40 Anos: o Diário de uma anistia

5 de setembro de 2004

Advogada, especialista pela Escola da Magistratura do Distrito Federal e Assessora Jurídica da Terceira Câmara da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça

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Comentar sobre anistia em nosso país não é apenas fazer uma viagem no tempo e na história, é tentar resgatar a verdade existente em cada cidadão que foi vítima do regime de repressão política instalado no Brasil.

Em agosto de 2001, pela Medida Provisória 2.151, que regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federativa do Brasil, se deu continuidade e culminância ao processo de redemocratização já iniciado por legislações anteriores acerca de anistia política.

A Medida Provisória mencionada acima, após sucessivas reedições, foi convertida na Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, criando a Comissão de Anistia no âmbito do Ministério da Justiça para apreciar requerimentos de anistia e emitir parecer conclusivo remetendo-os ao Ministro de Estado da Justiça para decisão final.

A Comissão de Anistia foi instituída dentro de uma legalidade estrita, tendo competência para apreciar requerimentos de cidadãos que foram atingidos em sua atividade profissional ou militar, por motivação exclusivamente política, no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988, ressalvados os casos expressamente previstos na legislação pertinente. Assim, cabe salientar que outras questões suscitadas, em que pesem as razões de alguns requerentes, são estranhas à competência para a qual foi instituída.

Muitos requerimentos protocolados na Comissão de Anistia, em especial na Terceira Câmara, detentora da competência para anistiar militares das Forças Singulares e auxiliares, dizem respeito à revisão de atos administrativos, alegando estarem eivados de ilegalidades e arbitrariedades. A Comissão de Anistia não tem legitimidade para imiscuir-se em atos discricionários, administrativos, dotados de presunção legal, pois se assim procedesse, estaria usurpando de competência alheia, para a qual não foi designada, qual seja, revisar atos revestidos de legalidade, mas que possam ter teor arbitrário e/ ou ilegal, como se alegam.

Dessa forma, ainda que possa ter havido as irregularidades e ilegalidades alegadas pelos requerentes, por si só, estas se distanciam do âmbito de competência e atuação da Comissão.

Não obstante o mérito de algumas proposições no caso concreto e, podendo, ainda a legitimidade da Comissão envolver em hipótese a análise destas questões, de forma sistêmica, conjugados com outros elementos probatórios, não se pode elidir em situação alguma a questão prejudicial de mérito, instituída pelo art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e pela Lei 10.559/2002 que é, especificamente, a motivação exclusivamente política. A ilegalidade ou arbitrariedade tem que estar conectada com a motivação exclusivamente política para recair ao crivo de legitimidade da Comissão.

Em suma, para decidir sobre um requerimento de anistia, a Comissão não se ingere, de forma deliberada e aleatória, em atos discricionários, sem ter elementos necessários e suficientemente probatórios acerca da motivação exclusivamente política.

O ato de licenciamento ou exclusão, como se queira tipificar administrativamente este ato de desligamento do militar da Força Singular ou auxiliar, tem que conter categoricamente a imprescindível motivação exclusivamente política, para afastar a presunção legal de ato discricionário.

Ressalte-se que as autoridades militares, independentemente do regime político do Brasil, sempre detiveram competência, instituída em lei, para apresentar os aspectos da sistemática de ingresso, permanência, desligamento do serviço ativo, estabelecendo normas, e revogando, se necessário, para regulamentar os critérios e as condições básicas do quadro de graduados e oficiais.

Cumpre esclarecer o que vem a ser a expressão “motivação exclusivamente política”, nos parâmetros legais adotados pela Comissão de Anistia: são os fatos pessoais sofridos pelo anistiando, por exercer, ostensivamente, militância política em oposição ao regime institucional político ditatorial instalado no Brasil, ou, mesmo que não tenha exercido esta militância política, ter sido considerado um subversivo político, e, indiferentemente, perseguido, por meio dos órgãos de repressão da época.

É incontroverso ao deslinde do requerimento de anistia que esta “perseguição política” tenha trazido de forma concreta registro no ato de desligamento do militar da Força Singular ou auxiliar, ressalvados os casos, evidentemente, que são concluídos por ilação pela notoriedade das provas nos autos.

A Comissão de Anistia, para diligenciar e instruir seus requerimentos, utiliza-se dos órgãos públicos: Agência Brasileira de Informações, Secretaria de Segurança Pública dos Estados e Justiça Militar. Das Forças singulares e Auxiliares para obter os assentamentos funcionais do anistiando, “folha de alterações” e outros instituídos e admitidos em lei, nos quais, se evidenciem de forma notória os registros pelos órgãos de repressão da época ditatorial.

Assim, os registros oficiais permitem aferir de forma inequívoca, como o Estado manteve não o simples monitoramento, mas os resquícios de modalidades da “perseguição política” dos cidadãos brasileiros, no caso específico do anistiando.

A lei de anistia estabeleceu o Regime do Anistiado Político. Dentre os direitos dispostos está inserida a possibilidade de concessão de reparação econômica de caráter indenizatório em prestação única ou em prestação mensal, permanente e continuada, conforme o caso a ser analisado nos autos.

A reparação econômica de caráter indenizatório, em prestação mensal, assegura todas as promoções, na inatividade, ao posto ou graduação a que teriam direito “se tivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades da carreira militar”.

Após as considerações feitas acima, pode-se verificar o desafio da Comissão de Anistia para instruir e lavrar parecer conclusivo acerca dos requerimentos de anistia submetidos.

Vale mencionar que o desafio foi tomado no instante em que se tinha o dever legal de implementar/operacionalizar a medida provisória sobre anistia.

A responsabilidade não foi apenas legal, mas principalmente moral. Assim que começamos nos deparar com os fatos pessoais notamos o legado que a ditadura havia nos deixado.

É difícil imaginar ou construir fatos a partir da leitura de livros e filmes que versem sobre a repressão política no Brasil. Por mais que leiamos os escritos dos autores mais conceituados na questão anistia, não teremos noção do que é “ouvir” o relato daqueles que um dia sofreram ou viram seus entes queridos, amigos serem vítimas da crueldade e perversidade humana, utilizando-se, seus perseguidores, do manto e honradez da carreira militar, indiferente, muitas vezes ao regime institucional.

A tarefa árdua da Assessoria Jurídica da Comissão de Anistia, não é a de escutar, porque escutar é uma tarefa mínima de respeito, mas é ajudar a vítima ou o seu familiar a instruir seu requerimento, ser solidária, a fim de que, se for o caso, tenha a justiça estabelecida pela lei.

A expressão “solidária” em momento algum traz a acepção de parcialidade, pois seria tendenciosa e inconciliável com a atribuição legal para a qual foi designada. Constitui, sim, acima de tudo, ter sensibilidade suficiente para acreditar, trazer a verdade, seja ela qual for, aos autos do requerimento de anistia, resgatando o passado com coragem para encarar os fatos, mesmo que se ofereçam obstáculos. É não ter medos ou receios, pois as provas virão se houver a verdade.

Hoje, chegam quase ao fim os julgamentos da terceira Câmara da Comissão de Anistia, com a contribuição significativa e irrepreensível da equipe:

• Andréa Senna Figueiredo Fernandes – ex- estagiária

• Cláudia Grizel Curci Ramos Leão – Assessora jurídica

• Clever Lavinas de Azeredo Junior – Apoio Jurídico

• Diogo Chalub Prange – Apoio Administrativo

• Dyego Alves Rabello – Apoio Jurídico

• Haroldo Pereira da Rocha Neto – Apoio Jurídico

• Janaina Campos Abigalil – Diretora da Terceira Câmara

• José Lavinas da Rocha Filho – Apoio Jurídico

• Joyce Cristina Alcoforado – Apoio Administrativo

• Markceller de Carvalho Bressan – Apoio Administrativo

• Pablo Roque de Oliveira Alves – Apoio Administrativo

• Paulo Sérgio Ribeiro – Chefe de gab. da Presidência

• Raquel Fonseca da Costa – ex-estagiária

• Rodrigo Marques Silva – Apoio Administrativo

• Rosimeire de Oliveira A. dos Santos – Apoio Administrativo

Sempre com o respaldo da presidência do Dr. Marcello Lavenère Machado, um dos advogados mais honrados com quem tivemos a oportunidade de compartilhar as lutas e os desafios diários de uma anistia mais justa; de correr contra o tempo, a fim de que se levasse uma decisão para aqueles que aguardavam amargurados por mais de 40 (quarenta) anos. Demais, temos a certeza, ainda sabedora das críticas e dos descontentamentos de alguns, de que fizemos o melhor dentro da Lei de Anistia para cumprir o processo de redemocratização.

Dentro de cada um de nós que participou não do processo democrático em si, – pois este se edificou significativamente por aqueles homens, cidadãos que deram sua vida, sua liberdade, seu futuro pessoal por um país mais livre de ideologias políticas de repressão – mas, do resgate do processo de redemocratização, na tentativa de resgatar “vidas” esquecidas no passado, uma tarefa quase impossível, ficará a certeza de que se não fizemos o melhor, era o melhor que tínhamos disponível no momento como instrumento de reconstrução e pacificação.

A Terceira Câmara da Comissão encerrará neste 2º semestre de 2004 a análise de todos os processos autuados, restando em torno de 350 (trezentos e cinqüenta) processos a serem analisados, visto que foram julgados no período de 2003 a 2004, 10.337 (dez mil, trezentos e trinta e sete) processos, sendo que 2.357 (dois mil, trezentos e cinqüenta e sete) foram deferidos e 7.980 (sete mil, novecentos e oitenta) indeferidos, sem levar em consideração o número de processos devolvidos e arquivados.

Cabe ressaltar neste artigo, sempre o aspecto técnico e legal que tem a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, considerando que num país em que as desigualdades sociais são imensas, esta se transformou numa bandeira – para aqueles que desconhecem os caminhos traçados e determinados na Lei de Anistia – de possibilidades imaginárias de indenizações para atender os anseios estranhos à competência para a qual foi instituída.

Em nossos corações e em nossas memórias ficarão os relatos marcados um dia pela incompreensão de um regime institucional político violento, repressor e despropositado, oriundos dos militantes políticos sobreviventes e de todos aqueles que nos deixaram. Saliente-se, porém, em todos a certeza absoluta da luta significativa pela construção de um Estado democrático de direito. Transcrevo alguns, com a devida vênia aos autores:

(anistiando): “ – Drª., me ajuda vou morrer! Espero por 40 anos esta anistia, estou com câncer. Julga meu processo?

 – Drª., me ajuda meu pai já morreu, mas luto por sua anistia, para resgatar a verdade.

 – Drª., me ajuda meu pai morreu ontem, quando soube de sua anistia, mas ajuda minha mãe a receber?”

Que a justiça seja a força motriz e esclarecedora e venha a  orientar todas as decisões justificando assim o apelo daqueles que sofrem ou sofreram as conseqüências funestas do regime ditatorial passado.

Após 40 (quarenta) anos, quando eu nascia, no dia 29 de julho de 1964, iniciava-se e culminava no Brasil a luta armada pela democracia no Brasil, o sonho virou realidade para cerca de 4.500 (quatro mil e quinhentos) pessoas que estão recebendo uma prestação mensal, permanente e continuada de caráter indenizatório.

Agradeço a Deus e aos homens, pela edição da Lei de Anistia Política e pela missão que me foi concedida de buscar incessantemente a justiça. De tudo, sou apenas uma assessora jurídica no cumprimento do dever moral e legal.