Edição 272
A desinformação e as fissuras nos pilares da democracia
5 de abril de 2023
Daniel Moraes Pinheiro Coordenador de Projetos de Pesquisa e Extensão em Educação e Cultura Política da UDESC
O Século XX foi talvez um dos períodos em que a humanidade viu o seu maior e mais rápido salto em termos de tecnologia, nos mais diversos campos. Mas, sem dúvida, foi em meados da década de 1990 que assistimos e começamos a viver uma das maiores revoluções, especialmente, àquela que teria não apenas um impacto funcional ou econômico, mas também mudaria comportamentos e relações sociais: a Internet. Muito embora a humanidade constitua, por si, uma rede biológica complexa, de fato, estar finalmente conectados de forma lógica, rápida e precisa nos fez pensar – e muitos assim o afirmavam – que entraríamos no Século XXI com uma capacidade inimaginável de alcançar o conhecimento e nos relacionarmos de uma maneira nunca vista.
De igual forma, percebemos que esta conquista seria igualmente fascinante e perigosa: logo se discutira a relação entre informação e poder, o que, ato contínuo, nos faria perceber que este novo desenho de sociedade conectada teria uma consequência na dimensão política da vida humana, e que seria preciso entender este desenrolar. Talvez o fascínio pela quebra de fronteiras globais e o acesso a conteúdo e mercados de forma veloz não tenha nos feito iniciar antes a reflexão de como o lado perverso da informação – a desinformação – associada à velocidade e ao alcance trazidos por todo o aparato tecnológico contemporâneo e a um comportamento social de quase total imersão ou dependência de estar em rede poderia colidir, em igual velocidade, com os valores da democracia, que se constitui e busca se fortalecer nos mais diversos países no mundo.
Muito embora se tenha uma democracia ainda em amadurecimento no Brasil, nos últimos anos ficaram evidentes as fissuras em seus pilares. Instituições desacreditadas, política partidária frágil e baixa participação e envolvimento do cidadão são exemplos bem conhecidos. Ataques diretos à democracia, os quais muitos haviam sido somente vociferados por um tempo no espaço digital, mas levados à cabo de forma física, cruel e visivelmente irracional, como no início deste ano, só podem causar surpresa se desconsiderarmos que a democracia tem, por natureza, a qualidade de pôr-se à prova a todo instante. Claro, para aqueles que acreditavam naquilo que acontecia no digital como apenas atos irracionais e impensados, mas impossíveis de atravessar as fronteiras da democracia, desconsideravam, talvez, que era justamente a velocidade e o poder de conexão que poderia, após sistemáticas afirmações, criar uma série de verdades paralelas.
Se a concepção clássica da democracia, por si, já inspirava conflito com estruturas estabelecidas, fica difícil negar que seria inevitável que tais conflitos aparecessem de forma tão abrupta, especialmente tendo nas mãos um forte aparato para o desconhecimento em massa. Ora, a ideia original de, em alguma medida, dar voz àqueles indivíduos historicamente ausentes do debate dos privilegiados, passaria por, no mínimo, uma afronta à valores culturais e socialmente arraigados, sejam aceitos ou impostos, e isto irá ocorrer ao longo da história, em qualquer sociedade que tente fortalecer um regime democrático. Talvez este seja o pecado original da democracia: carregar sua condição nata ao ataque, ao choque, ao conflito, ao contraditório, especialmente por desestruturar regimes ou ideias dominantes, em nome da busca por um maior equilíbrio ou, minimamente, por uma sociedade politicamente mais equânime.
Ao longo de sua história, a democracia provou que se mantém fiel a pôr-se a prova. Como sistema político, com suas qualidades e defeitos, a ideia central do equilíbrio choca, de igual forma, com a vocação humana pela busca do poder. No Estado moderno, nas sociedades organizadas em nações não-totalitárias, a democracia passa a frutificar-se e fortalecer a si – e às nações – quando sua importância é compreendida por aqueles que nela vivem. Decerto, entende-se também que, para isto, é preciso que as instituições democráticas se preocupem não apenas em um existir democrático, mas que possam agir de forma a atender seu povo na mesma medida em que possam fazer com que o seu povo as compreenda e, especialmente, se aproprie destas instituições como suas.
O desafio em fazer com que o cidadão se aproprie das instituições democráticas é um dos maiores dilemas, talvez, para se combater fenômenos como o da desinformação ou qualquer outro que culmine em ataques à democracia. Em estados burocráticos, mesmo que o regime político se estabeleça com uma proposta democrática, como em nosso País, é impensável acreditar que se tenha êxito estando a democracia centrada em partidos políticos, que buscam a todo momento estar no poder sem, no entanto, fazer com que a população entenda o seu papel perante a política. Muito embora os partidos políticos sejam instituições democráticas importantes, não podem ausentar-se em esclarecer e educar à população de forma correta e honesta quanto à sua ideologia, e como isto se refletirá em ações, quando chegar ao poder. Educar para política é, portanto, imprescindível para o fortalecimento da democracia e deve começar, justamente, por suas próprias instituições. A burocracia não deve, apenas, ocupar-se do poder e da orientação normativa da vida humana, mas numa democracia, precisa encontrar espaço para dialogar e permitir-se ser apropriada pelo cidadão.
O que se percebe, na história recente do Brasil e em vários países do mundo, é que um dos principais desafios para a consolidação das democracias consiste, justamente, em saltar a facilidade que o populismo encontra na sedução do eleitor. Aliás, o populismo e a má burocracia, quando aliados consideram o cidadão somente um eleitor e não mais que isso. Mesmo que se estabeleça uma ideia de democracia, o cidadão é considerado um número, e seu registro é o suficiente para considerá-lo partícipe. Somado ao nosso primeiro argumento de acessibilidade e velocidade a todo e qualquer tipo de informação e, ainda, aliado a um ambiente no qual as pessoas não são educadas para a vida política e não fazem questão de participar do cotidiano das decisões que implicam em sua própria vida, o populismo traz a receita perfeita para se derrubar os pilares da democracia. Se no passado distante foram necessárias guerras, cruzadas ou a constituição de propaganda para se estabelecer regimes de dominação ou totalitários, hoje as armas estão literalmente disponíveis em nossas mãos, diariamente.
Para se ter uma ideia da fragilidade da democracia, basta ver que nos últimos anos, os mais diversos pilares institucionais da democracia sofreram ataques sistemáticos e visivelmente coordenados, cuja intenção não deve ser novidade para a sociedade. Na história, repita-se, um olhar atento mostrará que o caminho para se derrubar a democracia não é apenas o do ataque frontal. Talvez, o mais mortal para o regime democrático seja, justamente, contaminar a população contra cada uma de suas instituições. É neste sentido que ferramentas que despejam uma quantidade infinita de informação numa população sem conhecimento e sem a vontade de participar da vida política no cotidiano seja tão perigoso. Temos uma população sistematicamente distante da vida política, acostumada a ser eleitora, cujo ápice torna-se a chamada “festa da democracia”, a cada dois anos. Assim, forma-se um cidadão especialmente acostumado a delegar a política para que apenas o seu representante a exerça, sem cobranças ou, pelo menos, sem conhecer minimamente o que aquele ou aquela que irá representar sua vontade possa ser capaz de fazer. Esta representação quase que sempre o faz por si e, se em algum momento sente-se acuada perante a democracia, usa de suas armas com os seus para que estes possam blindar e, sobretudo, atacar seu inimigo.
Esta é a estratégia mais conhecida – e mais temerosa, pelos nítidos resultados no último século – para se derrubar um regime democrático. Ao ter uma boa parcela da população incapaz de assumir o seu papel político se tem a fonte perfeita para que a democracia não floresça. Ao municiar esta população com falsas informações sobre as instituições da democracia, temos o ambiente perfeito para iniciar as fissuras nos pilares da democracia. Contra a desinformação que corrói a democracia, cotidianamente, é preciso reagir; seja de forma institucional, na proteção e fortalecimento da democracia, com mecanismos rígidos e vigilante; seja no ambiente social, a tornar os círculos próximos um ambiente de vida política saudável, que permita que se compreenda o que é, de fato, uma democracia. Sem isso, estaremos a longos passos de ter um regime democrático pleno.
Combater a desinformação significa abrir mão de um comportamento histórico e culturalmente aceito. Não se pode mais separar, por exemplo, a política da vida cotidiana. A família precisa discutir a democracia, à mesa. As escolas, precisam ensinar os valores democráticos básicos, educar sobre as instituições da democracia e, sobretudo, sobre as práticas democráticas, direitos e responsabilidades, que a criança ou os jovens em seus bancos devem ter. A ciência precisa se impor como elemento fundamental para a reflexão sobre a democracia. É preciso se discutir e falar de política na rua, na igreja, na praça, nos órgãos públicos, enfim, em todos os espaços. É preciso, decerto, separar a política partidária e eleitoral da discussão da vida política das decisões cotidianas, da reflexão sobre as instituições e sobre a democracia. A política e a vida pública precisam ser, não apenas aprendidas, mas vividas. Só assim, seremos capazes de, em nosso tempo, em nossas relações, distinguir a informação da desinformação, a política verdadeira do mero interesse pelo poder e, finalmente, experimentar a democracia em sua plenitude.