, o regime constituído e a democracia, criticando com azedume e acirrados pronunciamentos as atitudes dos golpistas, em especial os governadores Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e Ademar de Barros. Em consequência das notícias que a Rádio transmitia ininterruptamente, começaram a chegar diversos companheiros e adeptos, que queriam emprestar apoio e solidariedade à nossa luta contra os golpistas.

Entre os visitantes, destacamos os sindicalistas Afonso Delellis e Araújo Plácido, os metalúrgicos Luiz Tenório de Lima, da Federação dos Trabalhadores Agrícolas, José Gonçalves, dos Portuários de Santos, vários estudantes da Faculdade de Direito e o presidente do “XI de Agosto”, João Miguel. Também os escritores Moisés Vinhas, Taibo Cadorniga, Paulo Guilherme Martins, esposo da deputada Ivete Vargas, os professores da Universidade de São Paulo, Caio Prado Junior, Mario Schemberg, e uma quantidade enorme de populares lotaram os corredores da emissora, emprestando sua adesão e sua solidariedade ao governo do presidente João Goulart.

Por volta das 22h, recebemos telefonema do deputado federal João Dória, que se encontrava na redação do jornal “Última Hora”, em São Paulo, nos avisando que do DOPS saíra uma caravana policial em direção aos estúdios da Rádio Marconi, com ordens de tirá-la do ar e lacrar os estúdios. Perguntado se sabia de outras atitudes como prisões e demais violências, ele não soube nos informar. A fim de evitar confusão e conflito entre policiais e visitantes, solicitei que estes fossem embora, o que ocorreu, permanecendo na Rádio apenas os profissionais, funcionários e amigos.

Passados 20 minutos, vários policiais chefiados pelo delegado Alcides Cintra – velho conhecido por determinar prisões de sindicalistas por motivo de greve e para os quais, muitas vezes, interferi solicitando a liberdade – invadiram os estúdios onde, ao microfone, eu, com veemência e orgulho ferido pela insolência, verberava contra as violências que se praticavam. O referido delegado abusivamente deu a ordem: “Em nome do governador Ademar de Barros determino o encerramento das transmissões!”, ao que respondi, travando diálogo, ainda com a emissora no ar: “Venha, então, dizer aos nossos ouvintes a razão e o motivo da arbitrariedade do Sr. Ademar de Barros mandar invadir uma propriedade privada, autorizada em seu funcionamento pelo governo federal”. Ele respondeu: “A ordem é para encerrar, portanto, encerra!”

Então, novamente ao microfone, pronunciei: “Nós não temos condições de resistir a essa arbitrariedade do governador Ademar de Barros. Vamos encerrar, mas nós voltaremos um dia para continuar a luta em favor das emancipações econômica, política e social da nossa terra! Até a próxima oportunidade!”

Em seguida, como anteriormente combinado, sinalizei ao técnico para pôr no ar o hino nacional, mas aos primeiros acordes, irritado, o delegado bradou: “Eu dei ordem para encerrar, portanto, encerra!”. Ao que eu lhe respondi: “O hino você não pode interromper”. Ele nada retrucou e o hino foi então tocado até o fim, dando por encerradas as transmissões.

Tirada a Rádio do ar, o delegado deu ordem de prisão para todos que se encontravam na emissora e determinou que aguardássemos instruções que viriam da Secretaria de Segurança. Passados uns 20 minutos, o telefone tocou, ele atendeu e me chamou: “Atenda, que o general Aldévio Lemos quer falar com você.” Atendi, e o general falou: “Aguarda, Orpheu, que o governador vai falar com você”. Esperei alguns segundos e veio a voz fanhosa e conhecida de Ademar: “Saiba, Orpheu, que o Jango foi deposto pelo Congresso Nacional e já fugiu para o Uruguai. Quero te dar uma chance. Venha para o nosso lado. Eu mando reabrir a Rádio e te nomeio Secretário de Imprensa do Governo do Estado”.

Surpreso com a oferta, respondi: “Dr. Ademar, eu agradeço muito a deferência e o convite, mas o senhor já viu alguma vez em uma partida de futebol, como exemplo o jogo entre Corinthians e Palmeiras, um jogador trocar de camisa no 2o tempo? Agradeço, mas estou impossibilitado de aceitar”. Ao que Ademar respondeu: “Então, não posso fazer nada para te ajudar”, desligando o telefone.

O delegado Alcides Cintra, logo a seguir, proclamou: “Então estão todos presos, vamos para o DOPS”, tendo eu retorquido: “Delegado, não vejo porque prender todos os funcionários. Você assistiu ao telefonema do Governador me convidando para aderir. Eu ainda vou refletir sobre a proposta e não vejo razão de prender e levar todos para o DOPS. Os responsáveis pela Rádio e pela posição política aqui tomada somos apenas eu e o Dorival, e não tenha dúvidas que, diante dos fatos e acontecimentos, assumirei sozinho toda a responsabilidade das transmissões políticas. Não vejo também porque prender o Gil Gomes, que é locutor esportivo e que tem como seu único líder o Pelé, a menos que você queira prendê-lo por ser são-paulino e se vingar dos gols que o Pelé fez contra o seu time. Também por que prender o presidente do ‘XI de Agosto’, João Miguel, que está apenas visitando a emissora e não tem nenhuma participação na Rádio? Por que prender o Dr. Rivaildo, advogado trabalhista, que também não tem nenhuma ingerência nas transmissões? Por que prender os técnicos, locutores comerciais e o jovem repórter Francisco Adalberto Nóbrega, que não têm nenhuma responsabilidade na direção da Rádio? Enfim, eu não vejo razão para prender pessoas que nada têm a ver com a posição política da emissora. Assim, eu peço que telefone e fale com o Secretário de Segurança, general Aldévio, que você constatou ser meu interlocutor, e o consulte sobre as prisões dos demais, além da minha e da do Dorival. Eu insisto, porque ainda volto a falar com o governador, e falarei da sua atuação.” Felizmente o delegado Alcides Cintra resolveu telefonar para o General e recebeu ordens para levar para o DOPS “apenas os dois, Orpheu e Dorival”.

No DOPS, fomos encaminhados ao gabinete do diretor-geral, Dr. Manuel Ribeiro da Cruz, com quem ficamos conversando sobre os acontecimentos até às 4h do dia 1o de abril, quando ele nos declarou que a revolução, com a queda do presidente João Goulart, estava vitoriosa e decidida, e mandou que fôssemos recolhidos ao xadrez.

*Originalmente publicado na edição 93