A Constituição de 1988 como superação do Estado Policial Realidade ou Mito

12 de julho de 2011

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(Artigo originalmente publicado na edição 99, 10/2008)
 
Será que temos o que comemorar no aniversário da Constituição?
 
Não há como esquecermos o momento político delicado no qual esta Constituição foi criada, há vinte anos atrás. Afinal, os anos que antecederam a sua promulgação foram marcados pelo fim de um regime ditatorial – com a eleição de um Presidente Civil pelo Colégio Eleitoral do Regime Militar –, reacendendo esperanças para o restabelecimento das liberdades públicas e as garantias democráticas.
 
A sociedade brasileira, sufocada por duas décadas de ditadura, estava ávida por uma estrutura constitucional que preservasse os seus direitos fundamentais.
 
Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 – para Ulysses Guimarães, a “Constituição Cidadã” –, além de dispor sobre os direitos fundamentais e sociais, destinou para o seu primeiro título, um núcleo importantíssimo denominado de “Princípios fundamentais” (artigos 1º ao 4º). Daí os princípios que serviram de base para todo o seu conteúdo normativo, destacando-se, principalmente, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.
 
Como se vê, a Constituição de Federal de 1988, exercendo o papel de personalidade político-jurídica da Nação, tinha a importante e difícil missão de transformar um obscuro Estado Policial no Estado Democrático de Direito. Em outras palavras, toda a legislação anterior e contrária à Constituição deveria ser suprimida.
 
Não há dúvida também que as leis que subsistiram à Constituição passaram a ser interpretadas conforme os novos princípios ditados por ela.
 
Um exemplo gritante da mudança significativa nessa estrutura de Estado, pelo menos de maneira formal, materializa-se quando confrontamos parte do texto da Exposição de Motivos do Código de Processo Penal – criado sob o “Estado Novo” ditatorial de Vargas – e o preâmbulo da atual Constituição. Vamos ver:
 
“Exposição de Motivos CPP
II – De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do Processo Penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficácia e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinqüem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. O indivíduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde à disciplina jurídico-penal da vida em sociedade, não pode invocar, em face do Estado, outras franquias ou imunidades além daquelas que o assegurem contra o exercício do Poder Público fora da medida reclamada pelo interesse social. Este o critério que presidiu a elaboração do presente projeto de Código. No seu texto, não são reproduzidas as fórmulas tradicionais de um mal-avisado favorecimento legal aos criminosos. O processo penal é aliviado dos excessos de formalismo e joeirado de certos critérios normativos com que, sob o influxo de um mal-compreendido individualismo ou de um sentimentalismo mais ou menos equívoco, se transige com a necessidade de uma rigorosa e expedita aplicação da justiça penal.
 
Preâmbulo da Constituição
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.”
 
O preâmbulo de uma Constituição pode ser considerado como uma minuta de intenções daquele diploma legal, uma anunciação dos princípios que evidenciam o rompimento com o ordenamento anterior e o nascimento de um novo Estado.
 
Pode-se dizer, assim, diante da história recente de nosso país, que a Constituição Federal tem como corolário preservar ao máximo os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, como a vida, a liberdade, a igualdade e a intimidade. Direitos estes que, na época da ditadura, estiveram, praticamente, suprimidos pelo Poder Público.
 
Vale ressaltar, ainda, que esses direitos fundamentais estão diretamente relacionados com a garantia de não-ingerência do Estado na esfera individual dos cidadãos.
 
Apesar disso, sabemos que nenhum direito fundamental é absoluto, encontrando seus limites nos demais direitos assegurados pela mesma Constituição.
 
Tema atual e que merece ser discutido com cautela não só pelos juristas, mas por toda a sociedade, é o da possibilidade de afastamento do sigilo das comunicações telefônicas, excepcionalmente, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, conforme prevê o inciso XII da Constituição Federal.
 
Como se sabe a Lei nº 9.296, de 1996, veio regulamentar este inciso e estabeleceu uma série de requisitos para o deferimento dessa medida excepcional.
 
Lamentavelmente, a medida, considerada excepcional pela Constituição, banalizou-se e tornou-se corriqueira nas relações estabelecidas entre a Polícia, o Ministério Público e a Justiça. Ou seja, a investigação começa com a interceptação telefônica, afrontando deliberadamente o espírito da lei e a intenção do legislador.
 
A despeito da preocupação constitucional em resguardar a intimidade do cidadão, o Poder Judiciário acabou amesquinhando a prática da interceptação telefônica, estabelecendo uma relação promíscua de pede-e-defere, sem respeitar os limites estabelecidos pela lei que regulamenta o tema.
 
Para exemplificar, somente no ano passado, cerca de 409 mil interceptações telefônicas foram determinadas judicialmente, de acordo com as operadoras de telefonia fixa e móvel.
 
Ora, a interceptação telefônica só pode ser deferida quando não houver outro meio para a obtenção da prova e quando já existirem razoáveis indícios de autoria ou participação em infração penal, porém, ao contrário, esta medida é utilizada renovadas vezes, de forma ilegal, como principal (e exclusivo) meio de prova.
 
Além disso, apesar da lei estabelecer prazo de quinze dias para a duração da interceptação, prorrogável por mais quinze, se comprovada a necessidade, são usuais as renovações sucessivas e sem nenhum limite.
 
Mas a situação já está tão descontrolada que os abusos não param por aí. Além da grande maioria das interceptações serem ilegais em razão do seu deferimento arbitrário, não raro o teor dessas conversas vai, escandalosamente, parar no noticiário, apesar de se tratar de medida inaudita altera pars e de raríssima exceção ao direito à intimidade.
 
A imprensa que, há pouco tempo atrás, era alvo da rigorosa censura e repressão do Estado, hoje veicula conteúdo resguardado pelo segredo de Justiça em troca de audiência, esquivando-se de sua responsabilidade sob a alegação de preservar o sigilo da fonte, direito este também concedido pela Constituição da República.
 
Logo, o alvo das interceptações – sujeito de direitos, pelo menos em tese – além de já estar sendo submetido a uma investigação criminal, ainda fica à mercê da escárnio provocado pela opinião pública que diante de trechos distorcidos das conversas gravadas, bate seu martelo punitivo antes mesmo de qualquer julgamento final.
 
A situação é tão absurda que, atualmente, nem as conversas entre advogado e cliente – protegidas pelo sigilo profissional e imprescindíveis para a consagração do princípio da ampla defesa – escapam das garras do Estado. Estado Policial? Não, Estado que deveria ser Democrático de Direito.
 
Diante do uso indiscriminado da medida excepcional e da absoluta ausência de controle em relação às interceptações em curso, vários projetos tramitam no Congresso para modificar a lei atual. É uma tentativa vã de colocar tranca na casa arrombada…
 
Assim, quando discutimos se a Constituição de 1988 conseguiu superar o Estado Policial, ouso submeter ao debate a resposta “não”!
 
Diferente de questionar a natureza democrática da Constituição de 1988, criada para tentar reverter o os abusos do poder arbitrariamente constituído e a ausência de direitos e garantias fundamentais em nosso país; mas questionar até que ponto esses direitos e garantias fundamentais não estão se transformando em pura demagogia. Afinal, ainda somos reféns de um Estado Policial, só que hoje em dia as torturas são de outra natureza, mais sofisticadas do que as de antigamente e atingindo outros bens jurídicos tutelados, sem deixar marcas visíveis, mas frutos da mesma covardia. Só mudaram os agentes.
 
O deferimento desregrado de interceptações telefônicas é só um dos mal exemplos da repressão desse vigente Estado Policial. Quantas pessoas são presas por dia sem a devida fundamentação? Quanto réus são interrogados sem ao menos conversar com o defensor público que deveria estar ao seu lado? Quantos detentos vivem em condições subumanas inaceitáveis em nosso sistema carcerário?
 
Enquanto não transformarmos nossa consciência teórica do papel que cumprimos na sociedade – e aqui me refiro aos advogados, membros do Ministério Público, da Judicatura e da própria Polícia –, na prática capaz de transformar a realidade, continuaremos a viver em um Estado Policial travestido com a bela pele de cordeiro do Estado Democrático.
 
Vinte anos de Constituição: já é hora de livrá-la dessa fantasia…

 

 
Técio Lins e Silva
Conselheiro Federal da OAB
Membro do CNJ