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A boa-fé no direito e o direito à boa-fé

31 de maio de 2006

Presidente da Comissão de Defesa do Direito da Pessoa com Deficiência, da OAB-DF

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Quem não se lembra daquela frase dita em um comercial de TV, por um famoso ex-jogador de futebol, ao anunciar uma marca de cigarros: “quem não quer levar vantagem em tudo…’’

A lembrança desse slogan – para muitos de infeliz inspiração – é refrescada pelo debate em torno da ética que se mantém avivado na sociedade, graças à divulgação diária pelos meios de comunicação de novos – velhos na verdade – “esquemas do levar vantagem em tudo”, especialmente quando se trata de res pública.

Isto nos leva à triste constatação de que a rotineira violação dos princípios éticos leva o cidadão a não mais se indignar com tais atos, e boa parte a incorporá-los como regra comportamental; porém, a certeza de que as “ferramentas” que estão sendo disponibilizadas ao cidadão e por fim aos Juízes, quando demandados a julgar, são eficazes, quando utilizadas com critério, faz acreditar que a sociedade sairá fortalecida.

A preocupação com o tema é antiga, e somente com o Código Civil em vigor desde 2003 é que se positivou a boa-fé e a função social do contrato, fato que, em tese, autoriza o exercício pleno da máxima “a liberdade de um acaba quando começa a do outro” – desconsiderada sua radicalização literal –, em que direito e obrigação se fundem.

O ponto é: o cidadão tem o direito a não ser enganado em sua boa-fé, devendo o sujeito mantê-la em qualquer relação com o próximo, impondo às partes, em uma espécie de relação contratual, agir com estrita observância a este princípio, o qual constitui um direito inalienável do cidadão, momento em que ocorre a fusão entre direitos e deveres na ordem civil (art. 1º CC).

Isto tudo nos leva a refletir sobre a positivação da boa-fé e da função social do contrato e da importância de tais institutos para a segurança do estado democrático, pela garantia da liberdade de contratar com o resguardo da ética.

Fato é que não só os sujeitos de uma relação contratual privada têm obrigação de nortear seu comportamento por estes princípios, mas também tal obrigação se impõe aos eleitos pelo voto democrático e a toda pessoa que ocupa uma função pública, pois estes têm um “contrato” de representação com o cidadão de ser um servidor “do” público e não de se servir dele.

Nesse sentido, não há como deixar de considerar que todo contrato cumpre uma função social, seja no campo do direito privado ou público; a confiança não pode ser frustrada, sendo obrigatório às partes atuarem objetivamente com boa-fé ao firmá-lo, sob pena de maculá-lo ao viciar a vontade nele depositada.

Daí iniciar o presente artigo com destaque para os piratas que saqueiam o Estado e, por fim, o cidadão, que é afinal quem sofre as mazelas deste “assalto”, uma vez que a violação do princípio da boa-fé e da função social do contrato é flagrante em nossa sociedade.

A boa-fé, agora objetiva, contemplada no novo Código Civil – nossa constituição privada – impõe regra de comportamento social, como causa de validade dos negócios jurídicos, sendo determinante para sua eficácia, além de estar compreendida na função social do contrato; inexistindo a boa-fé, o pacto torna-se ineficaz.

Assim sendo, tanto a função social do contrato quanto a boa-fé contratual são pilares entalhados no Código Civil que não podem deixar de ser observados pelos contratantes, sob pena de violar a liberdade de contratar, em conformidade com os artigos 421 e 422 do Código Civil.

Tais institutos são tão importantes para a vida dos negócios que o legislador fez questão de incluir, nas Disposições Transitórias do Código Civil que entrou em vigor em 2003, o Parágrafo único, do art. 2.035, verbis: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.

O Centro de Estudos Judiciários, do Superior Tribunal de Justiça, interpretando o art. 422, do Código Civil, em face de sua relevância para as relações contratuais na sociedade, entendeu por bem traçar, mesmo que preliminarmente, algumas orientações e interpretações sobre a boa-fé e a função social do contrato, o que fez através dos enunciados a seguir transcritos:

“24 – Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independentemente de culpa.”

“25 – O art. 422 do Código Civil não inviabiliza a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases pré e pós-contratual.”

“26 – A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao Juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes.”

“27 – Na interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do Código Civil e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos”.

Os enunciados visam justamente orientar os julgadores quanto à interpretação do instituto em razão de sua abrangência, tendo de ressaltar que, ao se compulsar o Código Civil, depara-se com inúmeras normas que afastam quaisquer dúvidas quanto à obrigação de os contratantes atuarem com transparência em seus negócios jurídicos.

O direito de livremente contratar deve ser conjugado com o direito à ética, sendo a matriz desta última, como bem menciona Miguel Reale em brilhante artigo “Função Social do Contrato”. A boa-fé foi elevada no novo Código Civil à posição de destaque. Esta, dada a sua importância, levou o legislador a repetir a expressão por mais de cinqüenta vezes, começando pelo negócio jurídico (art. 113) e terminando no direito sucessório (art. 1.828), sem falar na “má-fé” que inicia a citação pelo capítulo dos defeitos do negócio jurídico (art. 161) no Código e termina no direito sucessório (art. 1.826, parágrafo único).

A positivação da boa-fé e da função social representa evolução significativa se comparada com o Código Civil revogado de 1916. Neste impera o princípio da obrigatoriedade dos contratos ou da força vinculante das convenções, conhecido juridicamente pela expressão pacta sunt servanda. Já no código em vigor desde 2003, a prevalência é da ética.

Miguel Reale assinala que a função social do contrato é resultado do que estabelecem os incisos XXII e XXIII, do art. 5º da Constituição Federal de 1988, o qual assevera que “a realização da função social da propriedade somente se dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja conclusão e exercício não interessa somente às partes contratantes, mas a toda a coletividade…”.

O direito tutelado, assevera ainda, colocado em um plano transindividual, estaria preocupando muitos estudiosos por temer que, com isto, fique ameaçado o pacta sunt servanda. Note-se que este temor é desnecessário, já que não se abandona o interesse individual envolvido naquele compromisso; o que se vai perquirir é se a vontade foi viciada e se a confiança foi “quebrada” – desde que não violados os princípios da boa-fé, da probidade e da sua função social, a liberdade de contratar é plena.

O que de fato ocorreu é que o legislador acompanhou a jurisprudência, só reforçando a tese de que o contrato não pode atender aos interesses somente das partes envolvidas, sendo este um instrumento da sociedade para regular suas relações; per si, cada contrato tem relevância para a coletividade, já que não há como desvinculá-lo da função social que exerce e que está acima do poder negocial das partes.

O próprio art. 187 do Código Civil estabelece que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Considera-se mesmo que a função social do contrato e a boa-fé objetiva que devem resguardar os contratantes são, entre outros, pilares da democracia, não violando a livre iniciativa estabelecida no art. 1º, IV, da Constituição Federal; pelo contrário, corroboram ainda mais para que esta ocorra e traga desenvolvimento, tanto assim que o abuso do poder econômico, que representa uma das formas de violação desses institutos, é vedado expressamente no 4º, do art. 173 da Constituição.

Com isto, o interesse individual que o Código Civil de 1916 privilegiava passou, no de 2003, a ter como foco o interesse coletivo (arts. 421 e 422). A ética sobrepõe-se aos objetivos escusos e, em sua ausência, esta afeta o interesse maior do contrato enquanto instrumento de vontade da parte e da sociedade, as quais têm interesse que tais relações se efetivem dentro dos parâmetros éticos que a faça crescer como nação. Caberá à jurisprudência separar o joio do trigo e ajustar o interesse individual com o social.

Assim, a todo contrato é inerente que as partes observem os deveres que lhe são anexos, qual seja: o dever de cooperação, de lealdade, devendo os contratantes observar tais obrigações sempre no sentido de não impossibilitar o efetivo cumprimento das obrigações contratuais.

A exemplo do que foi dito, tem-se os artigos 112 e 113, do Código Civil que estabelecem, respectivamente, que “nas declarações de vontade se atenderá mais a intenção das partes do que o sentido literal da linguagem” de que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”.

O princípio da boa-fé é parte integrante da estrutura do negócio jurídico, como bem tratado por Cláudia Lima Marques (2002: 181) em sua teoria da confiança: “Boa-fé objetiva significa, portanto, uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão ou desvantagem excessiva, cooperando para atingir o bom fim das obrigações: o cumprimento do objetivo contratual e a realização dos interesses das partes”.

Ao discorrer sobre o tema, Jorge Cesa Ferreira da Silva, aduz que a idéia de confiança está incluída no princípio da boa-fé, agindo como simplificador das incontáveis relações sociais que inibem a previsão das ocorrências futuras, pela própria complexidade e imprevisibilidade que tais relações em sociedade possibilitam, atenuando para o sujeito a insegurança quanto ao futuro daquela relação, dando-lhe a possibilidade de atuar com segurança, pois não se preocupará com aquilo que acredita que não ocorrerá.

Esse autor ainda aduz que, ao se positivar o princípio da boa-fé, se tem como um dos resultados concretos, de suma importância para o direito obrigacional, que “é o inelutável nascimento de deveres verdadeiramente obrigacionais que não possuem suas fontes na vontade. Os deveres decorrentes da boa-fé podem, assim, não ser declarados pelas partes, não ser por elas queridos ou ser por elas totalmente desprezados. Não obstante, participarão do conteúdo jurídico da relação, assim como participa desse mesmo conteúdo toda normatividade legal (em sentido estrito) não declarada ou querida pelas partes” (2002: 54).

Não só o novo Código Civil positivou o princípio da boa-fé; na realidade, o ordenamento jurídico o tem erigido como um dos pilares de qualquer relação contratual, sendo exemplo disso o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), em seus artigos 4º, III e 51, IV.

A avaliação da violação desses princípios será da alçada do Juiz e deverá ser verificada sempre que uma parte extrapolar o objetivo da avença, devendo ser levado em consideração o bem social envolvido e que deverá ser protegido.

A questão prática que se coloca é como deverão os Juízes se guiar em sua tarefa para chegar à verdade, tendo Judith Martins-Costa (2000: 331), discorrendo sobre a questão, ainda quando o atual Código Civil era projeto em tramitação, afirmado nestes termos: “o juiz será reenviado ao padrão do comportamento conforme a boa-fé. Deverá averiguar qual é a concepção efetivamente vigente, através de pesquisa jurisprudencial e doutrinária, pois não se trata de determinar, por óbvio, qual é a sua própria valoração, esta é apenas um elo na série de muitas valorações igualmente legítimas com as quais ele a tem de confrontar e segundo as quais, sendo caso disso, a deverá corrigir. Poderá, então, sempre à vista das circunstâncias do caso concretamente considerado, e jamais in abstracto, determinar se o caso é de nulificação da disposição contratual, ou de sua revisão, ou ainda condenar a parte que agiu contrariamente à boa-fé ao pagamento de perdas e danos, se ocorreu dano, ou se, em razão de circunstância superveniente, a prestação for considerada impossível, por manifesta inutilidade, inclusive declarar o direito formativo extintivo de resolução contratual”.

Portanto, ao cidadão não basta tão-somente observar em suas relações a boa-fé. A ele, cabe exigir que o seu direito à boa-fé seja respeitado pelo próximo; pelos que detém o manus público. À Sociedade Civil, cabe exigir daqueles com quem firmou “contrato” (em sentido lato) para se fazer representar que observe dito comportamento como regra basilar, e não como extemporânea; que trate o bem maior – res pública – objeto deste “contrato firmado com a nação” com probidade.

Ao Ministério Público, com ênfase a partir da Constituição de 1988, foi legada a defesa dos interesses indisponíveis do indivíduo e da sociedade; o resguardo dos interesses sociais, coletivos ou difusos, defendendo os interesses individuais homogêneos indisponíveis e, não obstante alguns percalços afeitos a própria atividade de fiscal da lei, vem desempenhando papel importante no resguardo e conscientização da ética na sociedade, especialmente em razão da renovação e excelente qualificação de seus quadros, com atuação relevante na proteção do estado democrático.

Aos meios de comunicação é legado o papel de denunciar, de expor as vísceras do “poder”, deixando o sensacionalismo comercial de lado em prol do compromisso maior com a ética e com o jornalismo investigativo, pois não há como desmerecer seu papel de formador de opinião e fator de unificação do conhecimento, considerando a dimensão continental desse país e o desequilíbrio socioeconômico e cultural de que somos vítimas.

A boa-fé e a função social do contrato, positivados no novo Código Civil, não poderão cair na vala comum, relegadas no Brasil às leis que “não pegam”, como dito popularmente. Não poderão sucumbir “aos que querem levar vantagem em tudo…”, sob pena de se perder a oportunidade de fortalecimento da nação, através da garantia jurídica da confiança do cidadão nas instituições e no próximo; do contrário, não passarão de normas natimortas.

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1 REALE, Miguel, Função Social do Contrato – artigo publ. em seu site (www.miguelreale.com.br)

2 Marques, Cláudia Lima, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, 4a ed., Revista dos Tribunais, SP,

2002, págs. 181/182.

3 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da, A Boa-Fé e a Violação Positiva do Contrato, 1a ed., Ed. Renovar, 2002,

pág.s 45/54.

4 COSTA,Judith Martins, A Boa-Fé no Direito Privado, 1a ed., 2a tiragem, Ed. RT, 2000, pág. 331.