Edição

A Anistia e os Torturadores

30 de novembro de 2009

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Este artigo reflete o pensamento republicano do Editor, motivado pelas circunstâncias e condições de quem passou pelas agruras de humilhações, prisões infindas, sofrendo estúpidas agressões, mas, que apesar dos pesares, esquecendo ódios e malquerenças, encara hoje a questão da Anistia e dos torturadores com independência e isenção, visando um justo posicionamento no julgamento, para que na forma da lei, os delinquentes venham a responder pelos crimes hediondos e infamantes que perversamente perpetraram.
A rememoração da morte do Presidente Getulio Vargas, no fatídico dia 24 de agosto de 1954, quando o Editor da Revista no exercício do cargo de delegado no Ministério do Trabalho, na cidade de Santos, por força da função pública teve participação efetiva na conciliação da greve da Marinha Mercante, conseguindo com a sua mediação evitar a paralisação programada pelo comando dos marítimos em todos os portos do País, contrariando as ações esquizofrênicas, senão fascistas, do Almirante Pena Boto e do Capitão de Mar e Guerra Bertino Dutra, recebendo em consequência, além da arbitrária e ilegal demissão, a fúria, os desmandos, as torpes humilhações e o revanchismo dos áulicos do assumido governo do Presidente Café Filho.
Também, por coincidência, relembrando o histórico e trágico dia 31 de março de 1964, quando às 21hs a emissora em que trabalhava, Rádio Marconi, em São Paulo, foi invadida por forças policiais do Governador Ademar de Barros e retirada brutal e abusivamente do ar, durante empolgante locução que fazia defendendo a legalidade  do governo constitucional do Presidente João Goulart, criticando duramente os  governadores golpistas, Carlos Lacerda, Ademar de Barros, Magalhães Pinto e Ildo Menegheti e os generais traidores, Castelo Branco e Joaquim Alves, que haviam sido nomeados pelo Presidente Goulart para Chefia do Estado Maior do Exército e Comando do IV Exército em Recife, respectivamente. Preso arbitrariamente e levado aos porões do DOPS, e após diversificantes prisões e mais prisões, culminando com a do infecto navio Raul Soares, onde perpassou os horrores de seis meses de confinamento, sofrendo agressões e assistindo a tratamentos bárbaros e desumanos, infligidos aos sindicalistas e políticos encarcerados nos imundos e fétidos xadrezes no porão do fatídico navio, faz rememorar outros tristes, dolorosos e inesquecíveis sofrimentos impingidos por infames e patifes, que covardemente torturaram, barbarizaram e mataram suas desassistidas vítimas, desaparecendo com os corpos respectivos, além das infamantes violações praticadas contra mães, esposas e filhas de prisioneiros.
Aqueles fatos, ocorridos há mais de quatro décadas, ainda são hoje tristemente relembrados, no entanto, devido a novas circunstâncias — entre as quais,  a sua designação para presidir a Comissão de Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos da Associação Brasileira de Imprensa —, impele o Editor a alterar o seu posicionamento sobre os crimes e responsabilidades penais dos autores e mandantes das torturas penosamente aplicadas aos presos políticos.
Já tratada essa matéria na edição de novembro de 2008, na qual assinalava em editorial estar o assunto pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal — ao qual competia decidir, em derradeira instância, se os crimes de tortura praticados pelos grupos civis e militares que operaram com selvageria nos DOI-CODI seriam considerados imprescritíveis, ou não —, decorrido os anos, o tema volta à baila com acentuada repercussão, conforme os diversos pronunciamentos divulgados na imprensa por eminentes e conceituados juristas, o que reclama e impõe novo e aprofundado questionamento.
O fator principal que nos conduz a entrar e participar, efetivamente, no movimento que exige o julgamento criminal de todos os participantes das torturas infligidas aos presos políticos no domínio da Ditadura Militar, foi o avivamento da memória com as leituras dos cruciantes depoimentos, entre outros, dos jornalistas Paulo Markun, Audálio Dantas, Roberto Kotscho, o Mino Carta, Zuenir Ventura e personalidades como o Cardeal Paulo Evaristo Arns e o acadêmico José Mindli contidos no contundente e dramático livro “Pela democracia contra o arbítrio”, editado pela Fundação Perseu Abramo.
Dentre os depoimentos constantes no citado livro, destaca-se, pela barbaridade e crueldade praticada no DOI-CODI de São Paulo, o trágico depoimento do jornalista Sérgio Gomes, transcrito nesta edição, páginas 48 e 49, para o qual acenamos aos nossos leitores constatarem como procediam os torturadores com os indefesos presos, o que, fatalmente, foi repetido na inquirição e  assassinato do jornalista Vladimir Herzog.
Os horripilantes gritos de angústia e dor emitidos durante a cruel, trágica e desumana seção de tortura sofrida por Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, no DOI-CODI de São Paulo, ouvidos pelos então encarcerados em cela vizinha, Rodolfo Konder e Jorge Duque Estrada, não podem ser olvidados por constituírem  o marco do  último e mais contundente drama da desgraça infundida pela Ditadura Militar, que produziu um clamor popular de tanta repercussão e praticamente ensejou o fim das torturas e o começo da abertura política e democrática no País.
A afronta com que os responsáveis pelas desgraças que ocorreram nas dependências do DOI-CODI, os seus diretores Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel ao enviar para publicação a foto de Vladimir Herzog, na tétrica posição, ajoelhado e com a corda no pescoço, assim pretendendo confundir e subtrair a verdade, induzindo o assassinato praticado com a tortura como se fosse suicídio — na vã tentativa de enganar  a opinião pública, como se esta fosse constituída de imbecis — representou uma inominável farsa preparada por perversos detentores do mando, que exerciam na ocasião, por delegação da Ditadura, o poder absoluto de dispor da vida de quem lhes caísse nas garras, desimportando se tratavam-se de inocentes ou acusados de oposição ao governo.
As violentas torturas seguidas de mortes ocorridas no DOI-CODI de São Paulo, de responsabilidade criminosa dos citados Ustra e Maciel, causaram tamanha, e tão péssima repercussão que após as mortes do jornalista Herzog e do metalúrgico Manoel Fiel Filho, o Presidente Ernesto Geisel, preconizando uma satisfação à opinião pública e ao clamor popular que ecoou em todo o País, demitiu o comandante do II Exército, General Edenardo D´Avilla Mello, responsável administrativo daquele órgão militar.
A morte brutal do Deputado Rubens Paiva, no DOI-CODI do Rio de Janeiro, sob estúpido e bárbaro espancamento que resultou no seu assassinato por uma malta de sargentos e oficiais, ocorrida numa sessão de inquirição, cuja morte e desaparecimento do corpo foi comunicada pelo Ministro do Exército, General Orlando Geisel, ao então presidente Emílio Médici, o qual friamente, sem dar importância ao fato se limitou a dizer: “Então foi um acidente de guerra”, como relatado pelo jornalista Tarcísio Holanda em entrevista a um programa de televisão. Acresce ainda, agora, como divulgado no “O Globo” e no “Correio Braziliense” de 18 e 19  de novembro, respectivamente, o tétrico depoimento do ex agente do DOI-CODI do Rio de Janeiro, Marival Chaves ao cineasta Jorge Oliveira, para o filme “Perdão, Mister Fiel”, com a declaração de que o Deputado Federal Rubens Paiva havia sido torturado, morto, e seu corpo esquartejado. Esta revelação, face o mistério com que a morte e a ocultação do corpo do Deputado foram mantidas pelas autoridades envolvidas no caso, está a demandar providências do Ministério Público Federal para investigar, e esclarecer, com os membros do gabinete do então Ministro do Exército o que sabem a respeito, pois, se o general Orlando Geisel sabia do acontecido, obviamente, os oficiais que serviam com ele e no seu Estado-Maior também deveriam saber do ocorrido.
A vasta literatura produzida sobre as torturas praticadas por agentes do governo durante o período infamante da Ditadura, as quais, extravasaram de forma premeditada e maldosamente, com nítido intento de perversidade, ultrapassando irresponsavelmente os cânones que norteiam o Estado Democrático de Direito que vivenciamos, afronta a dignidade humana e não deve nem pode ser esquecida, para que os crimes escabrosos e definidos como hediondos que ocorreram, jamais  venham a se repetir neste país.
Considerando ainda o disposto na Constituição Federal, artigo 5o, inciso XLIII, configurando a prática da tortura como insuscetível de graça ou anistia, e o inciso XLIV que constitui  e configura como crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados civis e militares, torna-se impossível aceitar a anistia para os torturadores, assim como, não considerar imprescritível os crimes praticados  pelos grupos militares que operaram com selvageria nos DOI-CODI instalados nos vários estabelecimentos militares do país.
Está implícito que a decisão do Supremo Tribunal Federal na demanda que está posta em julgamento, respeitados os parâmetros constitucionais, é absoluta, porém como divulgado por ilustres juristas, a questão pode ainda ser levada, como definem, à apreciação perante a Corte Interamericana dos Direitos Humanos, além da obrigação internacional do Brasil de investigá-los e julgá-los independentemente de qualquer que seja seu direito interno vigente.
Finalmente, existem fundadas esperanças, que, no final e proximamente, os bárbaros torturadores irão prestar contas perante a Justiça, pela prática de crimes de lesa-humanidade, como já definido nas sentenças prolatadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Com este intento, passamos a participar ativamente na catequese objetivando levar os torturadores e seus mandantes ao devido e necessário julgamento.
É o que se aguarda e o quanto se espera!