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A democracia nas Américas

5 de abril de 2004

Mestre em Direito pela UnB; Chefe de Gabinete da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral; Professor do Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB

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A democracia nas Américas nas duas últimas décadas, este foi o tema do XI Curso Interamericano de Eleições e Democracia, promovido pelo Centro de Assessoramento e Promoção Eleitoral (CAPEL), órgão vinculado ao Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), sediado na cidade de San José, Costa Rica, entre os dias 2 e 5 de dezembro de 2003. O evento também celebrou os 20 anos de fundação do CAPEL, em sessão solene ocorrida no Tribunal Supremo de Eleições daquele país.

De fato, há muitas razões para regozijo, apesar dos fantasmas que insistem em nos assombrar. Do ponto de vista institucional – regularidade de eleições, cumprimento de mandatos, respeito às alternativas constitucionais para crises políticas – a democracia nas Américas, à exceção de Cuba, tem se consolidado como alternativa política aos regimes de força e intolerância que varreram todos os quadrantes do continente nos anos 60, 70 e parte dos anos 80. De todas as sub-regiões analisadas, América do Norte, Caribe, Centro América, Cone Sul e Região Andina, está última é a que suscita hoje maiores preocupações com a instabilidade dos regimes eleitos constitucionalmente, ante as crescentes e explosivas manifestações de insatisfação popular observadas no Peru, Equador, Bolívia e Venezuela, que ocasionaram desde tentativas frustradas de golpe até a renúncia de Presidentes, quadro ainda agravado pela permanente crise vivida na Colômbia, onde os governos se vêem pressionados por milícias extremistas e por narcotraficantes guerrilheiros. Estas e outras situações preocupantes, como a crise paraguaia de alguns anos, a crise argentina que parece agora dissipar-se e a transição democrática agora ameaçada no Haiti, mantêm aceso o alerta para o risco de uma recaída autoritária. Não obstante, a comparação com o contexto de vinte anos atrás é mesmo gratificante para os que sofreram e lutaram pela liberdade nas Américas e, portanto, merecida a celebração.

Mas, se é certo que as instituições básicas que compõem uma democracia representativa – partidos políticos, eleições livres e periódicas, parlamentos, jurisdição independente etc –  têm se firmado nesses últimos anos, por toda a América, é também seguro que sua perenidade depende hoje da capacidade de reinventar-se e assim acompanhar as novas demandas pela reinvenção da própria noção de democracia. Não que se tenha esgotado o modelo indireto, fundado em um sistema de representatividade e controle recíproco do exercício do poder, mas este não é mais o único senhor a bordo da viagem democrática.

Ao lado da democracia eleitoral (representativa), o exercício ativo da cidadania por toda a parte tem demandado o alargamento das vias de acesso à tomada de decisões políticas, em um cenário no qual a democracia ganha novos adjetivos: democracia incluinte (acentuando o aspecto socioeconômico), democracia participativa, democracia plebiscitária, entre outros. Parte-se da constatação de que a versão minimalista de democracia, reduzida a um jogo eleitoral, tem perdido força, ficando patente a necessidade de incorporar-se ao conceito mesmo de democracia outras dimensões da cidadania e do respeito aos direitos humanos, principalmente nos planos econômico e social, além de considerar-se a participação cidadã como parte integrante e constituinte dos processos democráticos. Neste particular, é de se observar com atenção as advertências relativas ao perigo de que a crescente perda de legitimidade das instituições diretamente relacionadas à democracia representativa (parlamentos, partidos, governos, etc.) possa degenerar em um novo tipo de caudilhismo político e/ou em democracias plebiscitárias demagógicas, sujeitas à toda sorte de manipulações ideológicas.

A insatisfação com as instituições da democracia tradicional encontra-se mensurada, em que pesem as críticas a esse tipo de iniciativa, nos resultados do latinobarômetro 2003 (www.latinobarometro.org), pesquisa anual de opinião pública realizada simultaneamente em 17 países da região, desde 1996, e que retrata a opinião e as atitudes de cerca de 400 milhões de pessoas, conforme seus organizadores, sobre temas distribuídos em duas grandes áreas, democracia e economia. Assim, por exemplo, no que se refere ao apoio à democracia, somente 35% dos brasileiros indagados responderam sim à pergunta “a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo?”. Este número é superior apenas ao obtido na Guatemala (33%), mas está muito abaixo dos 78% apurados no Uruguay, em primeiro lugar. Se a questão desloca-se para a satisfação com a democracia, os números são ainda piores: 28%, no Brasil, contra 47%, na Costa Rica, em primeiro lugar. Isto é, mesmo entre aqueles que apoiam a democracia como a melhor forma de governo, há um grande contingente que se declara insatisfeito. Mais preocupante é o resultado obtido quando a questão é: não me importaria que um governo não democrático chegasse ao poder, se puder resolver os problemas econômicos. O Brasil aparece em um perigoso terceiro lugar com 65%, atrás apenas do Paraguay (76%) e da Nicarágua (71%).

Os resultados da pesquisa, por essa pequena amostra, como se vê, são muito graves e assinalam, no seu conjunto, a profunda perda de sintonia entre a população e as instituições mais tradicionais da democracia representativa. Mais um dado: no ranking geral de confiança nas instituições, em primeiro lugar aparece a Igreja Católica (62%), bem acima da Televisão, Forças Armadas, Presidente, Bancos, Empresas, Municipalidades, todos com cerca de 30% de confiança. Abaixo desse patamar encontram-se a Polícia (29%), o Governo (24%), o Poder Judiciário (20%), o Parlamento (17%) e, em último lugar, os Partidos Políticos, com apenas 11% de confiança.

As conclusões extraídas neste vigésimo aniversário do CAPEL na verdade estão bem em nossa frente, mas não é excessivo reforçá-las. Para permanecer fiel aos mais profundos princípios que a inspiram, a democracia precisa reinventar-se, permitindo a abertura de suas instituições para as novas dimensões da cidadania. Há de ser entendida como um modo de vida, mais do que um procedimento eleitoral, para então chegar ao cotidiano das pessoas que vivem sob seu império. É que de algum modo já existe a consciência social de que não haverá verdadeira democracia enquanto persistirem, de modo endêmico e estrutural, em nosso cotidiano, a tragédia da miséria absoluta, da corrupção, da violência doméstica, dos grupos de extermínio, da discriminação racial, sexual, classista, enfim, sem que se associe a sua realização à promoção integral dos direitos humanos.