A defesa da democracia é o ponto de partida e de chegada

2 de fevereiro de 2023

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Entrevista com a Presidente reeleita da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos, Rivana Ricarte

Encabeçada pela Defensora Pública do Acre Rivana Ricarte, a chapa única “Confiança e trabalho coletivo para avançar” venceu em dezembro passado as eleições dos conselhos diretor, consultivo e fiscal da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep) para o biênio 2023-2025. Natural da Paraíba, a primeira mulher presidente reeleita da entidade está na carreira desde 2002. Foi apenas a terceira a presidir a Anadep e a primeira da Região Norte a ocupar o cargo.

A representatividade regional da gestão foi ampliada com a eleição da atual presidente da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro (ADPERJ), Defensora Juliana Lintz, para a Vice-Presidência institucional; do Defensor Público da Bahia Igor Santos para a Vice-Presidência Jurídico-Legislativo; e do presidente da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Tocantins (ADPETO), Guilherme Vilela, para a Vice-Presidência Administrativa.

Na entrevista a seguir, a presidente reeleita fala do trabalho para fortalecer as prerrogativas da carreira e a defesa dos direitos das pessoas em situações de vulnerabilidade, incluindo a atuação perante o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF), bem como o encaminhamento de sugestões ao novo governo durante o período da transição.

Revista Justiça & Cidadania – A senhora foi reeleita para seguir na Presidência da Anadep. Qual é o balanço da gestão no último biênio e quais são os principais desafios para os próximos dois anos?
Defensora Rivana Ricarte – O último biênio foi marcado por muitos desafios. O País viveu retrocessos econômicos, sociais e no campo dos direitos humanos. Houve tentativa de sucateamento de serviços públicos, reformas que deveriam promover a modernização do arcabouço legislativo têm representado, na verdade, a eliminação de direitos, ao mesmo tempo em que milhões de brasileiros retornaram à pobreza. Episódios de racismo, intolerância, violência de gênero e violência policial se tornaram mais frequentes. Tudo isso impactou no trabalho de defensoras e defensores públicos e também no trabalho associativo realizado pela Anadep. Enquanto entidade de classe, a diretoria tinha consciência que era preciso evitar retrocessos. Alcançamos o objetivo. A Anadep defendeu as prerrogativas de defensoras e defensores públicos, zelou pela unidade e autonomia institucionais da Defensoria Pública e defendeu a simetria com as demais carreiras do sistema de Justiça. Trabalhamos assim no campo político-legislativo no Congresso Nacional, em diversas pautas, e alcançamos a preservação da nossa autonomia e da simetria com as carreiras autônomas do sistema de Justiça, o que possibilitou a realização de concursos, manutenção dos direitos de defensoras e defensores públicos a promoções, férias e indenizações. Tivemos ampla participação em audiências públicas de temáticas mais diversas, contribuindo com o olhar da Defensoria Pública para as pautas criminais de pessoas com deficiência, crianças e adolescentes, de pessoas em situação de rua, de Direito do Consumidor, direitos das mulheres, entre outras. No âmbito jurídico, a atuação se deu por meio da propositura e acompanhamento de ações constitucionais perante o STF, com o fim de defender o modelo público de acesso à Justiça, as pautas de fortalecimento e de defesa das prerrogativas da Defensoria e das defensoras e defensores públicos. Obtivemos vitórias importantes como na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) no 4.636 e no Recurso Especial (RE) no 1.240.999, ambos tratando da nossa desvinculação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). As ADIs da prerrogativa de requisição também representaram um marco, além de diversas ADIs que consolidam a autonomia administrativa da Instituição.

Ainda é preciso reconhecer, em 2022, a atuação pioneira como entidade nacional integrante da Missão de Observação Eleitoral junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em um ano de ataques ao sistema eleitoral, era preciso um posicionamento em defesa das instituições democráticas. Não nos furtamos de assim agir. Ora em nome próprio, ora em conjunto com as diversas entidades que formaram a coalização em defesa do sistema eleitoral, mas sempre na defesa da democracia. Preciso aqui fazer um agradecimento especial aos 81 defensores e defensoras públicos que se voluntariaram para atuar como observadores, fazendo com que tivéssemos uma importante capilaridade de observação.

Nos próximos dois anos, teremos no País um novo governo, uma nova composição da Câmara e do Senado Federal. Certamente os desafios serão outros, mas continuarão a existir. A defesa da democracia deve ser ponto de partida e de chegada em toda e qualquer discussão no Executivo, no Legislativo e no âmbito do Judiciário. O tecido social do País está fragilizado. Os ataques aos prédios das instituições ocorridos neste início de ano revelam que muito precisará ser feito e que isso exige união. Durante o governo de transição, a Anadep participou ativamente do processo encaminhando sugestões legislativas e de políticas públicas. Algumas medidas defendidas já estão sendo tomadas pelo governo. Esperamos que haja espaço para construção de políticas públicas de maior consolidação do acesso à Justiça e estamos prontos para, enquanto entidade associativa nacional, trabalhar pelo fortalecimento do arcabouço jurídico normativo da Instituição, pela defesa das prerrogativas da carreira e dos direitos das pessoas em situações de vulnerabilidades.

RJC – Em 2022 foi finalizado o julgamento da série de ações que tinham por objetivo retirar a prerrogativa de requisição da Defensoria Pública. O placar foi favorável à Instituição. Como foi a atuação da Anadep nesse caso e como tem sido a atuação estratégica da entidade perante o Supremo Tribunal Federal para garantir a autonomia da Instituição e evitar retrocessos?
DRR – A prerrogativa de requisição concede à Defensoria Pública a possibilidade de requisitar às autoridades, agentes públicos e entidades privadas exames, certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos, informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício de suas atribuições, conforme prevê a Lei Complementar no 80/1994, de modo a salvaguardar os interesses dos hipervulneráveis que são atendidos pela Instituição. Foram 22 ADIs propostas pela Procuradoria Geral da República no final de 2020 questionando a constitucionalidade da prerrogativa. A Anadep atuou em todas as ações como amicus curie, argumentando que a prerrogativa não é um simples benefício para a pessoa da defensora e do defensor público, mas sim um mecanismo que confere concretude ao princípio da isonomia, promove o acesso à Justiça e impacta também na redução de custos para o processo. O argumento jurídico que trouxemos foi inteiramente acatado pelos ministros e, como você ressalta, saímos vitoriosos em todas elas em 2022. A prorrogativa é constitucional. Foi um trabalho associativo que também mobilizou a sociedade civil, a imprensa e as redes sociais. Conseguimos que todos entendessem que estevamos lutando pelo direito da população ser mais bem assistida, com o uso de uma ferramenta da defensora e do defensor publico para otimizar o acesso à Justiça.

A atuação da Anadep perante o STF para garantir a autonomia da Instituição e evitar retrocessos é sempre estratégica, seja propondo as ações, seja atuando como amicus curie. Entendemos que é importante a construção da jurisprudência que consolida as conquistas legislativas e assim acarreta no fortalecimento da Instituição. Esse fortalecimento institucional tem como efeito direto e imediato o fortalecimento de direitos de milhares de pessoas em situações de vulnerabilidades. Por isso, levamos também, na medida do possível, casos que demonstram aos ministros do STF os efeitos práticos das demandas na vida de cada cidadão e cidadã que é impactada pelo serviço prestado pela Instituição. Além disso, a Anadep compreende o seu papel na defesa de direitos e situações que levam à fragilização de direitos da população assistida. Por essa razão atuamos em demandas que questionam a reforma da Previdência, o direito à doação de sangue pelas pessoas LGBTQIA+ e a discussão do juiz de garantias, entre outras.

RJC – O que a Anadep espera do novo governo e do novo Congresso Nacional em relação ao acesso à Justiça para as pessoas em situações de vulnerabilidades?
DRR – Como mencionei, participamos ativamente em discussões e envio de propostas concretas durante o governo de transição. Nos primeiros dias do governo vimos que algumas sugestões já foram acatadas. Esperamos que o novo governo volte o olhar para temáticas sociais e de políticas públicas estruturantes do Estado, mas que a centralidade do tema desenvolvimento do País caminhe com o desenvolvimento dos serviços voltados à proteção das cidadãs e cidadãos vulnerabilizados. Temos defendido que o combate à pobreza que hoje assola o País precisa também do fortalecimento do arcabouço jurídico e do necessário acesso aos direitos. E isso, deve ser feito por meio da Defensoria Pública, que é a Instituição constitucionalmente responsável para assim agir. Há muito o trabalho de defensoras e defensores não é de produzir acesso à Justiça unicamente sob o prisma individual. A atuação estratégica de defensoras e defensores públicos implica na atuação em demandas coletivas e coletivizadas que conferem mais autonomia e mais direitos à população. Questões de moradia, demandas de consumo de grande impacto, violação ao meio ambiente e população indígena, entre outras, todas são questões que envolvem atuação de defensoras e defensores públicos. Por isso, também esperamos que o modelo público de acesso seja fortalecido. 

RJC – A Emenda Constitucional (EC) nº 80/2014 reposicionou o status constitucional da Defensoria Pública, conferindo à Instituição a simetria com as carreiras da magistratura e do Ministério Público. A senhora crê que a Defensoria Pública necessita de mais avanços no arcabouço constitucional? A simetria tem sido respeitada?
DRR – Há mais de oito anos a Defensoria Pública está constitucionalmente reposicionada no cenário jurídico-constitucional brasileiro. A EC nº 80/2014 conferiu à Defensoria Pública idêntico tratamento constitucional que é dado as carreiras do Ministério Público e da magistratura. Essa tessitura constitucional vem sendo corroborada por extensa jurisprudência do STF, mas o trabalho jurídico legislativo feito pela Anadep tem sido para consolidar o respeito a essa simetria. As reformas legislativas têm que ser realizadas com esse foco e há muito ainda a ser feito para o avanço da Instituição. Do ponto de vista constitucional, precisamos falar sobre a composição dos tribunais. A consolidação da autonomia da Defensoria impõe que se assegure presença da defensora ou defensor na composição dos Tribunais de Justiça e da Suprema Corte. Outras medidas legislativas importantes são o estabelecimento de percentual na Lei de Responsabilidade Fiscal e a previsão expressa, no Código Eleitoral que está sendo objeto de reforma, da atuação da Defensoria Pública.

RJC – Pela segunda vez consecutiva, a ANADEP tem duas mulheres no comando da entidade. Como a senhora enxerga esse movimento da ocupação feminina nos espaços de poder, particularmente no sistema de Justiça?

DRR – Esse não é um movimento novo. Para que hoje tenhamos uma gestão que se inicia, novamente, com duas mulheres no comando da entidade, é preciso resgatar alguns passos importantes. Ainda em 2017, a Anadep começou a discutir a mudança de seu nome de Associação Nacional dos Defensores Públicos para Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos. A mudança de nome impulsionou adequação em todos os textos da entidade e também modificação da linguagem em documentos oficiais da Defensoria Pública em todo País. Com essa visibilidade nominada, ficou mais evidente o questionamento de onde essas mulheres estavam dentro das instituições e associações. 

Durante meu primeiro mandato à frente da entidade (biênio 2021-2023), mantivemos a lente de gênero em todas as pautas, promovendo e incentivando a participação de defensoras públicas mulheres em diversos ambientes de representação associativa. Além disso, promovemos na Anadep um curso de formação política, participação institucional e liderança para defensoras públicas. Isso porque compreendemos que a ocupação feminina nos espaços de poder, principalmente no sistema de Justiça, não pode está dissociada de uma visão crítica das múltiplas dimensões da violência de gênero e do conhecimento da rede de mulheres existente, bem como das questões relacionadas ao sistema e desenvolvimento de estratégias para o rompimento do machismo.

Temos consciência que mais mulheres no poder e, principalmente, no sistema de Justiça é fundamental. Contudo, a mulher que ocupa protagonismo de poder precisa estar inserida no contexto, compreender que a posição contramajoritária de gênero implicará num novo modo de construir o sistema. É preciso que se quebre a maneira patriarcal da gestão com atitudes concretas e, ademais, que se abra o caminho para outras mulheres. É preciso estar vigilante para não cair na armadilha do patriarcado e repetir comportamentos masculinos na maneira de agir. É essencial que as mulheres mantenham o olhar atento e contem com o apoio de outras mulheres. Temos que combater práticas cotidianas do universo patriarcal como o mansplaining ou o manterrupting.

Também é importante frisar que, embora se perceba o crescimento do movimento da ocupação feminina nos espaços de poder, quando focamos no avanço do fortalecimento da representação da diversidade étnico-racial nesse espaço, não há avanço a ser celebrado. A dificuldade das mulheres e pessoas não brancas em alcançarem cargos de liderança é uma questão que precisa estar em pauta.

RJC – Para a Anadep, como tem sido a percepção da sociedade sobre o trabalho das defensoras e defensores públicos?
DRR – Pesquisas realizadas já apontaram a Defensoria Pública como a Instituição mais confiável do sistema de Justiça. Isso é muito positivo. Em um País assolado por crises sociais é importante que a sociedade conheça e confie na Instituição que promove acesso à Justiça a milhares de pessoas em situações de vulnerabilidades. Como conceito de vulnerabilidade, meramente no aspecto econômico, está há muito ultrapassado e hoje é pacífico que a Defensoria Pública realiza um papel constitucional e democrático de verdadeira guardiã dos vulneráveis, tutelando segmentos da sociedade como, por exemplo, as pessoas com deficiência, idosas, enfermos, pessoas em situação de rua, dentre outros grupos vulnerabilizados. É importante que a população conheça seus direitos e, em uma sociedade democrática, que esses direitos sejam respeitados. Na Anadep temos trabalhado na divulgação do trabalho das defensoras e defensores públicos para que essa percepção positiva seja constante.

Da esquerda para direita, Igor Santana, Vice-Presidente jurídico-legislativo; Rivana Ricarte, Presidenta e Juliana Lintz, Vice-Presidenta institucional; e Guilherme Vilela, Vice-Presidente administrativo