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A cegueira deliberada como “muleta probatória”

4 de maio de 2023

Bernardo Marinho Marques Advogado

Gustavo Alves Pinto Teixeira Desembargador Eleitoral do TRE-RJ

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Muito já se disse, é verdade, sobre a teoria da cegueira deliberada, construção do Direito Penal anglo-americano (willful blindness doctrine) por nós importada que ganhou bastante fôlego na jurisprudência nacional a partir do voto proferido pela eminente Ministra Rosa Weber na paradigmática Ação Penal nº 470. Naquele julgamento, a aplicação da teoria se deu no afã de justificar a admissão do dolo eventual no juízo de imputação subjetiva do crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei nº 9.613/1998).

Naquele contexto há transposição direta da interpretação dispensada à teoria pela construção jurisprudencial estadunidense, que exigiria, “em regra, (i) a ciência do agente quanto à elevada probabilidade de que os bens, direitos ou valores envolvidos provenham de crime, (ii) o atuar de forma indiferente do agente a esse conhecimento, e (iii) a escolha deliberada do agente em permanecer ignorante a respeito de todos os fatos, quando possível a alternativa.”

É claro que precedente da mais alta corte jurisdicional do País deve servir para a harmonização do Direito Penal, principalmente se desejamos a implementação de uma cultura de precedentes, com vistas à promoção da segurança jurídica pela previsibilidade das decisões judiciais, o que não nos impede de analisarmos os fundamentos subjacentes à decisão, sobretudo quanto à sua compatibilidade com, ao que nos interessa, as categorias jurídicas da tipicidade subjetiva constitutivas de nosso domínio penal (art. 18, I e II, do Código Penal/CP).

Este parece ser o caso da aplicação jurisprudencial da teoria da cegueira deliberada no Brasil, ressalvadas algumas hipóteses mais isoladas, se considerarmos sobretudo as premissas sobre as quais assentou-se o voto responsável por sedimentá-la jurisprudencialmente – a despeito de a conclusão deste ser materialmente correta.

Vale a ressalva de que ao contrário de um dos argumentos constantes no voto da eminente Ministra Rosa Weber, não é pelo mero acolhimento da teoria pelo Supremo Tribunal da Espanha como principio de la ignorancia deliberada que sua introdução também estaria a nós justificada, por extensão. A própria jurisprudência da aludida Corte apresenta objeções, principalmente por sua incompatibilidade com o princípio da presunção de inocência (STS 1885/2017, de 24/5).

Afora a questionável compatibilidade do dolo eventual com o tipo penal de lavagem de dinheiro, a willful blindness mostra-se incompatível, desnecessária e perigosa ao nosso domínio penal. A sua aplicação deve, portanto, ser rechaçada, não só para o ilícito-típico de lavagem de dinheiro, como também a todos os outros crimes dolosos do ordenamento jurídico-penal brasileiro.

A teoria da cegueira deliberada é incompatível por dois argumentos normativos. O primeiro, porque a sua incorporação viola o princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal c/c art. 1º, CP). Se considerarmos como o Supremo Tribunal espanhol a formulou, como modalidade de imputação subjetiva distinta conceitualmente do dolo eventual e da culpa consciente, mas a eles equiparável no aspecto punitivo (STS de 19/1/2005), sua incorporação representa a admissão de uma categoria de imputação subjetiva sem previsão no CP, em adição às legalmente definidas (art. 18, I e II, CP).

Por essa razão, sua incidência importa na extensão do juízo de imputação subjetiva para muito além do que está legitimado constitucionalmente. O segundo argumento reside na antinomia da cegueira deliberada com o erro sobre os elementos do tipo (art. 20, CP); ora, se a errônea e invencível representação da realidade exclui o dolo, não podemos, ao nosso arbítrio, reinterpretar o erro de tipo para que determinados casos de desconhecimento próprios da cegueira deliberada passem a justificar um juízo de censura doloso.

A teoria da cegueira deliberada é ainda desnecessária porque não há, entre nós, que ser resolvida a mesma lacuna de punibilidade para a qual a willful blindness é empregada para corrigir no âmbito do Direito comparado. A esmagadora maioria de casos para os quais se tenta encaixar a teoria já é abrangida pelo dolo eventual, principalmente a partir das formulações mais sofisticadas da teoria volitiva da conformação.

Com efeito, as interpretações da supracitada teoria dão conta de que atua com dolo eventual o agente que representa e leva a sério a lesão a bem jurídico como consequência provável de sua conduta causalmente relevante, sem que isto dissuada-o de executá-la, decide-se conscientemente contra um interesse juridicamente protegido, conformando-se, resignando-se ou sendo indiferente a ocorrência de tal evento desvalioso.

Sem embargo, eventualmente em outra sorte de eventos, igualmente tratados como de cegueira deliberada, a conduta seja cometida sem representação da probabilidade de lesão ao objeto de referência de um tipo penal. Nesses caos, é possível, porém, identificar-se um momento anterior, em que se fez presente um conhecimento da possibilidade de produção do resultado desvalioso; é este comportamento prévio que guardará o desvalor necessário para configurar a transgressão da norma proibitiva, numa espécie de autoria mediata pela instrumentalização do seu “eu futuro” pelo autor, para que o delito seja praticado com erro de tipo excludente de dolo.

Quem cede sua conta bancária para um terceiro promover transações financeiras atípicas e de elevado valor, com suspeita de que os montantes envolvidos constituam vantagens ou produtos de crimes, e decide-se por permanecer ignorante, embora possa dispor de tal informação, pratica o crime de lavagem de dinheiro por dolo eventual. É dizer, o agente não tem interesse ou a mínima intenção de saber a procedência delitiva dos bens, mas, de alguma forma, em função das circunstâncias objetivas, representa-a como provável; revela-se, então, uma indiferença do autor em relação o bem jurídico lesionado, porquanto, muito embora represente o risco proibido gerado por sua conduta, não se demove da realização do comportamento típico abrangido pela norma proibitiva.

Convém dizer que a teoria da cegueira deliberada é também perigosa. Além de ter pouca ou nenhuma serventia para a nossa dogmática jurídico-penal, consubstancia-se em doutrina que carrega “perigosa vis expansiva da intervenção penal”.

Em primeiro lugar, a ignorância deliberada é uma teoria que nos remete à indesejada figura da “versari in re illicita”, pois permite a responsabilização por todas as consequências oriundas da decisão de não alcançar o conhecimento efetivo, até mesmo as mais imprevisíveis.

Outra questão é a mudança de posição do objeto do dolo promovido pela utilização da teoria da cegueira deliberada. Com efeito, o objeto do dolo deixa de ser os elementos do tipo objetivo para tornar-se a infração ao dever jurídico de evitação de condutas arriscadas que tenham sido possivelmente representadas pelo autor. A deficiência em relação a um dever de cuidado objetivamente exigido é, todavia, pressuposto da culpa consciente e é justamente aquilo que fundamenta o desvalor da ação dos ilícitos-típicos negligentes.

Isto faz com que seja possível valer-se da teoria da cegueira deliberada como “muleta probatória” para a condenação por crimes dolosos em contextos de insuficiência probatória e cria a chance de condutas culposas serem reprimidas como se dolosas fossem.

Talvez o melhor exemplo da modificação do objeto do dolo seja no crime de lavagem de capitais: consoante a fundamentação oferecida por algumas decisões do Supremo Tribunal espanhol acerca da teoria da cegueira deliberada, o agente que tenha infringido deliberadamente as normas de prevenção contra o mascaramento de ativos passa a ser tratado como se tivesse realizado o tipo objetivo dolosamente. Há, aqui, uma extrapolação do âmbito de proteção da norma proibitiva referente à lavagem de dinheiro, pois o conteúdo da proibição é mais restritivo do que a mera violação de deveres legais de ação ou omissão alusivos à prevenção de tal delito.

Assim, podemos afirmar que a utilização da teoria da cegueira deliberada deveria ser interrompida. Ela não só carece de legitimidade constitucional e seu emprego pode mascarar hipóteses de ausência de prova suficiente para a condenação por crime doloso, mas também seu emprego como “adorno retórico” em decisões judiciais torna o discurso argumentativo da imputação penal muito mais confuso. Ademais, não há nenhuma lacuna de punibilidade deixada pelas categorias jurídico-penais de imputação subjetiva previstas em nosso CP.

Atendo-nos aos limites deste escrito, parafraseando Nelson Hungria, a teoria da cegueira deliberada deve ser remetida “para o museu do Direito Penal”, dada a sua inconciabilidade com a nossa dogmática jurídico-penal. Em suma, as hipóteses que se pretende endereçar com a teoria ou já são abrangidas pelo dolo eventual, ou se enquadram no erro de tipo ou na culpa consciente. Para essa última constelação de casos, o emprego da teoria denota uma inaceitável expansão do poder punitivo.

Notas_________________________

1 Valemo-nos, diante do curto espaço que dispomos, da definição apresentada por Glanville Williams, a qual reputamos ser bastante esclarecedora; em relação à willful blindness, para o autor, “a regra é que se uma pessoa tem a sua suspeita despertada, porém deliberadamente se omite em realizar investigações adicionais, pois deseja manter-se em ignorância, ela é considerada como tendo conhecimento” (WILLIAMS, Glanville. “Criminal Law: The general part”. 2ª edição. Londres: Stevens & Sons Limited, 1961, p. 158).

2 Como faz notar Guilherme Brenner Lucchesi com base em pesquisa empírica (LUCCHESI, Guilherme. “Acertando por um acaso: Uma análise da cegueira deliberada como fundamento para condenação por lavagem de dinheiro, o voto da Ministra Rosa Weber na APN 470”. In: Jornal de Ciências Criminais, São Paulo, vol. 1, nº 1, jul./dez. 2018, p. 94), “[a] partir da publicação dos Informativos nº 677 e nº 684 do STF, passou a haver um aumento significativo de casos em que a cegueira deliberada foi aplicada, muitas delas invocando o julgamento do caso ‘Mensalão’ como fundamento”.

3 Ação Penal nº 470/MG, relator Ministro Joaquim Barbosa, j. 17/12/2012.

4 Mais recentemente, por exemplo, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (Ação Penal nº 940/DF, relator Ministro Og Fernandes, j. 6/5/2020), em juízo de admissibilidade de uma denúncia, diante da dita compatibilidade entre o dolo eventual e o ilícito-típico de lavagem de dinheiro, designadamente pela admissão da teoria da cegueira deliberada, rejeitou a alegação de um acusado acerca da atipicidade subjetiva desse crime a ele imputado.

5 Sobre os precedentes judiciais no Processo Penal, confira-se: GALVÃO, Danyelle. “Precedentes judiciais no Processo Penal”. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022.

6 Essa também é a opinião de Guilherme Brenner Luchesi (LUCCHESI, nota 4, p. 106), à qual nos perfilhamos.

7 Sobre isto, com a conclusão pela exclusão do dolo eventual, como também pela sua incompatibilidade com a teoria da cegueira deliberada: TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. “Lavagem de capitais: Fundamentos e controvérsias”. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 79-86.

8 Admiti-la, portanto, “supõe uma normativização contra legem” (FEIJOO SÁNCHEZ, Bernardo. “La teoría de la ignorancia deliberada en Derecho Penal: Una peligrosa doctrina jurisprudencial”. In: InDret, nº 3, 2015, pp. 6-7”.

9 Cf. GRECO, Luís. “Comentario al artículo de Ramón Ragués”. In: Discusiones, vol. 13, nº 2, dez. 2013, p. 77.

10 Cujo conteúdo normativo, assim como o das demais categorias de imputação subjetiva do Direito Penal anglo-americano previstas no Model Penal Code, não corresponde ao dolo direto, ao dolo eventual, à culpa consciente ou à negligência inconsciente (neste sentido: DUBBER, Markus D.; HÖRNLE, Tatjana. “Criminal Law: A comparative approach. New York: Oxford University Press, 2014, p. 241 e ss.; LUCCHESI, Guilherme Brenner. “Punindo a culpa como dolo: O uso da cegueira deliberada no Brasil”. São Paulo: Marcial Pons, 2018, p. 74).

11 Neste sentido, ROXIN, Claus. “Derecho Penal: Parte general, Tomo 1”. Tradução da 2ª edição alemã por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2007, §12, nm. 27-31, p. 427-430; FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. “Direito Penal: Parte geral, Tomo I. 3ª edição. Coimbra: Gestlegal, 2019, § 44-45, pp. 433-434.

12 GRECO, nota 12, p. 70.

13 Cf. BLANCO CORDERO, Isidoro. “El delito de blanqueo de capitales”. 4ª edição. Navarra: Thomson Reuters Aranzandi, 2015, p. 848.

14 Cf. TAVARES, Juarez. “Fundamentos de teoria do delito”. 2ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 313.

15 FEIJOO SÁNCHEZ, nota 11, p. 12.

16 Neste sentido: RODRIGUES, Anabela Miranda. “Direito Penal Econômico: Uma política criminal na era compliance”. 2ª edição. Coimbra: Almedida, 2020, pp. 3.912-3.929, citado conforme edição kindle.

17 LUCCHESI, nota 4, p. 106.

18 A referência do autor (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. 1, t. II. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 1978, p. 405) dá-se no âmbito do concurso de agentes, mais precisamente em argumento pela rejeição das teorias da acessoriedade e da autoria mediata (“[a] solução que se impõe, remetendo-se para o museu do direito penal as teorias da acessoriedade e da autoria mediata, é o repúdio à diferenciação apriorística entre os partícipes (…)”), porém é por nós aproveitada para fins retóricos.