Edição 251
A correção do FGTS e a dignidade do trabalhador
5 de julho de 2021
Gabriel Quintanilha Professor de Direito Tributário
O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) foi criado na década de 1960, pela Lei nº 5.107/1966, como parte das reformas de ajuste econômico após o ato institucional de 1964. Seu objetivo foi criar uma alternativa aos empregados que poderiam optar pelo novel regime ou manter a estabilidade decenal então vigente.
A estabilidade em questão era uma garantia de emprego ao trabalhador, que ocorria quando o empregado completava dez anos de vínculo na mesma empresa e, após a aquisição de tal direito, o empregado somente poderia ser demitido nas hipóteses de justa causa, com apuração da falta grave que originou a demissão ou por meio de pedido de demissão, com a assistência do sindicato. Com isso, para que a demissão ocorresse sem justa causa, o empregado deveria ser indenizado no montante respectivo de um mês de salário para cada ano laborado.
O novo regime era facultativo, resguardado o direito de opção pelo empregado e representava a necessidade de depósito, por parte do empregador, de 8% da remuneração paga no mês anterior a cada empregado, em conta bancária vinculada.
Frise-se que somente com a Constituição de 1988 o regime de estabilidade no emprego para empregados regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas foi extinto no Brasil, de modo que todos os trabalhadores celetistas passaram a ser obrigatoriamente optantes pelo FGTS.
Atualmente, está vigente a Lei nº 8.036/1990 que regulamenta o FGTS e descreve seus objetivos e finalidades que englobam o financiamento de programas de habitação e infraestrutura urbana, primordialmente.
Outrossim, no art. 13 da lei vigente, “os depósitos efetuados nas contas vinculadas serão corrigidos monetariamente com base nos parâmetros fixados para atualização dos saldos dos depósitos de poupança e capitalização juros de (três) por cento ao ano”.
Todavia, em 1991, com a publicação da Lei nº 8.177, foi determinada a taxa referencial (TR) como índice de correção das poupanças e, por via de consequência, das contas vinculadas, conforme os artigos 12 e 17 do referido diploma legal. Foi muito importante no contexto de hiperinflação dos anos 1990, pois acompanhava as variações de preço e corrigia o poder de compra, de modo que o cidadão brasileiro não perdesse seu poder de compra para a inflação que era galopante.
Sua relevância foi se esvaindo com a adoção da taxa Selic como principal índice de correção adotado no Brasil.
Ocorre que atualmente a TR não reflete a correção monetária necessária à manutenção do saldo constante nas contas vinculadas, representando valores inferiores aos índices inflacionários, como por exemplo nos meses de setembro, outubro e novembro de 2009. Aliás, desde 2017 que a TR é nula, tendo sido até mesmo alterada a forma de correção das poupanças em razão da grande perda causada aos trabalhadores, sobretudo porque a inflação já está superior a 4% ao ano.
Com isso, o valor constante nas contas vinculadas está completamente defasado, não tendo sido resguardada a capacidade contributiva dos seus titulares, que sequer podem utilizar tais valores além das opções previstas em lei. Assim, o trabalhador perde sua capacidade de compra e o saldo do FGTS perde seu objetivo que é proteger o empregado que, ao receber o valor de seu fundo, recebe um valor deveras inferior à expectativa, com menor capacidade de compra e de manutenção do período de desemprego.
Destaque-se que o FGTS tem como objetivo primordial a proteção do trabalhador em seu período de desemprego, mantendo sua dignidade e mínimo existencial após a perda do emprego. Desse modo, sem que ocorra a devida correção para compensação das perdas inflacionárias, o empregado irá receber menos que o devido e terá reduzida sua dignidade.
De acordo com o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 493/DF “…A TR não é índice de correção monetária, pois, refletindo as variações do custo primário da captação dos depósitos a prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do poder aquisitivo da moeda”.
Não devem restar dúvidas que a correção monetária é o meio de manter o poder aquisitivo da moeda e a TR jamais esteve efetivamente vinculada à inflação. Isso ficou claro a partir de 1999, quando a TR deixou de compensar a degradação do valor da moeda.
Como se pode ver, a manutenção dos valores depositados nas contas vinculadas do FGTS é medida que resguarda a dignidade do trabalhador, que tem a seu favor essa poupança forçada. Em razão disso, não seria absurdo admitir a aplicação do índice nacional de preços ao consumidor (INPC) como índice de correção aos referidos valores, pois esse é o índice adotado para a correção do salário-mínimo. Tal analogia é razoável ao passo que o FGTS pode ser entendido como salário indireto do trabalhador.
Assim, sobre a impossibilidade de aplicação da TR como índice de correção, entendeu o STF no julgamento da ADI 4.425/DF:
“(…) A atualização monetária dos débitos fazendários inscritos em precatórios segundo o índice oficial de remuneração da caderneta de poupança viola o direito fundamental de propriedade (Constituição federal, art. 5º, XXII) na medida em que é manifestamente incapaz de preservar o valor real do crédito de que é titular o cidadão. A inflação, fenômeno tipicamente econômico-monetário, mostra-se insuscetível de captação apriorística (ex ante), de modo que o meio escolhido pelo legislador constituinte (remuneração da caderneta de poupança) é inidôneo a promover o fim a que se destina (traduzir a inflação do período).(…)”
Em vista do exposto, não devem restar dúvidas que a utilização da taxa referencial como índice de correção das contas vinculadas do FGTS é um confisco contra o trabalhador e uma clara violação do direito à propriedade, devendo ser resguardada o seu poder aquisitivo com a adoção de um índice que realmente represente a degradação da moeda pelo fenômeno inflacionário.
Por fim, um ponto que também é relevante é o prazo prescricional para que o trabalhador pleiteie em juízo seu direito à aplicação do índice de correção mais favorável às contas vinculadas, tendo em vista que a corrosão dos saldos ocorreu de janeiro de 1999 a setembro de 2018, quando a TR acumulada foi de 41,87% e o INPC de 253,85% aproximadamente. Em vista dessa discrepância, ainda que aplicados do 3% supracitados, a diferença contrária ao trabalhador é gritante e aviltante.
Assim, o prazo prescricional já foi pacificado pelo STF quando do julgamento do tema 608 da repercussão geral, com o entendimento no sentido de que o prazo de prescrição trintenária para o FGTS é inconstitucional, entendendo pelo prazo quinquenal, no seguinte sentido: “O prazo prescricional aplicável à cobrança de valores não depositados no FGTS é quinquenal, nos termos do art. 7º, XXIX, da Constituição Federal.”
Nessa mesma esteira, o Tribunal Superior do Trabalho, adequou sua jurisprudência com a edição da Súmula 362, que dispõe:
“I – Para os casos em que a ciência da lesão ocorreu a partir de 13/11/2014, é quinquenal a prescrição do direito de reclamar contra o não-recolhimento de contribuição para o FGTS, observado o prazo de dois anos após o término do contrato;
II – Para os casos em que o prazo prescricional já estava em curso em 13/11/2014, aplica-se o prazo prescricional que se consumar primeiro: 30 anos, contados do termo inicial, ou cinco anos, a partir de 13/11/2014.
O STJ também se manifestou nesse sentido:
“(…)
IV – O Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de garantir a segurança jurídica e evitar surpresa, modulou o entendimento firmado no ARE n° 709.212/DF, adotando efeitos ex nunc de forma que aos contratos de trabalho em curso no momento do julgamento da repercussão geral submetam-se a uma de duas hipóteses: (i) se o ajuizamento da ação, objetivando o recebimento das parcelas do FGTS, ocorreu até 13/11/2019, aplica-se a prescrição trintenária, ou seja, o trabalhador tem direito ao recebimento das parcelas vencidas no período de 30 anos antes do ajuizamento da ação; e (ii) se o ajuizamento da ação, objetivando o recebimento das parcelas do FGTS, ocorreu após 13/11/2019, aplica-se a prescrição quinquenal, ou seja, o trabalhador faz jus somente ao recebimento das parcelas vencidas no período de 5 anos antes do ajuizamento da ação.
V – Recurso Especial improvido. (n° 1.841.538 – AM (2019/0297438-7) – Relatora para acórdão – Ministra Regina Helena Costa – 24/08/2020)
Desta feita, caso o trabalhador tenha ajuizado sua demanda judicial para pleitear os valores relativos à correção até 13 de novembro de 2014, está resguardado o direito à prescrição trintenária. Entretanto, caso o ajuizamento ocorra após tal data, como tem ocorrido recentemente com a inclusão em pauta e posterior retirada da ADI 5.090, o trabalhador somente terá direito à restituição dos últimos cinco anos anteriores ao ajuizamento, afinal, o direito não socorre os que dormem.
Nota___________________
1 Dormientibus Non Sucurrit Ius