Edição 71
A crise do pacto federativo
30 de junho de 2006
Bernardo Cabral Presidente de Honra do Conselho Editorial
Desnecessário registrar da minha profunda satisfação em participar deste Congresso promovido pela Academia Internacional de Direito e Economia, sob a coordenação dos ilustres Juristas Ives Gandra Martins e Ney Prado, na qualidade de palestrante e abordando o tema “A Constituição e a Crise do Pacto Federativo. A Realidade do Centrismo Político e Fiscal”.
Para tanto, se faz necessário lembrar o contexto em que foi elaborada a nossa Lei Maior, nos idos de 1987 e 1988. Assim, o primeiro ponto que desejo destacar diz respeito ao perfil do órgão ao qual foi atribuída a feitura do Pacto fundamental. Diversamente do que antes ocorrera, e até em contrariedade ao que desejado por alguns, deliberou-se por partir do nada, para a elaboração de uma Lei Maior. Preferiu-se, à sólida estaca de um Anteprojeto – formulado por um jurista ou uma comissão deles – a abertura da senda constituinte a partir do próprio povo, seus anseios, suas idéias, suas necessidades, suas convicções.
Algumas centenas de brasileiros receberam mandato, neste embutida a representatividade constituinte. E como essa legitimação era haurida e conferida sem limitações, que não as do próprio ato convocatório, decidiu-se pelo mais difícil e mais autêntico: estruturar aos poucos, tijolo sobre tijolo, piso sobre piso, o grande edifício da Constituição. Abriu-se mão da comodidade do pré-moldado e das estruturas pré-fabricadas, em nome da realização da edificação mais conforme à realidade do Brasil e dos brasileiros.
Uma vez mais estava o Brasil mobilizado para a tarefa de elaborar uma nova Carta Magna. Tratava-se de reordenar democraticamente o país após a ruptura da ordem constitucional, e a importância, para a sociedade brasileira, de uma Constituição democraticamente votada era evidente para todos. Sem ela os valores fundamentais em que se deve basear a sociedade estão permanentemente ameaçados. Uma Constituição deve espelhar o estado atual das relações sociais, mas, ao mesmo tempo, deve servir de instrumento para o progresso social.
Para tanto, elegeu-se um método a ser utilizado pelo Congresso Constituinte que privilegiou a espontaneidade das contribuições ao invés de adotar um texto inicial, como disse antes, a partir do qual trabalharíamos. Era essa metodologia extremamente controvertida, devido às suas características democráticas. Realizou-se amplo levantamento das aspirações nacionais, expressas pelos constituintes e também pelo próprio povo através das emendas populares. Nesse estágio, o objetivo era termos um documento que refletisse a consciência da maioria do povo.
Foi montada uma estrutura composta de subcomissões e comissões temáticas, que dariam uma visão da realidade brasileira que se mostrou específica e necessariamente parcial. Como resultado, temos hoje um documento no qual as diversas partes refletem diferentes posicionamentos ideológicos e, portanto, de difícil articulação numa proposta unificada. Tratou-se, porém, apesar das críticas suscitadas, de um trabalho extremamente profícuo, que permitiu que soubéssemos aquilo que setores majoritariamente da sociedade tinham a propor.
Nesses palcos setoriais transcorreu a primeira etapa do grande esforço: justapondo idéias, amalgamando propostas, e formulando textos, as subcomissões foram construindo a parte que lhes cabia da engenharia constituinte. Seus trabalhos não eram um “diktat” setorial: pelo contrário, eles eram submetidos a intensas discussões entre os constituintes, dissecados em assembléias públicas (com enorme participação popular, diga-se) estudados em cuidadosos pareceres e, afinal, votados, em sessões de grande atividade e mesmo, por vezes, eletrizantes.
Aliás, essa era uma tônica do Congresso, naqueles dias, como até a mídia repetidamente assinalou: os corredores estavam repletos de populares, cidadãos, que circulavam de um gabinete ao outro, de uma comissão a outra, abordando constituintes, convocando-os a ouvirem suas idéias e aspirações, numa sadia prática lobista, bem diversa das que por vezes se registram nesta República. Aliás, essa era a marca daqueles dias: vivia-se uma República, um momento em que a atividade política era res publica, coisa de todos, de todos nós brasileiros. É oportuno, mesmo, evidenciar que a participação da cidadania, aqui relembrada, foi um poderoso vetor de atuação popular, aplacando iras e ressentimentos, transformando-os em energia positiva, construtiva, participativa. E, como tal, a participação em causa foi um valioso instrumento de concretização da transição democrática, delicada etapa de nossa História, ainda inconclusa.
Aquele que leia, sem paixão e preconceito, o texto da Constituição de 1988 poderá, descontados os naturais problemas de qualquer obra do homem, asseverar que se trata, sem dúvida, de diploma exemplar, profundamente renovador, à altura dos melhores que o constitucionalismo tem produzido, aí incluídas as justamente decantadas Constituições de Espanha e Portugal. Façamos breve ponderação e esse respeito.
O primeiro dado a destacar é de topografia, mas igualmente de conteúdo: o texto se instaura com a indicação dos princípios fundamentais, direitos individuais, garantias fundamentais e direitos sociais. Em vez de clássica exposição vestibular da estrutura do Estado e de seus Poderes, deu-se prevalência ao cidadão e ao trabalho: no dado geográfico, uma eleição ideológica. Esta, verdadeiramente, é uma Constituição cidadã. E o exame sumário de seus Títulos reforça tal convicção. Vejamos alguns reflexos e conseqüências do texto constitucional no Estado Democrático de Direito:
• a expressa consagração do respeito aos direitos humanos como princípio fundamental;
• o alargamento das garantias fundamentais, com ênfase para o “habeas data”, o mandato de injunção, a garantia do devido processo legal, o mandato de segurança coletivo, a imprescritibilidade de certos delitos gravíssimos etc;
• a consagração constitucional dos direitos fundamentais do trabalhador, com particular referência ao fortalecimento do sindicato e à ampliação do direito de greve;
• a maior dimensão do sufrágio universal e do direito de votar e de ser votado;
• a redefinição das competências normativas, conferindo aos Estados e ao Distrito Federal poderes jamais antes concedidos;
• a atribuição ao Município de efetivos instrumentos de autonomia;
• o fortalecimento e aumento de atribuições do Legislativo, que é a casa do povo, deslocando o Executivo da posição majestática, antes detida;
• os poderes de investigação próprios das autoridades judiciais conferidas às Comissões Parlamentares de Inquérito;
• a reformulação da partilha tributária, de sorte a viabilizar a federação;
• o estabelecimento, pioneiro no patamar da Constituição, de uma clara e ordenada política urbana;
• o regramento, voltado para os interesses da sociedade, do sistema financeiro nacional;
• a elaboração, por vez primeira, de uma estrutura integral da seguridade social;
• a total reformulação da disciplina fundamental da educação e da cultura, assentando a amplitude de seus fins e a generalização de seus beneficiários, priorizando o sistema público como destinatário dos recursos arrecadados da população;
• os capítulos absolutamente inovadores e exemplares da comunicação social, ciência e tecnologia, desportos; o do meio ambiente, primeira consagração mundial do tema em sede constitucional, com a dignidade de direito público subjetivo, de natureza difusa;
• o combate sem trégua à corrupção, através do fortalecimento do Ministério Público;
• a preocupação específica com o idoso, a criança, o adolescente e o índio, todos enfim justamente considerados como titulares de atenção especial;
• a revalorização da família, com o reconhecimento de seu novo perfil e a abolição das discriminações entre os filhos;
• o fim da censura.
MINICONSTITUINTE OU NOVO PACTO CONSTITUINTE
Já há numerosas declarações sobre a convocação de uma Constituinte restrita ou Mini-Constituinte, às quais – com o respeito que os seus defensores merecem – é necessário, senão indispensável, fazer algumas oposições.
Qual a semelhança entre o Brasil de hoje e o de 1964?
Vamos retroagir um pouco no tempo.
O primeiro semestre de 1964, sob os impulsos de um movimento popular, fruto ou não de equívoco, as Forças Armadas, com o apoio, manipulado ou não, de significativa parcela da classe política (parlamentares, governadores e prefeitos), destituíram o Presidente da República e operaram lesões na ordem político-institucional vigente, através dos chamados atos institucionais.
Após um período de convivência da Constituição de 1946 com os Atos Institucionais, o Congresso Nacional foi chamado a institucionalizar o quadro jurídico resultante, através da elaboração da nova Constituição, que foi promulgada a 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigor a 15 de março do mesmo ano.
Durou pouco e, no curto espaço de tempo de sua vigência, ouviram-se as primeiras vozes em favor da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, idéia que, informalmente, foi defendida, desde abril de 1964, pelo saudoso Senador pela Bahia, Aluísio de Carvalho Filho. A idéia não prosperou, uma vez que a 13 de dezembro de 1968 o estamento militar impôs ao Presidente da República a edição de Ato Institucional de nº 5, que promoveu a completa ruptura político-institucional.
Eis aí o motivo forte de então para a convocação da Assembléia Nacional Constituinte: a completa ruptura político-institucional. E dela decorreram todos as ações políticas que tiveram curso no País.
Como pois, no momento atual – apesar dos problemas econômicos – quem pode negar a existência de um tempo excepcional de liberdade e da plenitude do Estado de Direito?
É o que me leva a adotar opinião contrária ao chamado novo pacto constituinte.
Ademais, a doutrina consiste em ver a Constituição como lei fundamental, onde se resguardam, acima e à margem das lutas de grupos e tendências, alguns poucos princípios básicos, que uma vez incorporados ao seu texto tornam-se indiscutíveis e insuscetíveis de novo acordo e nova decisão. Como não é todos os dias que uma comunidade política adota um novo sistema constitucional ou assume um novo destino, cumpre extrair da Constituição tudo o que permite a sua virtualidade, ao invés de, a todo instante, modificar-lhe o texto, a reboque de interesses meramente circunstanciais.
Essa a modesta contribuição que trago a este Congresso, formulando votos para que a Academia Internacional de Direito e Economia continue como uma das vanguardeiras na defesa do País.