Edição 265
A Defensoria Pública e o acesso à Justiça Eleitoral
30 de agosto de 2022
Marcos Lourenço Capanema de Almeida Defensor Público do Estado de Minas Gerais/ Juiz Membro Substituto do TRE-MG
A Constituição Federal de 1988 (CF/1988), ao inaugurar a nova ordem democrática, adotou o sis
tema jurisdicional de verificação de poderes, prevendo a existência de um Poder Judiciário eleitoral especializado na organização das eleições e na solução dos conflitos relacionados ao processo eleitoral. Na ordem jurídica vigente, à Justiça Eleitoral coube a efetivação dos direitos políticos com o conhecimento das condições de elegibilidade e das inelegibilidades no registro das candidaturas, bem como com a supervisão do processo eleitoral de modo a garantir a liberdade do eleitor e a legitimidade e normalidade das eleições contra o abuso do poder econômico.
O mesmo legislador constituinte, inaugurando uma nova era para o acesso à Justiça, instituiu a Defensoria Pública como uma agência constitucional destinada à “orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”, e que, com ainda mais intensidade após a Emenda Constitucional nº 80, de 2012, apresenta-se como “essencial à função jurisdicional do Estado” e, ainda, “expressão e instrumento do regime democrático”.
É incumbência constitucional e legal da Defensoria Pública (art. 134, caput, CF/1988, e art. 1º, da Lei Complementar/ LC nº 80/1994) a defesa dos direitos humanos, cabendo zelar pela sua prevalência e efetividade (Art. 3º-A, da LC nº 80/1994) e, ainda, é sua função institucional “promover a difusão e conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico” (Art. 4º, da nº LC 80/1994). Outrossim, como é cediço, “o Direito eleitoral, em razão de sua importância na garantia dos direitos políticos e do ambiente democrático, é reconhecido como uma categoria abarcada pela força expansiva da proteção internacional dos direitos humanos”.
Na perspectiva da proteção aos direitos humanos por meio da efetivação dos direitos políticos, a atuação institucional da Defensoria Pública ganha especial relevo. Como instrumento do regime democrático na garantia do exercício de direitos pelos mais vulneráveis, a atuação defensorial tem especial papel preventivo em relação a condutas que podem afetar a liberdade do eleitor. Pelo exercício do poder de requisição ou mesmo, quando inevitável, pela judicialização, por exemplo, efetiva-se as tutelas de saúde na obtenção de medicamentos, insumos, fraldas, vagas de internação, transporte sanitário e obtenção de documentos. Da mesma forma, a tutela de educação como a obtenção de vagas em creche e escola, transporte escolar ou obtenção de atendimento especializado a crianças com deficiência são assegurados pela intervenção da Defensoria Pública, que previne a atuação de intermediários, que muitas vezes se apropriam do serviço público para trocá-lo por votos. A efetivação dos direitos inerentes ao exercício da cidadania, portanto, apresenta-se como oportuna e desejável prevenção à captação ilícita de sufrágio e à prática de condutas vedadas pelos agentes públicos durante a campanha eleitoral.
A Defensoria Pública tem especial importância no combate à violência política e aos discursos de ódio na propaganda política e eleitoral. Recentemente, a Lei nº 14.192/2021 alterou o Código Eleitoral e criminalizou expressamente a violência política, vedando qualquer tipo de propaganda que deprecie a condição de mulher ou estimule sua discriminação em razão do sexo feminino, ou em relação à sua cor, raça ou etnia. O novel tipo penal do art. 326-B, por exemplo, criminalizou conduta com a finalidade de impedir ou de dificultar a campanha eleitoral da mulher ou o desempenho de seu mandato eletivo. O discurso de ódio e a violência política, além de vedados na campanha eleitoral, em tese podem dar ensejo a ação civil pública proposta pela Defensoria Pública, com pedido de dano moral coletivo na Justiça comum. Da mesma forma, a fraude às cotas de gênero pelos partidos políticos – prática que impede na prática a promoção da participação política das mulheres – a par da cassação dos eleitos em chapas em que constatada, poderá, em tese, também redundar em dano moral coletivo pedido em sede de ação civil pública. No âmbito dos núcleos de defesa dos direitos da mulher, portanto, é possível o combate à violência política de gênero.
Na seara socioeducativa e prisional, a Justiça Eleitoral tem se empenhado em garantir o direito ao voto para o preso provisório e para o adolescente em cumprimento de medida de internação. A instalação de seções eleitorais em unidades prisionais e socioeducativas possibilita o exercício dos direitos políticos por aqueles que se encontram com a liberdade cerceada, mas sem a suspensão dos seus direitos. O Brasil é um dos poucos países do mundo que garante o voto aos adolescentes que, assim, precisam ser informados de seus direitos políticos, pois, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tem direito a “participar da vida política, na forma da lei” (art. 16, VI). A Defensoria Pública, como órgão da execução penal e como órgão com atuação no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), tem o dever de ofício de garantir o exercício do voto àqueles provisoriamente segregados do convívio social.
Outro ponto de interseção da Defensoria Pública com a Justiça Eleitoral é a educação em direitos. Ambas as instituições se esforçam na promoção dos direitos humanos por meio de ações de comunicação e de interlocução com a sociedade para promoção dos direitos humanos e consequente fortalecimento da democracia. Aos defensores públicos, por exemplo, cabe a intervenção para que a pessoa idosa tenha a participação na vida política, na forma do Estatuto do Idoso, para que à pessoa com deficiência haja a “garantia do livre exercício do direito ao voto e, para tanto, sempre que necessário e a seu pedido, permissão para que a pessoa com deficiência seja auxiliada na votação por pessoa de sua escolha”, na forma da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
A atuação realizada pela Defensoria Pública em relação à efetivação dos direitos políticos e defesa do regime democrático evidenciam a sua essencialidade para o exercício da função jurisdicional da Justiça Eleitoral, ocupando espaço que não se confunde com a atuação fiscalizatória do Ministério Público e nem com o patrocínio de partidos e candidaturas pelos advogados privados. O novo Código Eleitoral – atualmente em tramitação no Senado, após aprovação pela Câmara dos Deputados – precisa incluir a Defensoria Pública Eleitoral e regulamentar a atuação dos defensores públicos nos órgãos da Justiça Eleitoral de modo a efetivar a defesa dos hipossuficientes e efetivar o exercício dos direitos políticos previstos na constituição com a promoção do pluralismo e da proteção dos mais vulnerabilizados que necessitam de defesa técnica, por exemplo, contra as graves consequências jurídicas advindas de eventuais processos por abuso de poder, conduta vedada, criminais ou de prestação de contas.
Nota______________________
1MONTEIRO, Vitor de Andrade. “Direitos humanos e direitos políticos: perspectivas e tendências do Direito eleitoral perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos”. In Revista do Instituto Interamericano dos Direitos Humanos, Vol. 61, p. 174.