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A defesa das prerrogativas da advocacia nos 85 anos da OAB

11 de dezembro de 2015

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Claudio Pacheco Prates Lamachia1A advocacia é elemento essencial para a conjuntura democrática do Brasil. Não só hoje, mas desde a criação dos cursos de Direito, aqueles que exercem a profissão da advocacia são fundamentais para a consolidação dos valores mais nobres do Estado de Direito.

O advogado é responsável por ser a voz do cidadão, defendendo a dignidade, o patrimônio, a honra, a liberdade, e até mesmo a vida das pessoas. Portanto, garantir-lhe prerrogativas profissionais não é conceder privilégios, mas contribuir para a consolidação do regime republicano e democrático.

Antes mesmo da criação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ainda no regime monárquico, a classe da advocacia emergente, em união com os demais juristas da época, já convergia sobre algumas das demandas dos profissionais do Direito, como a efetiva independência do magistrado, a separação da justiça e da política, a jurisdição definitiva dos juízes vitalícios e a diminuição do excesso de poder da jurisdição correicional.[1] Essas demandas são tentativas de se estabilizar o poder soberano recém-independente e refletem o espírito do liberalismo dominante à época.

Mais à frente, iniciavam-se as lutas da advocacia pela independência e remuneração digna da classe, especialmente a partir dos avisos emitidos pelo Ministério da Justiça, que consolidavam o entendimento sobre diversos temas.

O Aviso n. 233 de 1860, ao presidente da província do Rio de Janeiro, estabeleceu que o defensor de um réu perante o júri tinha direito a custas, independentemente da condição de advogado provisionado. O Aviso n. 418 de 1860, também ao Rio de Janeiro, declarou que não podia ser processado o advogado que aconselhasse contra as ordenações e o direito expresso, conferindo-lhe autonomia. O Aviso n. 251 de 1862, ao presidente da província de Santa Catarina, determinou, por sua vez, que os advogados não estavam sujeitos às correições dos juízes, de modo a impedir o abuso de poder por parte de alguns magistrados.

A diminuição de burocracia para o exercício da profissão, pauta do novo CPC, foi também realidade na segunda metade do século XIX.

A Decisão n. 360 do presidente do Tribunal do Tesouro Nacional, de 1862, estabeleceu que os bacharéis em Direito que professassem as letras de seu grau acadêmico podiam passar procuração de próprio punho, a qual teria a mesma força de autenticidade daquelas passadas por tabelião público. É uma prerrogativa semelhante às que hoje são garantidas pelo art. 425, inciso IV, do novo CPC, e art. 830, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A força dos advogados crescia ao lado de sua credibilidade perante a sociedade.

Mas a verdade é que, até então, os direitos e as prerrogativas dos advogados mais se assemelhavam a benesses de Estado do que garantias ao Estado Democrático de Direito. Mais pareciam privilégios do que, essencialmente, prerrogativas. O reconhecimento do múnus público e a necessidade de se resguardar o exercício da profissão – não como concessão do Estado, mas como obrigação – foram gradativos ao longo da história do Brasil. Esse entendimento se fortaleceu com a proclamação da República, mas ainda hoje não está perfeitamente consolidado, cabendo à classe continuar bradando para garantir o pleno respeito à dignidade da advocacia.

Somente anos mais tarde, em 1954, com uma OAB já fortalecida e uma sólida compreensão do instituto das prerrogativas, a luta pelos direitos dos advogados começou a ganhar sua identidade. Nesse ano, o Conselheiro Federal Letácio Jansen apresentou uma indicação ao Conselho com a finalidade de criar, em cada Seccional, uma comissão permanente de Defesa das Prerrogativas dos Advogados, que atuaria com as comissões de Sindicância e Disciplina. A justificativa era um libelo a favor da emancipação da profissão, que o conselheiro julgava desprestigiada em relação à importância que ocupara outrora na sociedade brasileira.[2]

Segundo Letácio, o auxílio e a proteção do Conselho à advocacia não deveriam ser apenas simbólicos. Demandavam efetivo respaldo, por meio de planos de previdência, tabelas de honorários mínimos e caixas de assistência, entre outras medidas.

Nesse cenário político, e considerando a crise econômica dos fins da década de 1940, o saudoso Miguel Seabra Fagundes enunciou os seguintes dizeres, ao tomar posse na presidência:

A defesa da classe, que a lei inclui ao lado da seleção e da disciplina como uma das funções da Ordem, não encontra, na lei mesmo que a ela alude, os instrumentos desejáveis de eficiência. […] É mister não esquecer, que se o exercício da advocacia pode propiciar remunerações condignas, muitos profissionais há nos estados e aqui mesmo, a maioria de certo, que dela mal retiram o indispensável.[3]

 

Fortalecia-se a luta por uma remuneração condigna aos advogados, vivamente defendida, ainda hoje, nas campanhas da OAB Nacional.

Em 1942, o Decreto-Lei n. 4.563 autorizou a criação das Caixas de Assistência dos Advogados. Vinte anos depois, era sancionado o projeto de um plano previdenciário para a classe, uma decisão que fez “justiça a uma classe que tem influído decisivamente na evolução do Estado, na prática do direito e no aprimoramento da ordem jurídica”.[4] Também em 1962, elaborava-se o anteprojeto do Estatuto que seria aprovado em 1963, após 7 anos de tramitação.

A história demonstra o equilíbrio dos dirigentes da Ordem entre as questões político-conjunturais e as demandas da classe. Quando, por um lado, a OAB rebatia as posições autoritárias que ganhavam força no cenário político nacional, em defesa da sociedade, por outro lado os advogados tinham suas prerrogativas protegidas por uma Instituição sólida e responsável. A defesa do advogado e a proteção do cidadão convergem para um único horizonte, que é o Estado Democrático de Direito.

Um ano antes do golpe militar, era aprovado o Estatuto da OAB e da advocacia. Mesmo após inúmeras alterações e tentativas de desfigurar a proposta inicial da Ordem, esta foi uma conquista histórica para o fortalecimento da profissão. A sanção da lei:

[…] consagrava não apenas a aspiração de uma classe, mas fundamentalmente uma imposição social em que a tônica era a necessidade de regulamentar-se harmonicamente a advocacia, para que esta pudesse, como profissão, ser exercida com a altivez, independência e a autonomia que são o seu apanágio.[5]

 

Uma das maiores polêmicas na aprovação do Estatuto foi a questão das prerrogativas advocatícias, que muitos ainda enxergavam, equivocadamente, como privilégios, e não como requisitos indispensáveis ao devido processo legal, sua verdadeira essência.

Com o objetivo de restringir a autonomia e as garantias do advogado, propôs-se a Emenda n. 20 do Senado Federal, que buscava a supressão da presença do representante da OAB no ato de lavratura do auto de prisão em flagrante realizada em razão do exercício da advocacia, sob pena de nulidade da prisão. A Emenda, em uma apertada votação, foi rejeitada, restando reconhecida pelo Legislativo brasileiro a importância de um advogado autônomo e independente para o bom funcionamento da Justiça. Consolidava-se uma prerrogativa ainda hoje garantida pelo art. 7o, inciso IV, do Estatuto vigente.

Em 1964, com o golpe militar, foi imediata a percepção da OAB de que o livre exercício da profissão encontrava-se ameaçado, quando Sobral Pinto indicou ao Pleno da Ordem a aprovação de um documento que expressasse a condenação às indevidas restrições no exercício da profissão e exigisse a libertação do advogado José Carlos Brandão Monteiro, sequestrado por forças de segurança.

Sobral Pinto, representando o advogado cuja atuação foi restringida, conquistou a concessão de HC e a quebra de sua incomunicabilidade, seguidas pela sua libertação. Mas esse era só o início de um cenário de prisões autoritárias, torturas e assassinatos contra aqueles que tomavam a frente na luta pela legítima justiça.

No entanto, após 20 anos de resistência, a Ordem e a advocacia, não obstante as tentativas de supressão de sua essência republicana, saíram vitoriosas, ao lado da democracia.

Em 1988, no ano de promulgação da Constituição, era realizada a XII Conferência Nacional com o tema “O advogado e a OAB no processo de transformação da sociedade brasileira”, que abriu muitos espaços para discussões sobre as prerrogativas do exercício profissional, especialmente quando aprovada, no texto da Carta Magna, a inviolabilidade do advogado para atuar com independência em sua função essencial à Justiça.

Com a travessia democrática, as mudanças estruturais na carreira da advocacia exigiam a reestruturação do Estatuto, que teve início em maio de 1991, a partir da aprovação do Regimento especial para os trabalhos de elaboração do anteprojeto de lei do novo Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Manteve-se o Conselho em sessão extraordinária permanente para a discussão e aprovação do anteprojeto que prestigiou uma “advocacia forte, atuante, com prerrogativas, sem que o Poder Judiciário pudesse estar a cada momento interferindo contra o advogado”.[6]

O novo Estatuto, com o seu art. 7o e todas as demais disposições que resguardam o exercício profissional, é um marco histórico para as prerrogativas do advogado, pressupostos democráticos de uma sociedade civilizada.

Não devem ser confundidas com meros privilégios, como foram por muito tempo. As prerrogativas advocatícias são instrumentos destinados a:

[…] proteger e amparar os direitos e garantias que o direito constitucional reconhece às pessoas; conferem a efetividade às franquias constitucionais invocadas em defesa daqueles cujos interesses lhe são confiados.[7]

 

Preservar o exercício da advocacia é honrar a norma basilar do ordenamento jurídico à qual chamamos Constituição da República. Em todos os anos de OAB – e até antes de sua criação –, a valorização da classe significa o respeito ao cidadão.

Como recomendou Martin Luther King, “temos de usar o tempo criativamente”. E assim, criando e inovando a ordem jurídica e política nacional em meio ao processo democrático, ao conclamar a defesa do advogado e da sociedade, a OAB tem a satisfação de comemorar quase um século de existência. O País celebra os 85 anos da Casa da advocacia e da cidadania.

 

NOTAS_______________________________

1NABUCO, Joaquim. Um estadista do Império. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1975, p. 555.

2 Cf. Ata da sessão da OAB, 25/5/1954, Indicação, p. 2.

3Cf. Ata da sessão da OAB, 11.8.1954.

4Cf. Ata da sessão da OAB, 5.6.1962.

5 LOBO, Eugenio Haddock; COSTA NETTO, Francisco. Comentários ao Estatuto da OAB e às Regras da Profissão de Advogado. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1978.

6 BAETA, Hermann Assis (Coord.). A OAB na voz de seus presidentes. Brasília, OAB, 2003, vol. 7, p. 229.

7 Voto do Ministro Celso de Melo no RE 603583, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2011, DJe-102 DIVULG 24-05-2012 PUBLIC 25-05-2012 RTJ VOL-00222-01 PP-00550.