A despedida do decano do STF

5 de novembro de 2020

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O Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, resolveu antecipar sua aposentadoria para o dia 13 de outubro passado. A sua eloquência na exposição dos votos, a intelectualidade das teses jurídicas construídas, independência e altivez na interpretação e aplicação da Constituição Federal sempre serão lembrados na longeva passagem entre os anos 1989 e 2020.

A estabilidade nos posicionamentos e entendimentos ao longo dos anos, a postura de grande protetor das minorias, o comprometimento com as liberdades fundamentais constantes da Constituição Federal de 1988 ajudaram a construir as balizas do Estado social hoje existente em nosso País.

Conhecido pela importantíssima contribuição na construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, pelo fino trato com todos e pela memória invejável, o Ministro Celso de Mello foi relator de uma das decisões mais importantes quando se trata de intervenção do Poder Judiciário nas Políticas Públicas do Estado, qual seja, Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 45.

Considerando os parâmetros fixados nesse julgamento relativamente à legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de política pública, a atuação das Procuradorias Públicas na representação da União, estados, municípios e Distrito Federal passou a enfrentar novos debates jurídicos, tais como qual tipo de intervenção judicial é possível, quais fases da política pública podem ser alcançadas, quais limites devem ser respeitados e o que justifica a intervenção judicial.

Podemos concluir desse julgamento histórico que a intervenção judicial pode ocorrer para garantir o núcleo essencial dos direitos assegurados na Constituição Federal de 1988. Sobre o tema, cito excerto do Voto do Ministro Celso de Mello na ADPF 45:

“(…) põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais – que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional”.

A intervenção judicial deveria ocorrer apenas em casos excepcionais para assegurar a execução de uma política pública já existente e negligenciada pela administração pública, afinal, o Poder Judiciário não deve formular a agenda política do Poder Executivo. Em tese, somente se justificaria para repreender uma ilegalidade ou desvio de finalidade, mas após esse julgamento (ADPF nº 45 STF), observa-se que o Supremo Tribunal Federal passou a intervir em qualquer fase da política pública, desde a formulação até o acompanhamento da sua execução.

A interferência na agenda governamental, reformulação da política, ordem de implementação ou vedação à sua interrupção, invalidação de atos e contratos e a própria interferência no orçamento está se tornando frequente. Para o Ministro Marco Aurélio, o papel do Supremo diante desse quadro é retirar as autoridades públicas do estado de letargia, provocar a formulação de novas políticas públicas, aumentar a deliberação política e social sobre a matéria e monitorar o sucesso da implementação das providências escolhidas, assegurando a efetividade prática das soluções propostas. “Ordens flexíveis sob monitoramento previnem a supremacia judicial e, ao mesmo tempo, promovem a integração institucional”, concluiu.

Relativamente aos limites que deveriam ser respeitados, não é dado ao Poder Judiciário imiscuir-se na esfera reservada ao Executivo ou Legislativo, para substituí-los em seu juízo de oportunidade e conveniência, todavia, a judicialização dos mais variados temas da sociedade organizada levado ao crivo do Poder Judiciário como última instância, para solucionar a crise de inação do Poder Público, tem conduzido o Supremo Tribunal Federal a uma posição de protagonismo, atuando firmemente para assegurar o mínimo social que garanta a existência digna da pessoa humana, avaliando o sistema de prioridades fixado pelo gestor público, sob a ótica de evitar a desvalorização funcional da Constituição Federal de 1988.

Estes são os critérios presentes a justificar a intervenção: afronta ao mínimo existencial e disponibilidade financeira possível para a concretização da política pública determinada, colocando em confronto a reserva de administração (mérito administrativo) versus implementação dos direitos fundamentais; a reserva do possível como limitador da atuação do Poder Público versus mínimo existencial e vedação ao retrocesso.

Ou seja, a efetivação do direito está adstrita à “reserva do possível”, materializada na necessidade de se fazerem escolhas alocativas, considerada a escassez dos recursos públicos. Entrementes, “não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele – a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência”.

É neste cenário que o Ministro Celso de Mello deixa aos gestores públicos do nosso País a riquíssima lição de que “a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade”.

O Ministro Celso de Mello foi genial na judicatura, ético (pessoal e profissionalmente), teve uma trajetória modelo na Suprema Corte e atuou firmemente, como disse a Ministra Rosa Weber na sessão do dia 6 de outubro da 2ª Turma do STF, em homenagem ao Ministro decano: “Não só no exercício da jurisdição constitucional e na irredutível afirmação das liberdades, dos direitos fundamentais e dos grupos minoritários, mas sobretudo na incansável e intransigente defesa institucional do STF e do Poder Judiciário contra todos os atos, consultas e movimentos reveladores de arbítrio, autoritarismo, intolerância e da incompreensão do papel de uma Corte Constitucional em um Estado Democrático de Direito”.

Notas______________________________________

1 RTJ 164/158-161, Relator Ministro Celso de Mello.

2 ADPF nº 45/DF, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 04.05.2004, p.12.

3 Voto na ADPF 347, que tratou da violação de direitos fundamentais da população carcerária e a necessidade de adoção de diversas providências no tratamento da questão prisional do País diante do estado de coisa inconstitucional.

4 ADPFs: 54 (Interrupção da gravidez de feto anencéfalo); 186 (Reserva de vagas para negros no ensino público superior); 404 (Sistema penitenciário da Bahia); 682 (Cursos de Direito); 655 (Sistema tributário brasileiro); 708 (Fundo do Clima); 635 (Letalidade da atuação da Polícia do RJ); 709 (Proteção da população indígena contra a covid-19); Pet. 3388 (Demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol); HC coletivo 143.641 (Substituição de prisão preventiva por domiciliar para mulheres gestantes, puérperas e mães de crianças presas); HC 124.306 e ADPF 422 (Interrupção voluntária da gravidez durante o primeiro trimestre e excludente de ilicitude da conduta – interpretação conforme os artigos 124 a 126 do Código Penal); ADI 5.581 (Interrupção da gestação em relação à mulher que tenha sido infectada pelo vírus da zika); ADC 41 (Reserva de vagas para negros em concursos públicos); ADI 4439 (Ensino religioso nas escolas públicas) e outros tantos. 

5 ADPF 45/DF, Relator Ministro Celso de Mello, Informativo/STF nº 345/2004.

6 Voto do Min. Celso de Mello no Ag.Reg. no RE com agravo 745.745/MG