Edição 278
A democracia que se defende
28 de setembro de 2023
Martonio Mont’Alverne Barreto Lima Membro da Comissão de Direito Constitucional do IAB
A autoridade moral, intelectual e política de Norberto Bobbio ultrapassa a divisão de agrupamentos e partidos políticos que se conhece tradicionalmente. Bobbio era sabidamente um liberal dos mais civilizados e não teve a menor dificuldade de revelar o que todos sabem, mas que é escondido pelos liberais, pelo menos os brasileiros: a distinção entre esquerda e direita é atual. É de Bobbio ainda o reconhecimento de que a democracia haverá de levar a cabo uma tarefa elementar para a possibilidade de sua manutenção e a convivência dos conflitos que caracterizam: a necessidade de que o Direito estabeleça os limites da democracia. Bobbio caminha na esteira do realismo de Immanuel Kant quando não entrega a tarefa de determinação destes limites nem aos céus, nem aos deuses. Esta será uma atribuição dos homens, a ser resolvida na Terra, e com base no Direito, o que se afastaria da noção idealista, característica dominante do pensamento de Kant, mas que se mostra distante na À paz perpétua – um projeto filosófico.
Tem-se, então, que a democracia é um sistema de limites internos e externos. Os primeiros serão fixados pelo sistema representativo de eleições no interior dos Estados livres, a disporem de sua soberania. O segundo será o Direito Cosmopolita entre nações e povos (o Weltbürgerrecht que Kant menciona na sua À paz perpétua). Dessa maneira, a democracia, mesmo para o pensamento liberal, é um sistema de limites estabelecidos pelo Direito.
No mês de julho de 2023, o Presidente Lula assinou dois projetos de lei para fortalecimento da defesa da democracia. Esses projetos formam o que chamou de “Pacote da Democracia”, que conta ainda com uma proposta de emenda à Constituição e uma medida provisória e dois projetos de lei. A proposta de emenda cria a Guarda Nacional, em substituição à Força Nacional, com atuação na defesa do patrimônio público de Brasília, além de integrar operações especiais na fronteira, em terra indígenas e unidades de conservação. A medida provisória criminaliza ataques à democracia pela Internet, com responsabilidade das plataformas que não agirem para excluir conteúdos antidemocráticos. No primeiro dos projetos de lei, há a mudança do Código Penal que aumenta multas e penas para quem incita, lidera ou financia atos contra o Estado Democrático de Direito. Prevê penas de seis a 12 anos para quem organizar ou liderar movimentos antidemocráticos. A pena ainda será aplicada para quem atentar contra a integridade física do presidente da República, dos presidentes do Senado Federal e da Câmara dos Deputados e dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF). Se o atentado for contra a vida dessas figuras, com o fim de alterar a ordem constitucional democrática, a pena pode ser de 20 a 40 anos de reclusão. Para quem financiar movimentos antidemocráticos, a punição varia com penas de oito a 20 anos de prisão.
O segundo projeto facilita a apreensão de bens e bloqueio de valores bancários de quem financia atos antidemocráticos, em qualquer fase processual.
Não há como deixar de mencionar que há 20 anos, desde 2003 e com o julgamento do habeas corpus 82.424/RS (“habeas corpus do antissemitismo”), a orientação da jurisprudência nacional sobre liberdade de manifestação de pensamento corresponde àquela mais moderna, quando se observa a jurisprudência constitucional de outros países: a democracia é um sistema de limites, assim como ensinou Bobbio. Com o poder das redes sociais e sua inaudita capacidade de criação de realidades falsas, a ponto de ressuscitar crenças hoje bizarras, como a de que a terra é plana, o impacto de manifestações racistas, antidemocráticas, de ódio contra minorias ganhou dimensões nunca vistas, tanto quanto se dá com a disseminação de mentiras. Até aqui, não se sabia bem qual direção seguir, na medida em que o realismo cínico dos que defendiam tais manifestações se apegavam à democrática liberdade de manifestação de pensamento para destruir a democracia. Os Poderes Legislativo e Judiciário brasileiro conseguiam construir respostas contra esse veneno, e os melhores exemplos foram a criação da Procuradoria de Defesa de Democracia no âmbito da Advocacia Geral da União (AGU) e a recente inelegibilidade de Bolsonaro pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Agora, o Pacote da Democracia. Como se viu, tudo nos limites do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, judicial e administrativa, além das inteiras publicidade e transparência.
O chamado “Pacote da Democracia” resulta de uma óbvia advertência da história do Século XX. A mais violenta das guerras da humanidade se desenvolveu de 1939 a 1945 e protagonizou um exemplo único de perversão que havia se formado nas sociedades pelo menos 10 anos antes. Contra os discursos de ódio e violência disseminados por forças econômicas e políticas do nazismo e fascismo não se conseguiu fazer valer os limites impostos pelo Direito das jovens democracias da primeira metade do mesmo Século XX. Esse complexo funcionamento burocrático e institucional liquidou os limites – e é também por esta razão que se afirma que a mãe adotiva de nazismo e fascismo é a falta da eficácia dos limites que haviam sido normatizados. A facilidade com que se disseminaram palavras contra minorias políticas, culturais, econômicas, étnicas e religiosas convenceu grande parte das sociedades europeias de que, por exemplo, eslavos, judeus, ciganos, homossexuais, mestiços, pessoas com deficiência eram a causa de todos os males da crise econômica de 1929 e deveriam pagar com seu extermínio por tal responsabilidade. Se se retorna na história além do Século XX, constata-se o mesmo. A ausência de limites construídos pelo Direito convenceu sociedades de que negros eram inferiores e que a escravidão era uma forma generosa de cuidar de incapazes; que mulheres eram inferiores e frágeis, sem qualquer habilitação para escolher seu destino pessoal, sua profissão, tampouco participar dos processos políticos decisórios.
Esta breve recuperação histórica serve para lançar luzes a respeito de discussões que não se podem mais adiar. Até as democracias tidas como consolidadas veem-se ameaçadas com a falta de regulamentação sobre a atual liberdade de manifestação de pensamento, potencializada pela Internet, com as redes sociais. À inação de governos democráticos correspondeu a destruição da própria democracia. Eis o que se tem para exibir no cenário histórico.
Certamente que referido panorama não permaneceu desapercebido do novo governo que iniciou em 1o de janeiro de 2023, assim como a fatalidade dos acontecimentos de 8 de janeiro seguinte. Entendemos que o “Pacote” anunciado deve ser bem recebido.
Não há inconstitucionalidade nos projetos, nem na proposta de emenda à Constituição ou na medida provisória. Os projetos, aliás, fortalecem a defesa da democracia, dever de todos os Poderes do Estado e do Ministério Público. As decisões judiciais que apontam para a proteção da democracia aplicam-se, por óbvio, somente aos casos concretos. Esta é a tarefa do Judiciário. A perspectiva de tornar lei a ideia da defesa da democracia é uma lacuna que já deveria ter sido preenchida desde os primeiros momentos da Constituição de 1988. É esta mesma Constituição quem reclamava referida ausência de autoproteção normativa: não havia legislação ordinária a disciplinar o que já estava na previsão democrática escolhida pela Constituinte de que a democracia brasileira tem nítida pretensão duradoura.
Não foi sem razão que o Tribunal Constitucional da Alemanha e a doutrina constitucional alemã formularam o conceito de “democracia defensiva”, ou “democracia que defende a si mesma” (werhhafte Demokratie). A recente aplicação deste conceito pelo Poder Judiciário daquele país, em dezembro de 2022, determinou busca e apreensão em mais de 130 residências de 11 dos 16 estados daquela federação, além da prisão de 25 pessoas, dentre estas a de uma juíza; todos integrantes de uma grupo chamado “Cidadãos do Reich” (Bürgerreich) que não reconhece a atual Lei Fundamental como Constituição do país.
Outro liberal insuspeito, Max Weber, clamava, ainda em 1919, que não se estava diante de um ensolarado verão; mas sim de uma noite polar; com gélida escuridão e dureza. Que as advertências dos que enxergam mais longe possam servir para impedir as tragédias que hoje, como antes, se anunciam. A partir das ações concretas de Estado e sua sociedade, discutidas abertamente no processo democrático, é que se pode reafirmar o compromisso com a mesma democracia, que é o sistema de limites, porém resultante de processos que são também democráticos.
Notas______________________
1 Bobbio, Norberto. Estado, governo e sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 101-103.
2 Kant, Immanuel: Zum ewigen Frieden – Ein philosophischer Entwurf, Immanuel Kant – Werke in zehn Bänden, Bd. 9., hrs. von Wilhelm Weischedel, Wissenschafltiche Buchgesellschaft, Darmstadt, Sonder-ausgabe 1983
3 Weber, Max. Política como profissão e vocação. Escritos Políticos – Max Weber. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 462.